Ao amigo
Vítor Pimentel, jurista nato.
Sidney Silveira
A
honra,
segundo Santo Tomás de Aquino, é maximum inter bona externa, ou seja, o maior dos bens exteriores do homem. E
o é na medida em que inclui o direito à boa fama e à preservação da própria
intimidade — que todos têm. Não por outro motivo, a difamação é uma espécie de
grave roubo da reputação alheia cujos malefícios podem destruir a vida de uma
pessoa. Daí dizer o grande tomista Domingo de Soto, na esteira do mestre medieval,
que a boa fama é causa da honra, a qual, por sua vez, não é outra coisa senão a
ordenada estimação do próprio bem perante os outros. Se casualmente essa
auto-estima se desordena, transforma-se em ambição, em vanglória.
O comedido zelo pela
própria reputação é fruto do pudor natural, aqui entendido como instinto
protetor que torna o homem precavido contra a exposição indevida de sua
privacidade. A propósito, quando falta esse pudor
natural (aidos, na
terminologia de Aristóteles), o caráter se deteriora. A pessoa então se torna
incapaz daquele recolhimento sem o qual ter vida interior é quase impossível.
Mas não percamos o fio da meada, para o que nos interessa destacar neste breve
texto: mesmo as pessoas públicas têm o direito a não deixar a sua vida
particular ser devassada, e, mais ainda, cabe-lhes
a decisão intransferível de escolher que instâncias de suas vidas elas querem
ou não tornar públicas. Isto nada — absolutamente nada — tem a ver com “censura”,
no sentido político do termo.
Uma sociedade liberal
que idolatra a liberdade de expressão e a confunde tristemente com
licenciosidade e desrespeito ao próximo não consegue entender o seguinte: a vida privada de uma pessoa, entendida como o universo de atos e fatos
particulares conscientes, é inviolável
em si mesma, conforme estabelece o Artigo 21 do Código Civil brasileiro, ao passo que a liberdade de expressão pode
e deve ser restringida em várias circunstâncias, seja por razões de ordem
moral ou legal, para desespero de filósofos e juristas liberais. Assim, a
título de mero exemplo, ninguém tem o direito de — no exercício de sua
liberdade de expressão — prestar falso testemunho para lesar o próximo. Como se
pode deduzir, no que tange aos atos da razão
prática, instância deliberativa reitora da ética (ciência do bem agir), o
direito a preservar a própria intimidade é mais fundamental que o direito à
liberdade de expressão, sobre a qual falaremos adiante.
E ele é mais universal no
que diz respeito às ordens gnosiológica e moral, pois o íntimo do homem é justamente o que distingue a sua essência, a
saber, os atos da inteligência e da vontade: entender e querer. Portanto, se uma
pessoa, no exercício dessas faculdades superiores de sua alma, delibera
manter parte da própria vida oculta do grande público, tal decisão é por si, e
em si, intocável. A liberdade de expressão de quem quer que seja não pode
ultrapassar este limite, o que implicaria invadir a liberdade alheia, e nunca é
demais lembrar que a liberdade de um começa quando termina a de outro. No dia
em que a lei permitir isto, será o agônico sinal de que a privacidade das
pessoas se tornou uma impossibilidade política, e o direito universal à
xeretagem, à bisbilhotagem, virou norma jurídica. Por aí vemos como a questão é
gravíssima, pois está em jogo a liberdade em sua real acepção.
Com vistas a tornar a
questão um pouco mais clara, formulemos um princípio de fundo axiológico no
espírito da escola tomista: em caso de
colisão entre dois direitos fundamentais, prevaleça o que mais se
aproxime da lei natural, pois este valerá mais. Ora, a lei natural tem como
insumo a sindérese — hábito inato dos primeiros princípios da razão prática —,
segundo a qual o homem fundamentalmente busca para si o bem e procura fugir do
mal. Levando-se em conta este fator evidentíssimo, torna-se claro que zelar pelo
próprio nome é circunstância completamente afim à lei natural, assim como o
dever de não sujar o nome alheio. Por sua vez, a liberdade de expressão sequer
pode ser considerada um “princípio”, seja especulativo ou prático. Vejamos os
porquês.
