terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas (VI)

Carlos Nougué
Pergunta prévia aos sedevacantistas
Como já dissemos diversas vezes, o desenvolvimento do tema que nos ocupa nesta série é lento, longo, e requer paciência do autor e do leitor. Negamo-nos peremptoriamente a responder “na mesma moeda” aos artigos dos sedevacantistas que vêm pululando na Internet contra a tese aqui esgrimida. Por quê? Pelo simples fato de que em tais artigos eles não esgrimem propriamente uma tese, mas rótulos, palavras de ordem, ofensas até, no melhor estilo da política maquiavélica moderna, em que a propaganda é a alma do negócio. Se o fizéssemos, estaríamos prestando um desserviço à verdade, e neste caso faz parte da verdade o fato de que, como toda e qualquer forma de pensamento mágico no sentido em que usamos aqui esta expressão, o sedevacantismo não suporta a complexidade do real, particularmente a crise vivida atualmente pela Igreja, e reduz tudo – complexidade do real e crise da Igreja – a um elemento simples, capaz de reconfortar o coração aflito de seus seguidores: “os papas conciliares, por heréticos, não são Papas”. Quem o decretou? Ora, eles mesmos, os sedevacantistas, por motivos variados, mas mais comumente invocando a Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV.

Pois bem, o real caráter do sedevacantismo e a falácia de sua “conclusão” serão devidamente mostrados, mas, repita-se, no ritmo que requer a exposição da verdade. No entanto, e quem sabe até para que os próprios sedevacantistas reflitam um pouco em quão precipitada é sua “conclusão”, relembramos a eles algo que se disse no primeiro artigo desta série:

● Em 6 de abril de 1560 (ou seja, pouco mais de um ano depois da referida Bula), Pio IV, sucessor imediato de Paulo IV, emitiu uma documento que modificava algumas medidas disciplinares daquela. Com efeito, lê-se na História dos Papas de Ludovico Pastor: “Em clara referência a Paulo IV, [o Papa Pio IV] publicou uma declaração segundo a qual todos os que haviam incorrido em alguma censura, em excomunhão ou outra condenação por causa de heresia podiam submeter outra vez sua causa a uma nova averiguação judicial, não obstante todas as sentenças de seus predecessores”.

● Lê-se ainda na História dos Papas de Ludovico Pastor que o mesmo Pio IV publicou, em 9 de outubro de 1562, uma Bula destinada a legislar sobre o Conclave para a eleição pontifícia, a qual também alterava disposições disciplinares da Bula de Paulo IV. Dizia o documento de Pio IV: “Ninguém pode ser excluído da eleição sob pretexto de que está excomungado ou incorreu em alguma censura”, ou seja: “não obstante as sentenças de Paulo IV, os condenados (por exemplo, depostos) e os excomungados ou censurados (incluindo Cardeais depostos) podiam ser eleitos no Conclave”.

Pois bem, perguntamos então aos sedevacantistas que invocam para centro de seus argumentos a mencionada Bula de Paulo IV: por ir contra disposições essenciais do documento de seu antecessor, teria sido herético também Pio IV e ipso facto teria estado vacante a Sede também durante seu pontificado?

* * *

Mostrou-se no artigo anterior a falsidade central da tese sedevacantista que primeiramente nos ocupa: a da infalibilidade do sensus fidei de que seria dotado cada fiel, à qual corresponderia uma pregação da hierarquia eclesiástica com mero caráter de persuasão. Na verdade, como mostrado, tal noção é uma perversão da verdadeira doutrina sobre o sensus fidei. Resta-nos mostrar, porém, ainda que brevemente, que esta forma de sedevacantismo de certo modo partilha tal perversão com o protestantismo, por um lado, e com o modernismo, por outro. Feito isso, passaremos no próximo artigo a refutar a segunda falsidade da tese adversária: a reconstrução ideal da história que ela opera.

Pois bem, o principal traço da heresia protestante é o atribuir a cada crente (protestante, claro) um sensus fidei infalível, tal como, mutatis mutandis, o faz o nosso sedevacantista de primeiro tipo. Mas como se livra o protestantismo do intolerável papel de magister atribuído ao Magistério da Igreja? Por dois princípios, quais sejam: a) o da “sola scriptura”, com o qual se “congela o Traditum revelado nas Sagradas Escrituras” (P. Calderón, ibid.) e se transforma Cristo num Deus de papel; b) o do “livre exame”, pelo qual se atribui o carisma da infalível verdade à fé individual. E é este, em verdade, o principal desses dois princípios, porque é graças a ele que cada fiel individual saberia o que é de fato revelado e o que não o é, o que decorre e o que não decorre do revelado, etc. Naturalmente, este princípio, essencialmente liberal, entra necessariamente em contradição com o imobilismo do primeiro, e está na origem do caráter entrópico do protestantismo, ou seja, de seu fracionamento ao infinito em seitas que vão do luteranismo “ortodoxo” até a Igreja do Cuspe de Cristo... E como não seria assim se, como diz o Padre Calderón (ibid.), “a doutrina que possa seguir-se [da meditação pessoal] das Escrituras, conquanto seja certamente infalível pela garantida inspiração do Espírito Santo a cada crente, não tem por que ser imposta ao vizinho: toda teologia é pessoal e para proveito próprio, [e] que ninguém pretenda então constituir-se mestre dos demais”...?

