À memória de Farias
Brito.
Sidney
Silveira
O amor é o êxodo da vontade em direção a um bem
— atual ou potencial. Noutros termos, as coisas amáveis ou são reais ou são possíveis. Expliquemo-nos melhor: ou são reais por existirem de
fato e se apresentarem a uma inteligência que as assimila e a uma vontade que
as apetece, ou são possíveis no sentido de que, embora ainda não existentes,
são bondades perfeitamente engendráveis em dado contexto. Com relação a estas
últimas, dizia Duns Scot que Deus ama as coisas possíveis com amor ineficaz,
porém amor. Em síntese, como o Absoluto que encerra em si todas as
possibilidades da ordem do ser, pois nada é possível fora d’Ele, Deus estende o Seu amor às coisas que não
criou, mas poderia ter criado, se quisesse. Analogamente, o homem ama o que
vislumbra como possibilidade boa para si; como caminho de vida ainda não percorrido.
A propósito, o amor humano tem esta
peculiaridade de atravessar o tempo. Projetado ao passado, chama-se entre nós saudade ou nostalgia; vertido ao futuro,
aspiração ou desejo; atualizado no
presente, felicidade ou alegria. Esta
tridimensionalidade temporal do amor apóia-se, é claro, num agora. Mas não em
qualquer agora: trata-se do presente
que se espraia qualitativamente ao que foi e ao que será — numa imitação metafísica
da eternidade. Em suma, eterno é o instante
perene no qual a inteligência possui todos os bens num só ato, se seguirmos
de perto a Boécio, para quem a eternidade é a posse total, completa e
simultânea da vida interminável. Em certo sentido, o amor faz-nos eternos na
finitude, ou seja, por ele transcendemos às efemérides, às coisas passageiras, na
medida em que traz à duração da nossa vida o signo de algo situado para muito além
dela. Amar é perdurar conscientemente no bem; isto por si pressupõe ultrapassarmos
o aqui e agora.
Em contrapartida, quanto menos uma pessoa ama, mais dramaticamente arrojada ao presente e
às coisas imediatas está. Já não se trata do presente acima aludido,
pletórico e transbordante, do êxtase amoroso, mas do presente como cárcere da
vontade, estupefaciente e pegajoso. Não amar é certa agonia começada, porém não
de todo manifesta, espécie de cancro que rói as entranhas silenciosamente e só
dá sinais dos seus efeitos deletérios quando se aproxima a metástase. O desamor
tem o pervertido condão de distrair uma pessoa das coisas mais importantes,
fixá-la em futilidades, fazê-la cobiçar o banal. Ora, se a alma está narcotizada
por vilezas, o tempo transforma-se numa sucessão de fatos mal percebidos e, com
isto, a pessoa perde o sentido de sua própria história de vida. E também a daqueles
a quem poderia amar.
Não é errôneo dizer que o tempo perde em qualidade
para quem não ama, pois a vida humana não é cronologia pura e simples, como se
a nossa inteligência fosse o receptáculo passivo das coisas que presencia; neste
caso nenhum homem teria a percepção do próprio “eu”, não identificaria os seus
atos conscientes no decorrer do tempo. Ao contrário, é a cronologia que ganha inteligibilidade graças à inteligência e à
vontade — e no amor essas duas potências da alma alcançam o ápice de suas
possibilidades. Justamente por este motivo a felicidade perfeita é, de acordo
com Santo Tomás de Aquino, um ato da inteligência elevada ao sumo inteligível, Deus,
mas irmanada à vontade, que não pode não aderir a tamanho esplendor, quando o
percebe sem nenhuma possibilidade de erro deliberativo. A isto os teólogos
chamam de “confirmação na glória” ou “impecabilidade dos
bem-aventurados”.
Quanto mais se eleva às causas primeiras, mais
entranhado o conhecimento está de amor. De mesma maneira, amar uma pessoa pressupõe ir muito além do momento presente dela. É conhecer-lhe biografia, as dores que padeceu, as alegrias que viveu, o vetor predominante
de sua vida espiritual, as aspirações nas quais se compraz. O amor cresce
nesse ir ao íntimo, nessa troca de experiências profundamente vividas, no
decurso das quais os olhos da alma se mantêm em estado de salutar tensão e de atenção
máxima. Não é possível amar o que se conhece mal, e por esta razão a excelência
à qual o homem é chamado só se logra no ato de plenitude amorosa. Benevolência e
concupiscência estão juntas nessa entrega que dá sentido à vida.
Diferentemente do que o hedonismo contemporâneo
alcança perceber, a felicidade não é a
sucessão de agoras gozosos — ao modo de adição dos momentos de prazer —, mas um agora amoroso, denso, que se
torna a raiz primária de todos os deleites presentes transportados também ao passado e ao futuro. Daí dizer-se que a felicidade é um estado, e não
um ato ou a soma de atos. Mas tudo isso se se levar em conta o que dissemos no começo
deste breve texto: o amor pressupõe a atualidade
do real ou uma possibilidade real.
Olhemos agora para o avesso de tudo isso: amar o irreal ou o impossível é típico das
personalidades neuróticas, a maneira mais insidiosa de auto-sabotagem com que
uma pessoa pode ferir-se aos poucos. E, para desgraça nossa, ter esse tipo de desamor como
meta é o delírio tenaz que acossa a contemporaneidade.
Uma contemporaneidade espiritualmente mutilada, desprovida
do vínculo metafísico com Deus, o que torna o mundo sem finalidade tangível.