Confundir
“liberdade” com “liberdade de expressão” é análogo a confundir a forma do ente
com uma de suas operações, ou seja, é tomar uma
parte pelo todo, o acidental pelo substancial. Erro metafísico primário! Em breves
palavras, o homem não é livre porque se expressa, mas se expressa — ou não —
porque é livre. Não troquemos, pois, a verdadeira liberdade, cuja instância
inexpugnável é a vontade, apetite intelectivo do bem, por um de seus aspectos
exteriores e metafisicamente contingentes: a expressão de atos livres. A
propósito, é este um dos maiores dramas das sociedades contemporâneas,
tataranetas do paleoliberalismo pré-Revolução Francesa: ter da liberdade a mais
equívoca das noções, confundir a sua sublime essência com uma das propriedades
que emanam dela.
Formulemos de outra
maneira: o essencial da liberdade não é escolher,
mas poder escolher, de acordo com
critérios subministrados pela inteligência. Em suma, o que distingue a
liberdade é essa potência tendencial intelectiva de eleger voluntariamente isto
ou aquilo — e confundi-la com o seu ato próprio é como supor que o cavalo é
cavalo porque relincha, e não o contrário, que o homem é homem porque fala por
meios de signos inteligíveis, e não o contrário. Reiteremos: a liberdade, por radicar na vontade, não pode ser coagida em sua imaterialidade. Um torturador pode até constranger
alguém a confessar o que não fez, ou então a calar-se, mas não pode coagir a sua vítima a não amar o
próprio filho, por exemplo. A vontade, dada a sua natureza, é livre em absoluto
porque ninguém pode constrangê-la. Daí que a liberdade de expressão possa na
prática ser violentada, mas a verdadeira
liberdade humana é incoagível, não pode ser ferida em sua essência
imaterial, não pode ser movida exteriormente a fórceps, por ninguém. Nem mesmo
Deus o pode fazer; Ele pode, isto sim, é movê-la necessariamente
apresentando-lhe um bem sumo, irresistível, e a isto os teólogos chamaram de præmotio
divina.
Sou absolutamente
insuspeito para defender qualquer coisa em comum com os Srs. Chico Buarque e
Caetano Veloso — pessoas por quem não nutro nenhuma admiração. Mas diga-se que
a sua grita contra as chamadas “biografias não autorizadas” nada tem de
censura, pois diz respeito a algo distinto e bem mais fundamental: o direito de toda pessoa a preservar no âmbito
da intimidade alguns fatos de sua própria vida. Foi, por exemplo, no
exercício desse direito natural que Machado de Assis mandou uma jovem parenta
destruir enorme quantidade de cartas que estavam nalgumas caixas. A posteridade
jamais conhecerá alguns fatos da vida do Bruxo do Cosme Velho relatados neste
epistolário perdido, porque assim ele livremente decidiu. E nem por isso
devemos nós chamá-lo de “censor”.
Suponhamos, a mero título de
procedimento dialético, que os Srs. Chico Buarque e Caetano Veloso guardem
vexatórios esqueletos dentro do armário. Esta é uma escolha inalienável deles!
A propósito, durante anos Dorian Gray manteve no sótão a pintura hedionda que representava a sua deformidade moral, e não foi obrigado a expô-la aos olhos do
mundo. Ninguém senão o próprio Dorian tinha o direito de destruir o quadro, apunhalá-lo
na tentativa desesperada de apagar a consciência dos seus atos moralmente maus, ali retratados em aspecto macabro.
Tiremos, pois, a seguinte lição da obra-prima de
Oscar Wilde: a hipocrisia é a última fortaleza dos homens de
má-consciência.
Mas nem mesmo a hipocrisia, que radica na liberdade humana defraudada por hábitos viciosos, pode ser
invadida em nome da liberdade de expressão.