Sidney Silveira
Certa vez, há cerca de vinte anos, numa rodinha de samba entre amigos criou-se verdadeira celeuma porque um deles se saíra com a fatídica frase, dita com aquele olhar de certeza estupefaciente deveras comum nos bêbados convictos, quando opinam:
— Chico Buarque é um gênio!
Respondi, depois de sorver um gole de cerveja gelada, que tal opinião era exagero em toda a linha. Chico era bom letrista, bom sambista, e ponto; eu mesmo crescera ouvindo e cantarolando muitas de suas músicas e gostava bastante de algumas delas. Mas “gênio” era adjetivo a ser usado com parcimônia, pois a humanidade não os produz aos montes, e geralmente se trata de homens realizadores de feitos extraordinários. Citei então alguns gênios da filosofia, da literatura, da ciência, da pintura, da oratória, da escultura e da música, e quase levei com o pandeiro na cabeça.
No decorrer da conversa, mostrei conhecer melhor as músicas do referido compositor que o meu etílico conversador de botequim — e apontei como o popularesco delas esbarrava não raro em erros de português e de estilo, como também imprecisão no uso das vozes verbais e mistura das pessoas gramaticais em versos de uma mesma composição. Afirmei isto sem deixar de reconhecer-lhe o engenho nas rimas e o artesanato na escolha das palavras, sobretudo em suas músicas mais antigas, nas quais há metáforas bem urdidas e agradável melodia e harmonia, porém reafirmei que isso era pouco para alguém ser considerado gênio.
E mais: Chico era então recém-estreado no romance e acabara de receber o nunca assaz superdimensionado Prêmio Jabuti, oba-oba literário multiplicador de egos e propulsor de vendas de livros. Aproveitei, pois, a ocasião para dizer que, em se tratando de arte da prosa literária, Chico deixava muito, muitíssimo a desejar, seja em enredo, seja em técnica de composição, em estilo e várias outras coisas muito bem apontadas pelo competente crítico Wilson Martins, em resenha que feriu as susceptibilidades da “tchurma” dos aduladores beócios, a ponto de Caetano Veloso naquela ocasião espernear feito primadona ofendida, em defesa do confrade.
A propósito, diga-se de passagem que a perda do senso de proporções é uma das notas distintivas das sociedades voltadas para o próprio umbigo em atitude reverente — signo de que a decadência chegou ao ponto decisivo de inflexão do qual é quase completamente impossível haver volta. Foi o que eu tentei, com breves palavras, explicar ao meu já enfurecido opositor, mas julguei ser melhor recolher-me a um canto e deixá-lo no exercício pleno de sua convicção irrevogável, de sua opinião dogmática impermeável a quaisquer evidências apresentadas em contrário.
O tempo passou e o meu parecer de vinte anos atrás não apenas continua o mesmo, mas se tornou ainda mais crítico. Chico continua a ser o autor dos bons sambas e das boas letras do passado, e as suas idéias, sobretudo as políticas, são parcas como os gambitos nos quais se equilibra, exibidos agora em entrevista na qual o biógrafo Paulo César de Araújo, que já estava a levar pecha de mentiroso na polêmica sobre a censura das biografias não autorizadas, mostra que quem faltava com a verdade era o autor de “A Banda”, em recente artigo publicado n’O Globo. E — Deus do céu! — num texto com fumos de superioridade moral incompatível com a própria maneira de agir do famoso escriba.
Agora, ao ver o zum-zum-zum em torno de personagens que ainda continuam a ser referência para a cultura brasileira, como Chico e Caetano, “neoblack blocs” incensados por uma esquerda política festiva, lembro-me da entrevista em que o próprio Chico dizia o seguinte: o seu pai, Sérgio Buarque de Holanda — este sim, intelectual na acepção da palavra — quase o desprezara até um dia entrever que o filho era capaz de realizações artísticas, como a citada música “A Banda”.
Em verdade, Sergio foi homem cordial com Chico. E se Chico ainda continua tão presente em nosso folhetim é porque o ambiente da cultura brasileira é como o das mulheres que só dizem “sim”; vendem-se por uma coisa à toa, uma noitada boa.
Cantarolemos, pois, as suas trovas e as entoemos no compasso da boa MPB, porém sem fazer delas um altar — sob o risco de irritarmos alguns dos gênios universais da música.
O que é bom, é bom. Mas nem tudo que é nego torto, do mangue e do cais do porto pode alçar-se além de sua própria estatura. Querer fazer isto, como diria o velho Noel, pode transformar-se num palpite infeliz.
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1- Veja-se aqui um trecho da entrevista que Chico disse nunca ter acontecido:
http://oglobo.globo.com/cultura/exclusivo-video-mostra-entrevista-de-chico-buarque-autor-de-biografia-de-roberto-carlos-10394660 2- Ouçam aqui Chico na época do apogeu de suas letras, que durou uns 15 anos de versos criativos, sobretudo em músicas com intenções políticas:
http://www.youtube.com/watch?v=R7xRtSUunEY