Naturalmente, não estamos dizendo que a forma de sedevacantismo que nos ocupa em primeiro lugar sustente o princípio protestante do livre exame. O que, sim, dizemos é que: a) sustenta um dos pressupostos desse princípio, qual seja, a infalibilidade de um “instinto da fé” ou sensus fidei individual “pela garantida inspiração do Espírito Santo a cada crente” (crente “autêntico”, adjetiva o nosso sedevacantista); b) pressupõe que o Espírito Santo inspira ao conjunto dos crentes autênticos a mesma coisa, razão por que em face do sensus fidei de cada fiel autêntico ou da unidade do sensus fidei do conjunto dos crentes autênticos o Magistério da Igreja não tem senão caráter de persuasão, com o que, tal qual o protestantismo, conquanto mutatis mutantis, este tipo de sedevacantismo acaba também por resvalar pela ladeira do liberalismo e sua ojeriza ao caráter magisterial da autoridade; c) tal como o protestantismo, tem o sedevacantismo caráter entrópico: que o digam os cerca de 15 “papas” atuais que saíram de suas oficinas... (Não se entenda mal: bem sabemos que algumas correntes de sedevacantismo mitigado não julgam legítimo eleger um papa sem a devida jurisdição para tal. Mas isso não contradiz o caráter essencialmente entrópico do sedevacantismo como um todo, do qual também são resultado essas mesmas correntes mitigadas.)

Por outro lado, todavia, esta forma de sedevacantismo partilha, sempre mutatis mutandis, a perversão da noção de sensus fidei própria do modernismo. Com efeito, como o protestante, o modernista (que é um católico liberal de certo tipo) abomina o caráter magisterial da autoridade, mas tampouco quer enveredar pelo caminho do fracionamento protestante. Assim, se, “ao comer do fruto oferecido pela serpente kantiana” (P. Calderón, ibid.), ele “descobriu” que as fórmulas conceptuais escolásticas herdadas do passado não serviam para expressar o mistério divino e concluiu por isso que devia aderir ao livre exame, concluiu também, todavia, que para evitar um fracionamento ao modo protestante o livre exame não devia ser individual ou individualista, mas comunitário.

Em função desse redirecionamento do princípio protestante, passou-se a crer que a revelação, expressa especialmente, sim, pelas Sagradas Escrituras, foi porém dada por Deus imediatamente não a cada fiel, mas tampouco exclusivamente à Hierarquia eclesiástica, e sim ao conjunto da Igreja, sem distinção entre fiéis e clérigos, mas tampouco sem hierarquização entre eles.

Por isso a verdadeira autoridade em matéria de fé, a sua regra próxima, seria na verdade o resultado do diálogo comunitário de todo o povo de Deus em seu livre exame coletivo das Sagradas Escrituras, donde a fatuidade ou mutabilidade das formulações não só escolásticas, mas também dogmáticas: a Hierarquia eclesiástica, incluído naturalmente o Papa, não deveria exercer senão o papel de mediador desse diálogo. Sucede porém que, como, apesar de “assistido infalivelmente pelo Espírito Santo”, o livre e dialogado exame comunitário do modernismo não pode terminar nunca, por tropeçar nas insuperáveis e volúveis contradições entre os multitudinários participantes de tal concílio permanente, aos dogmas outrora decretados ex cathedra pelos Sumos Pontífices nada os vem substituir, nenhuma decisão, nenhuma orientação além da linha geral de seguir dialogando per omnia saecula saeculorum.

Pois bem, não dizemos que o nosso sedevacantista de primeiro tipo defenda a correção modernista do sensus fidei protestante. Mas dizemos, sim, que: a) partilha com ela, mutatis mutandis, a suposição da assistência garantida do Espírito Santo ao conjunto dos féis (fiéis “autênticos”, adjetiva ele), sem marcada hierarquização entre crentes e hierarquia eclesiástica; b) por pressupor que o Espírito Santo inspira ao conjunto dos fiéis autênticos a mesma coisa, considera que o Magistério da Igreja tem, no máximo, caráter de persuasão, razão por que não lhe seria inconveniente o papel de mediador – não, é claro, de um diálogo com as características do diálogo modernista, mas sim, digamos, de possíveis arestas ou mal-entendidos entre os diversos “assistidos infalivelmente pelo Espírito Santo”; c) ainda mutatis mutandis, partilha com o modernismo, como com o protestantismo, a ojeriza ao caráter magisterial da autoridade.

(Continua.)