Ao jovem amigo Daniel
Guilhermino
Sidney
Silveira
A certa altura do clássico De Malo, Santo Tomás de Aquino afirma que as trevas não são o
contrário da luz, mas a sua privação.[1] Noutras palavras, a escuridão é, em si mesma, nada — e o nada não pode ter contrários. Da mesma maneira, só podemos
dizer por intermédio de uma analogia que a mentira e o erro são contrários à
verdade:
> a mentira é essencialmente a negação expressa de
algo sabido,
e apenas acidentalmente é contrária à
verdade. Em suma, que o negado conhecido seja contrário à verdade é contingente,
mas não necessário: quem diga a um cego de nascença, por exemplo, que o azul do
céu é vermelho não afirma algo contrário à verdade, mas diferente dela, pois as
cores não têm contrários entre si.
> o erro é essencialmente a ausência da adequação
devida entre a inteligência e as coisas, e acidentalmente
é o contrário da verdade. Muitos erros trazem inclusive verdades parciais,
posteriormente aproveitáveis pela ciência no decorrer do tempo.
Expressemos as coisas com a maior simplicidade
possível.
Exatamente como ocorre com a luz, a verdade não tem contrários no plano
ontológico, mas tão-somente no
lógico, e neste sentido se diz que o verdadeiro é contrário ao falso. E não
poderia ser diferente, porque a falsidade não está nas coisas naturais ou
artificiais, mas no entendimento que as julga erroneamente. Não por outro
motivo, afirma o Aquinate numa famosa passagem do monumental De Veritate que as verdades das coisas são
medidas pelo intelecto divino, do qual pendem. Ou seja, se tomamos como
parâmetro o intelecto humano, as verdades são acidentais às coisas, pois o
homem pode errar em seu julgamento e a essência das coisas continuará a ser o
que é; mas se tomamos como parâmetro o intelecto divino, as verdades são intrínsecas
às coisas, pois é a inteligência divina que as produz e as mantêm no ser.[2] A veracidade das coisas é, pois, reflexo
da Verdade primeira, e se elas tivessem em si mescla de erro ou falsidade isto
implicaria haver falhas na inteligência de Deus, o que excluímos por absurdo.
Observados estes breves pontos, digamos que uma vida espiritual genuína pressupõe o contínuo
esforço do homem por manter-se na verdade. Ser veraz é, pois, árdua
conquista à qual é impossível a qualquer um de nós chegar mediante esforços
próprios, apenas: são necessários auxílios de ordem intelectual (aperfeiçoamento da inteligência pelo aprendizado
contínuo em diferentes áreas do conhecimento), moral (aperfeiçoamento da vontade pelo aprendizado das coisas boas
que devem ser escolhidas em detrimento das más), e, sobretudo, espiritual (a graça, ajuda vinda do alto).
Viver na verdade é, pois, deixar-se entranhar pela Verdade primeira, Deus
mesmo. E não fazê-lo é deixar-se culpavelmente vencer pelas próprias
debilidades.
Neste contexto, se por pecado original entendemos
a tendência do homem à mentira, ao erro e à maldade, ninguém nos peça para
trazer evidências quanto a isto; negá-lo seria estupidez pura e simples
(abramos uma só página de qualquer grande jornal e sintamos o odor do abismo, ou
seja, da corrupção e das atrocidades dos homens). Só os estultos ou as pessoas
imaturas contemplam a natureza humana com demasiado otimismo, pois todos falhamos por vícios, ignorância ou malícia.
O apaixonado sucumbe às fraquezas; o ignorante perde bússolas pelas quais poderia
orientar-se melhor; e o malicioso escolhe o caminho errado em troca de
vantagens pessoais. Quando não há mais vantagem a obter, restam
ao malicioso o desespero, o ódio e a vontade macabra de trazer os demais
para a agonia em que jaz.
A mescla desigual dessas três realidades existe
em cada um de nós: somos mais ou menos viciosos, mais ou menos ignorantes e
mais ou menos maliciosos. Quem não
enxerga que a falibilidade circunscreve toda a débil e fugaz existência humana neste
vale de lágrimas é um tolo, alguém que sequer deu o primeiro passo para
ficar espiritualmente de pé. E não enxergar bem a si próprio é uma maneira de
enxergar mal o mundo, perder o senso de proporções e de realidade. Por sua vez,
enxergar mal o mundo implica cair, cedo ou tarde, numa espécie de nostalgia
ilógica do caos, deixar a mente perder o sentido de unidade que lhe é próprio e
sucumbir ao desgoverno de uma imaginação cada vez mais apartada do real.
Qual é, pois, a primeira conseqüência desse
estado? Assim como sucedeu ao filho pródigo, o sujeito perde a noção das prioridades, das urgências — o que é
fatídico, pois toda a vida espiritual consiste
justamente numa hierarquização das
urgências. No fazer com que estas coincidam com as coisas importantes,
e as coisas importantes coincidam com as necessárias. Esse caminho só chega a
bom termo quando o homem compreende o seguinte: Deus é urgentíssimo, pois é o
único verdadeiramente necessário, sem o qual nada existiria. Todas as demais urgências
são relativas a esta. “Buscai primeiro o reino dos céus e a sua justiça, e tudo
vos será dado em acréscimo”, ensina Nosso Senhor. Quem não entende isso está
mutilado para compreender a dimensão sacrifical do amor.
Estar
ciente da miséria de sua condição faz o homem chorar, e bem-aventurados os
que choram, pois serão consolados. Daí dizer Santo Agostinho, no livro De Sermone Domini in Monte, que essa
bem-aventurança expressa no Evangelho está associada ao dom da ciência. E a tal choro
humilde de reconhecimento da própria pequenez os cristãos deram o nome de contrição dos pecados, estado psicológico
prévio para o encontro pessoal com a misericórdia divina. Trocando em miúdos: só uma alma contrita
pode obter o perdão; em contrapartida, a alma orgulhosa acaba
perdendo-se neste mundo, e provavelmente também no outro, pois de pequenas
prevaricações e impenitências chega ao fim da vida com o espírito fechado à ordem
da graça, e então só mesmo um milagre grandioso pode evitar a morte em impenitência
final.
O
sacramento da penitência não é instrumento de autoconhecimento, mas o perdão
objetivo de Deus, que salva a alma da perdição. O autoconhecimento mínimo
das próprias debilidades é na verdade condição prévia, e não o fim a ser buscado.
Até porque o cristão sabe, por fé, que no céu o conhecimento de si e do universo
inteiro será perfeito, ou seja, obtido a partir da visão da Causa Primeira. Esse
conhecimento será uma dádiva à qual a Igreja Católica, e com ela Santo Tomás,
chama de visão beatífica da essência
divina. Trata-se de uma vida na verdade, com a verdade e para a verdade.
Chegar a essa vida é de graça.
Basta pôr Deus em primeiro lugar, nunc et semper.
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1- Tomás
de Aquino, De Malo, I,
art. 1, ad.5.
2- “Sed
veritas, quae de eis dicitur in comparatione ad intellectum divinum, eis
inseparabiliter concomitatur, cum nec
subsistere possint nisi per intellectum divinum eas in esse producentem”. Tomás
de Aquino, De Veritate, I,
art. 4, resp.