Ao amigo Carlos Nougué
Sidney
Silveira
A bondade moral não é uma espécie de brotoeja repentina
— algo que surja, que irrompa, que ecloda de uma hora para outra. Não é acontecimento
involuntário. Não é ação isolada. Não é distração episódica chegada a bom termo.
Não é fruto da imaturidade. Não é volúpia de apetites sensitivos, embora estes
tendam a bens tópicos, específicos: appetitus
non est nisi boni,[1] já dizia Santo Tomás de Aquino no distante século XIII. A bondade moral é a magna
vitória da inteligência e da vontade na relação do homem com o mundo. É hábito espiritual adquirido de olhos abertos, e não sem esforço
continuado.
No plano metafísico, a bondade é ser; no plano ontológico,
a bondade é a forma dos entes; no plano cognoscitivo, a bondade é a verdade; no
plano moral, é o bem apetecido pela vontade iluminada pela inteligência; no
plano artístico, é a beleza. E é graças ao bem metafísico — o ser, em sentido
absoluto — que os males são possíveis nos demais âmbitos. Noutra formulação, não há males sem um horizonte de bem que os
possibilite. Daí dizer Santo Agostinho, no seu estilo de rara beleza
retórica usada contra os maniqueus, que mesmo os demônios, para serem maus,
precisam fazer uso de faculdades boas, como as de entender e querer. E que pecado
não é o apetecer uma natureza má, pois nenhuma natureza o é, mas renunciar no ato
a outra superior. É usar mal do bem: malum
est enim male uti bono.
O mal é, pois, privação do bem devido. Por isso qualquer
maldade ou deficiência — por ínfima que seja, e do tipo que for — pressupõe a realidade
metafísica, física ou moral da bondade. As formas precisam do ser, mas o
Próprio Ser não está circunscrito a nenhuma forma; a cárie precisa do dente,
mas o dente não necessita da cárie; um câncer é nada, sem o órgão ou os órgãos
em que se dá; o hipócrita só pode ser assim chamado em razão da possibilidade mesma
de ser bom e virtuoso, que ele rechaça. Tudo isso porque não há maldade onde a bondade é impossível,[2] assim como não é culpado de não fazer o bem aquele que, por alguma razão, esteja
circunstancialmente impedido de fazê-lo. Em contrapartida, existe bondade onde
o mal não deita raízes.
Na escala das depravações humanas, vale
assinalar a existência de um tipo cada vez mais corriqueiro, a que chamamos maldade cultural. Esta se apresenta em todo
o seu maligno esplendor quando aquilo que se considera “arte” perde qualquer
possível conexão com duas das dimensões mais importantes da pessoa humana:
fazer e contemplar. Ora, se a arte
sempre foi, desde a antiguidade mais remota até a ruptura iniciada na modernidade
e consumada na pós-modernidade, a reta
razão aplicada ao fazer as coisas (recta
ratio factibilium, nas palavras de Tomás de Aquino), é porque se tratava de uma virtude especulativa elevada, que fazia
toda a diferença no cômputo final da obra feita. O artista era o detentor de
um hábito operativo que, por sua vez, abarcava inúmeros conhecimentos sem os quais a sua arte não alcançaria a excelência.
Neste sentido, há mais ciência numa só escultura
de Michelangelo do que em todas as “instalações” (sanitárias?) dos artistas
plásticos contemporâneos, somadas. Há mais arte numa só partitura de Tomás de Victoria
ou Bach do que em toda a música pop
do século XX. E dizemos isto não por uma espécie de elitismo besta, mas por simples
constatação empírica proveniente da comparação entre as realizações artísticas
aqui referidas. E perdoem-nos os neocríticos fabricadores e adoradores de
ídolos, mas digamos sem constrangimento: entre uma catedral gótica e as curvas
simplórias de todos os prédios de Oscar Niemeyer existe o mais intransponível
dos abismos estéticos, palpável nos distintos efeitos que causam na alma de quem
os contempla. De um lado, pasmo extático de pessoas verdadeiramente arrojadas a
uma instância de misteriosa beleza e supina harmonia; de outro, espasmo blasé do
“entendido” baba-ovo, adulador da própria imagem projetada nos artistas que
comenta.
