Sidney
Silveira
Qualquer ente de razão e qualquer raciocínio têm
a ver com a propriedade comum e primeira na qual todos eles se fundam: a universalidade — fruto do processo de
abstração da matéria individuada, característico do modo humano de conhecer. E a universalidade, como diz o Pe. Álvaro
Calderón na densa obra Los Umbrales de la
Filosofía, não é outra coisa senão a
relação da qüididade de uma coisa abstraída pelo intelecto com respeito à
totalidade dos indivíduos em que se dá. É uma relação de entes de razão —
e, portanto, entes imateriais, como o próprio conceito de totalidade nos aponta. Assim,
por exemplo, a humanidade só existe no intelecto, ou seja, como propriedade
comum abstraída dos homens reais. Deixemos por ora as aporias nominalistas, que
perfazem um capítulo à parte.
Em qualquer lógica, da antiga aristotélica às mais
modernas, não existe raciocínio em sentido próprio que não labore com conceitos
universais, ainda quando o lógico os tente negar na raiz. Sempre se tratará, em
última instância, de relações de universalidade de uns conceitos a outros, desde
a definição, que explica a qüididade dividindo os aspectos essenciais mais
gerais até as diferenças específicas da coisa. Não há, em síntese, constructo intelectual que não esteja
entretecido por essas relações de universalidade, como aponta com argúcia o Pe. Calderón na pequena obra-prima acima mencionada.
Aqui é preciso dizer, com João de Santo Tomás,
que universalidade como noção lógica não é a mesma coisa que universalidade
como propriedade real dos conceitos. Os medievais as distinguiram bem: uma é
universalidade lógica em sentido
próprio, ao passo que a outra é universalidade metafísica. A primeira vai de conceito a conceitos, a segunda tem
fundamento nas coisas reais, das quais os conceitos direta ou indiretamente derivam.
Diz Calderón: “O lógico refere-se à universalidade como propriedade dos
conceitos, sejam genéricos ou específicos”; o metafísico, por sua vez, se
refere à propriedade da qüididade pela qual “homem” se diz de Pedro, Antônio ou
Sérgio, fundando-se sempre em aspectos essenciais dos seus atos de ser.
O homem entende as coisas logicamente, ou seja, raciocinando, montando relações entre conceitos
a partir de coisas e extraindo, sempre progressivamente, o sumo do real. Uma
compreensão ilógica da realidade, ou alógica, só pode ser dita “humana” de
maneira equívoca. Veja-se que não estamos aqui a falar de intuição das essências, pois este é
outro problema gnosiológico — bastante acentuado no começo do século XX com
Husserl —, mas sim de deficiências no ato raciocinante propriamente dito, como quando por exemplo se deduzem as conclusões de premissas errôneas ou mal
ordenadas entre si.
Diz Santo Tomás no Comentário aos Analíticos Posteriores que a lógica é “arte diretiva
dos atos próprios da razão para que o homem alcance a ciência de maneira
ordenada, facilmente e sem erro”.[1] Ela é ciência racional, continua o Santo, não apenas porque seja conforme os ditames da
razão, pois isto todas as ciências são, mas porque trata dos atos da razão
como de sua matéria própria. Daí ser arte
das artes, pelo fato de dirigir a atividade da razão da qual procedem todas as
ciências ou artes. Calderón dirá que a lógica é a “ama de leite” das ciências.
Em breves palavras, trata-se de ciência serviçal,
ou seja, que presta serviço a todas as demais, que nela se apóiam. Daí podermos
dizer o seguinte: a lógica possui preeminência
instrumental, mas não ontológica. Não por outro motivo, nem todo lógico é bom filósofo, mas todo verdadeiro
filósofo há de ser bom lógico, pois a filosofia é muito mais do que
simplesmente lógica. Muitos há que dominam a arte de raciocinar sem jamais se terem
dedicado ao estudo do ser e do movimento, ou seja, das questões metafísicas e
físicas mais universais. Pensar bem é, portanto, algo que está à mão de todos, mesmo
de um analfabeto, ao passo que ser filósofo requer talentos e dons muito
superiores. A propósito, a história da
filosofia moderna apresenta-nos uma imponente coleção de maus lógicos, ou então
de bons lógicos que foram péssimos metafísicos — razão pela qual lhes
faltou o olhar panorâmico sobre os mais candentes problemas relacionados ao ser
e à verdade.
A lógica, de acordo com o melhor da escola
tomista, divide-se conforme as três operações da inteligência: o chamado conhecimento dos indivisíveis ou incomplexos;
a composição e divisão de raciocínios;
e a ação de discorrer do mais conhecido ao
menos conhecido. Da primeira operação tratou Aristóteles, que nisto foi
seguido por Tomás de Aquino, nas Categorias;
da segunda, em Sobre a Interpretação,
e da terceira nos Tópicos, na Retórica e na Poética.
Uma boa
formação filosófica requer o estudo acurado destas obras aristotélicas, assim
como dos Diálogos de Platão, antes de que se estudem os modernos. Desconsiderar isto é
um dos muitos e graves problemas contemporâneos do ensino universitário da filosofia, o qual muitas
vezes acaba por mutilar a alma de jovens que, noutro ambiente, poderiam
progredir nos estudos.
Afinal, dar-lhes de beber Nietzsche, Hume ou
Kant logo nos primeiros períodos é como envenenar uma criança e, no mesmo ato,
impedir que alguém lhe traga o antídoto salvador.
E tal antídoto passa necessariamente pelo domínio da arte do
bem pensar, chamada lógica.
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1- “Ars directiva ipsius actus
rationis, per quam homo in ipso actu rationis ordinate, faciliter et sine
errore procedat”. Tomás de Aquino. In I Post. Anal., lec.1, n.2-3.