sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Predestinação à salvação (II)

Sidney Silveira
No primeiro artigo desta série, esqueci-me de enquadrar o tema da predestinação em outro, que lhe é anterior: o da Divina Providência.

Assim, vale dizer que — de acordo com Santo Tomás e com o Magistério da Igreja — a predestinação é um dos modos da Providência. Esta última se ocupa da disposição e ordenação dos meios aos fins que lhes são próprios. Neste contexto, aponta o Angélico que a ordem da criação comporta um duplo fim:

a) natural, ao qual todas as coisas tendem, pelo impulso das potências inscritas em suas próprias naturezas;
b) sobrenatural, no qual as criaturas dotadas de vontade e razão são ordenadas — pela generosidade da vontade divina — à bem-aventurança da visão beatífica, ou — pela justiça divina — à condenação, pela qual os réprobos sofrerão a pena devida por seus pecados, de acordo com a sabedoria e presciência divinas.

A Providência tem algumas outras características, que o Santo Doutor destaca:

1- Ela é universal, por estender-se a todas as coisas;
2- Ela é imediata, pois é concebida desde a eternidade. Ou seja: fora do tempo*, e não mediatamente, no tempo — embora, muitas vezes, seja executada sob a moção de causas segundas, sejam temporais (humanas) ou eviternas (angélicas).
3- Ela salva e conserva a contingência das coisas criadas. Diz Santo Tomás: “Sucede infalível e necessariamente o que a Providência dispõe que suceda de modo infalível e necessário. E sucede contingentemente o que a Providência dispõe que suceda de modo contingente”. (Suma Teológica, I, q. 22, a.4)

Pois bem, esse breve passo para trás era realmente necessário, para que nada de essencial ficasse por dizer, no tocante ao tema de que se trata. Fixemos, pois, muito bem: a predestinação é um dos modos da Providência Divina.

Voltando agora ao tópico da predestinação, o notável ensaísta da referida questão da Suma, na minha antiga edição (decerto um monge, pois sequer assina o nome), compõe um quadro para mostrar que Santo Tomás faz uma subdivisão, em prol da clareza dos seus argumentos teológicos:

1ª: NATUREZA DA PREDESTINAÇÃO

a) Aqui o Doutor Comum trata dos meios sobre os quais versa a predestinação (objeto formal);
b) De seu contrário: a reprovação;
c) Do predestinante (causa eficiente: Deus);
d) Do predestinado (causa material: o homem).

2ª: PROPRIEDADES DA PREDESTINAÇÃO

a) Aqui, da certeza [divina]: 1º. Quanto ao êxito da predestinação; 2º. Quanto ao exato número dos predestinados.
b) E aqui se pergunta se a predestinação pode ou não ser ajudada por nossas boas obras.

Outro ponto a destacar-se é que a predestinação dá eficácia e perseverança à vocação, à justificação e ao bom uso da Graça, de acordo com o abscôndito monge da minha amada Suma. A predestinação faz, também, com que todas as condições da vida natural — boas e más — se convertam para o bem do predestinado. Aqui, aproveito para abrir um breve parêntese e dar um testemunho pessoal, que não julgo inútil. Afinal, a fé implica, necessariamente, o testemunho, ainda que o temperamento ou as condições externas às vezes não o favoreçam. E o implica, justamente, porque ela é um bem que Deus quer que nós difundamos, com palavras e obras.

Hoje, olho em perspectiva todos os acontecimentos da trajetória de minha tardia conversão (com 40 anos) e vejo que, dado o meu absoluto desmerecimento, foi a Providência Divina que fez uso dos instrumentos (meios) certos, para que eu aprumasse o caminho. Só me resta, pois, agradecer continuamente ao Todo Poderoso e implorar o perdão por uma vida de tantos erros passados (inclusive certa má literatura por mim praticada), e de tantos pecados contra mim, contra o próximo e, sobretudo, contra Deus. E rezar para estar entre os predestinados — escolhidos por pura e simples dileção divina, e não por supostos méritos humanos. E, por fim, agradecer orantemente a Santo Tomás, a cuja devoção vamos, eu e o Nougué, fazer em breve um chamado no Contra Impugnantes.

No texto seguinte desta série, prosseguiremos com mais um quadro sinóptico sobre o tema da predestinação, trazendo um vislumbre da maneira extraordinária como Santo Tomás faz o seu approach teológico e desenvolve lindamente a questão.

* Noutra ocasião, se a oportunidade for propícia, falaremos sobre o De instantibus, texto atribuído a Santo Tomás.