Ah, os “entendidos”! Tantas vezes são boçais
engajados imiscuídos na cultura — não obstante ostentem um que outro título
universitário, adquirido sabe Deus como —, e quanto mal fazem com os seus
pitacos pomposos publicados na imprensa e hoje também na internet, traduzíveis
na irônica expressão castelhana que ouvi recentemente do filósofo tomista e
amigo Luiz Astorga: as rebuscadas opiniões desses intelectuais da cultura são...
tonterías solemnes. Trata-se da arte
loquaz de criar conceitos elevadíssimos a respeito do nada, do pueril, do tosco
ou mesmo do bizarro, e renegar as coisas mais óbvias que não escapam ao comum
dos mortais. Pau é pau, pedra é pedra, mas não na cabeça destes ilustres senhores,
e se lhes dizemos que entre a genialidade artística de Dante, Camões ou mesmo
Bocage e a mediocridade pretensiosa da poesia concreta dos irmãos Campos existe
galáctica distância, ofendem-nos.
Agora chega a notícia de que certo artista
contemporâneo, o espanhol Gonzalo Orquín, montou uma exposição de arte com
fotos de casais homossexuais a beijarem-se dentro de Igrejas católicas, diante
de altares e sacrários. Ao ler a
reportagem sobre este extraordinário trabalho criativo e ver as fotografias
dos referidos ósculos “homoafetivos”, estalados diante de verdadeiras
obras-primas da arquitetura, da escultura e da pintura sacras, não pude deixar
de pensar algumas coisas:
> Acometido
duma espécie de patologia coletiva em escala internacional, o homem tornou-se
impermeável ao influxo da beleza, ou seja: sofreu um déficit de potência
contemplativa;
> O
resultado da obra de arte tornou-se obsoleto, sendo em seu lugar definitivamente
entronizadas as intenções subjetivas do artista, transformadas elas próprias em
“arte”, dependendo da capacidade de divulgação e convencimento das cabeças
pensantes ligadas à mídia cultural, ou a ela pertencentes.
>
Da
arte restou uma atitude iconoclasta e tola, o desejo — em si demagógico e midiático
— de permanentemente quebrar “paradigmas”, numa espiral que promete não mais
parar.
Ora, arte é, por definição, uma coisa difícil de
fazer. Ou, noutra proposição: o que
qualquer um faz sem maiores dificuldades não pode ser considerado “artístico”
sem um grande esforço de torção
semântica, se levarmos em conta as grandes realizações estéticas do homem —
do momento em que começou a expressar-se artística e filosoficamente até os
dias atuais. Em síntese, estamos a falar da diferença entre os rabiscos inocentes
e mal-formados de uma criança que desenha na escola e os trabalhos de Rembrandt
gravados em chapas de metal com buril. Esta é mais ou menos a distância entre essas
bitocas sacrílegas divulgadas como "manifestação artística" e o ambiente de
beleza sublime, de notável realização estética, das igrejas em que elas foram canhestramente elevadas ao patamar de arte.
Fiquei a olhar essas fotos produzidas e a conceber
a seguinte situação imaginária: levado pela mão do demônio ao pináculo da
beleza, para ser tentado, o homem pôs-se a contemplar o próprio umbigo. Revelou-se
incuravelmente míope, por não possuir mais as precondições espirituais
necessárias à percepção da bondade que existe na beleza. A luz zenital da arte transformou-se
em trevas, aos seus olhos.
E onde os homens são negligentes ou distraídos na
observação dos bens com que deparam, a cultura não pode senão transformar-se na
mais competente difusora da corrupção do espírito.
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1- "O
apetite não é senão do bem".
2- No
plano ontológico, a título de exemplo, uma pedra não pode ser dita má porque
não vê as coisas, pois não há tal possibilidade em sua forma entitativa. No
plano teológico, vale citar o exemplo dos condenados ao inferno (sejam homens
ou anjos caídos): embora eles próprios estejam arrojados irremediavelmente no
ódio e na maldade, o fogo que os consome e os ata é um grande bem, representativo
da justiça divina. Ignis aeternus malos
crucians non malus, diz Agostinho em seu “De Natura Boni”. Nesta passagem, logo
após frisar que o fogo do inferno é um bem, o Bispo de Hipona usa como analogia
a luz que atormenta os olhos enfermos, sem todavia ser má. Em suma, mesmo no
inferno a maldade tem uma instância de bondade ontológica em que está submersa.