quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Preconceitos contra a inteligência, e um antídoto

Sidney Silveira
As principais correntes da filosofia do século XX nasceram da confluência de diferentes intuicionismos — ou seja, de teorias que, de uma forma ou de outra, partiam de uma gnosiologia que começava por alguma espécie de “intuição”, ou da pressuposição de que a inteligência é inapta para alcançar as verdades e os valores fundamentais. Vemos nelas uma radical negação do estatuto ontológico da inteligência, o que fez crescer o subjetivismo de forma assustadora, como se a objetivação da realidade, por parte da inteligência, fosse sempre algo deformante. Por esta razão deveríamos, de acordo com essas filosofias (as quais têm fortíssimas ressonâncias, ainda hoje), deixar as coisas “falar por si”, captar “pré-intelectivamente’ as suas essências. Ou, nas palavras de Husserl, precisamos ir às coisas mesmas vazios de quaisquer conhecimentos ou pressuposições, deixar que elas se manifestem ou se revelem por si. Em suma: devemos, ainda nas palavras de Husserl, “suspender o juízo”, e, com essa suspensão (epoché), encontrar um atalho para chegar à essência, ao eidos, ao quid est das coisas. E o filósofo alemão vai ainda mais longe, ao afirmar que, para filosofar, é preciso colocar tudo entre parênteses, a começar pela existência do mundo. Não consigo conceber uma atitude mais solipsística do que esta.

Esse ataque contra a inteligência, uma verdadeira blitzkrieg, tem várias configurações, no meio das quais vemos o que alguns historiadores chamam de mentalidade, ou seja: a idéia ou as idéias prevalecentes que subjazem às ações e aos valores de uma época. E tal mentalidade, enraizada fortemente no século XIX e com frutos maduros no século XX, é configurada pela total descrença nos dois valores fundamentais, para o homem: o bem e a verdade — captáveis, respectivamente, por nossas duas potências principais, a vontade e a inteligência. Esses dois valores objetivos são os que configuram positivamente a relação do homem com o mundo (o mesmo mundo que Husserl diz ser preciso pôr entre parênteses, para filosofar). Perdidas essas duas colunas, o homem perde com elas a possibilidade de constuir uma civilização, razão pela qual não lhe restará outra coisa senão assistir ao aumento crescente da barbárie, ainda que sob as máscaras mais diversas.

Vejamos as premissas dessas teorias antiintelectualistas, algumas das quais retiradas do instigante livro de Derisi intitulado Tratado de existencialismo y tomismo:

Kant: abriu um abismo insuperável entre a inteligência e as coisas, com a tese da incognoscibilidade da coisa em si. Não lhe restou uma opção senão a de criar um apriorismo transcendental. Uma quimera sofisticada.

Bergson: diz que a relação da inteligência com as coisas se funda em uma intuição supra-racional, já que há, em sua opinião, uma verdadeira irredutibilidade entre a consciência e os nossos atos e/ou fatos vitais.

Nietzsche: em seu parecer, a vida deve desenvolver-se plenamente pela afirmação da vontade. Em suma, a vida não pode e não deve ter amarras gnosiológicas, e nem metafísicas, éticas ou morais. O homem é dotado de um instinto irracional, cuja base (a única válida) é a sua ânsia de domínio sobre os demais. Nietzsche ficou catatônico praticamente em todos os últimos dez anos de sua vida. O momento e o modo como a sua doença começa valem um texto à parte, o qual fica para outra ocasião.

Kierkegaard: A realidade, a verdadeira, não é objetiva, mas subjetiva. E a inteligência não é capaz de alcançar a verdadeira realidade, que é ininteligível para o homem e, em suma, não se ajusta a exigências racionais ou dialéticas. Diga-se que esse preconceito de Kierkegaard contra a inteligência é, diretamente, caudatário de sua visão protestante, segundo a qual o homem, depois do pecado original, corrompeu essencialmente todas as suas potências.

Husserl: O seu método fenomenológico parte da intuição direta das essências, de que já falamos em diferentes textos. Entre outras coisas, a sua filosofia tende a transformar o objeto em algo absolutamente irredutível ao sujeito dotado de inteligência — o que preparará a concepção de filosofias que lhe são diretamente devedoras, segundo as quais entre a realidade e o pensamento há uma espécie de desarticulação fundamental irresolvível.

Max Scheler: Aplicou a fenomenologia husserliana à vida espiritual. Para ele, os valores são essências alógicas, e não essências captáveis por um processo intelectivo. Em suma, as coisas são valiosas não porque a inteligência lhes tenha descortinado o valor real, mas porque as sentimos assim, e ponto final.

Heidegger: É outro para quem o método válido, para a análise do ser, é o fenomenológico. Ou seja: devemos fazer com que o ser se revele por si, descubra-nos ele mesmo a sua íntima estrutura. Trata-se de um método intuitivo pelo qual a existência se revela por si mesma. Malgrado alguns insights de sua obra Ser e Tempo, não se pode dizer que haja uma congruente teoria do conhecimento em Heidegger, pois o conhecimento que o Dasein (o qual, em sua filosofia, não é outro senão o ente humano) tem de si mesmo provém não da intelecção de si e dos demais entes, mas de uma angústia existencial — a angústia, segundo Heidegger, de se ver arrojado ao nada, que é o seu destino. Somos para o nada. Bonito.

Sartre: O método do qual parte Sartre é, com matizações, o mesmo de Husserl e de Heidegger: devemos ir às coisas mesmas. Vê-las como se manifestam e se revelam, sem maiores interferências da nossa inteligência. Até porque não há, em Sartre, um ser em si captável pela inteligência, mas apenas aparências, as únicas acessíveis ao entendimento humano.

Muitos outros autores intuicionistas ou irracionalistas poderiam ser arrolados ou citados aqui, para mostrarmos o quanto essa mentalidade propagada por filosofias quiméricas ainda é predominante: uma mentalidade para a qual os valores são meras criações arbitrárias do homem (não objetivamente captáveis pela vontade, apetite intelectivo do bem), e as verdades fundamentais, inacessíveis (ou seja, não captáveis pela inteligência). Esta é a mentalidade de hoje, e não lhe resta ser outra coisa senão: imoralista, voluntarista, individualista, sexualista, irracionalista e relativista. Em suma, liberal!

A dissolução das idéias e das coisas, já em marcha acelerada no mundo contemporâneo (talvez em estágio terminal), tem em Santo Tomás um grande antídoto — dado o seu realismo gnosiológico, a sua profunda antropologia filosófica e, principalmente, a sua metafísica do ser, que dá respostas a todos esses grandes preconceitos contra a inteligência.

Estudemos, pois, a obra de Santo Tomás de Aquino. Com método, disciplina e perseverança. E, sobretudo, com amor.