Sidney Silveira
De acordo com Santo Tomás, o primo cognitum é o ente enquanto oposto ao nada, quer dizer: simplesmente algo que é, embora não se saiba neste primeiro momento como e por que é. Em resumo, o ato pelo qual se inicia em nós o conhecimento é a percepção do ente extramental — situado, como o próprio termo indica, fora da nossa mente, pois não depende dela para ser o que é. Daí dizer o tomista Garrigou-Lagrange, em seu livro Le réalisme du principe de finalité, que a inteligência marcha do conhecido ao desconhecido, e o primeiro conhecido é, repitamos, o ente oposto ao nada, em meio ao qual estamos desde sempre.
Noutras palavras, podemos dizer o seguinte: seja qual for a realidade com a qual deparemos, ela não pode achar-se fora do ente. Se a inteligência contempla algo, trata-se sempre de algo que é, e por esta razão o realismo gnosiológico aristotélico-tomista não cansa de repetir que, assim como o objeto formal próprio da vista é a cor, e o do ouvido é o som, etc., o da inteligência é o ente. Mas que ente é esse primeiramente apreendido? Resposta: o das coisas sensíveis, ou, em termos técnicos, a essência das coisas materiais (quidditas rei materialis). O caminho natural da inteligência vai, pois, do sensível ao inteligível. Aristóteles já o sabia.
Diferentes foram as tentativas, a partir da modernidade, de estabelecer um tipo de conhecimento intuitivo, ou seja, uma clara visão direta dos inteligíveis — intento que tem a sua primeira formulação, recheada de premissas teológicas, em Duns Scot. Ocorre que, por mais sofisticadas que sejam essas tentativas, elas esbarram sempre numa brutal agressão às evidências e ao senso comum. Cabe ao metafísico espanar a poeira dos sofismas e apontar os erros. Houve também tentativas de pôr o sensível e o inteligível num mesmo plano, como se sempre sentíssemos inteligindo (é o caso da pressuposição do filósofo basco Xavier Zubiri de que a inteligência é radicalmente sentinte*), mas esta é uma idéia que mereceria outro texto.
O fato é que as conseqüências da má-gnosiologia são sempre terríveis. Espinosa, por exemplo, ao pressupor que o ente é não apenas unívoco, mas também único (é a tese famosa da substância única), acreditava possuir naturalmente uma intuição direta do ente divino — e ver Deus em tudo. Para ele, a multiplicidade das substâncias é enganosa, e o ente divino seria o primeiro objeto conhecido por nossa inteligência; por meio dele, tudo ganharia inteligibilidade. É o chamado ontologismo panteísta: Deus está em tudo não virtualmente, mas essencialmente, como se fora parte integrante das coisas. Ah, se Espinosa tivesse lido a questão 3 da primeira parte da Suma Teológica (Utrum Deus in compositionem aliorum veniat) em que o Aquinate mostra ser impossível Deus entrar em composição com os entes, ou ser de algum deles o princípio formal ou material!!** Enfim, qualquer estudioso da obra de Santo Tomás que tenha lido a Ética de Espinosa deparou, logo nas primeiras páginas, com agressões deste tipo ao bom senso. A experiência sensível (da qual parte o conhecimento) totalmente ignorada ou desprezada, e as evidências deixadas de lado em favor de hipóteses fantasiosas.
Depois de esmiuçar os conceitos-chave da metafísica, uma das principais tarefas do realismo filosófico é estabelecer um princípio gnosiológico que não parta de uma quimera. Já citamos no Contra Impugnantes vários e polifacéticos devaneios transformados em teorias do conhecimento: Kant, Hume, Husserl, Heidegger, Descartes, Bergson, agora Spinoza, etc. Todos eles parecem ignorar este que é um princípio fundamental: Ens est transcendens. A absoluta transcendentalidade do ente — o primeiro dos sete universais — garante não apenas a base para a analogia entis, mas também traz consigo, implícita, a distinção entre ser potencial e ser real. Sem ela, o mundo deixa de ser um conjunto de coisas reais e vira uma simples idéia.
O possível lógico, que para Santo Tomás era o “possível equívoco” (aequivoce possibile), sem a consideração da transcendentalidade do ente acaba por engendrar aberrações. Definamos os termos: possível lógico é aquilo que não possui nenhuma contradição lógica interna e pode pensar-se como verdadeiro. Há, por exemplo, uma possibilidade matematicamente mensurável de que alguém de costas para um muro atire trezentas pedrinhas de cinco milímetros para trás e elas se encaixem exatamente em trezentos buracos de dez milímetros no muro. Ocorre que, além dessa possibilidade lógica — mero ente de razão —, deve haver uma possibilidade ontológica sem a qual o possível lógico torna-se suposição infantil. Ora, como o acaso não pode ser o princípio das coisas que se ordenam a um fim, pois se o acaso tivesse uma finalidade não seria ocasional, estamos neste exemplo das pedrinhas naquilo que o filósofo e teólogo Jaime Balmes chamava de impossibilidade de senso comum: o meramente possível (possibilidade logarítmica) pode até ter uma função instrumental num teorema filosófico, mas não pode ser o esteio, a premissa fundamental; esta há-de ser uma evidência. O contrário implica construir sobre areia movediça.
E é sobre possíveis lógicos (analogamente assim chamados, para o caso de que se trata) que boa parte da filosofia pós-escolástica se apóia. Porque, parafraseando Heidegger, ela esqueceu-se do ente. A propósito, à pergunta de Heidegger “por que há o Ente e não o Nada?”, que já denota um abandono da metafísica clássica, poderíamos jocosamente responder: porque uma inteligência sem entes reais, extra mentis, é esquizofrenia pura. Coisa de louco.
* Outra questão importante é “Sobre a existência de Deus nas coisas” (De existentia Dei in rebus, I, q. VIII), onde Santo Tomás mostra que Deus está nas coisas, sim, mas não como parte da essência delas. Ele está nelas virtualmente, ou seja: assim como o agente está naquilo que faz.
** Prefiro o particípio “sentinte” ao neologismo “sensiente”, adotado por alguns estudiosos.
De acordo com Santo Tomás, o primo cognitum é o ente enquanto oposto ao nada, quer dizer: simplesmente algo que é, embora não se saiba neste primeiro momento como e por que é. Em resumo, o ato pelo qual se inicia em nós o conhecimento é a percepção do ente extramental — situado, como o próprio termo indica, fora da nossa mente, pois não depende dela para ser o que é. Daí dizer o tomista Garrigou-Lagrange, em seu livro Le réalisme du principe de finalité, que a inteligência marcha do conhecido ao desconhecido, e o primeiro conhecido é, repitamos, o ente oposto ao nada, em meio ao qual estamos desde sempre.
Noutras palavras, podemos dizer o seguinte: seja qual for a realidade com a qual deparemos, ela não pode achar-se fora do ente. Se a inteligência contempla algo, trata-se sempre de algo que é, e por esta razão o realismo gnosiológico aristotélico-tomista não cansa de repetir que, assim como o objeto formal próprio da vista é a cor, e o do ouvido é o som, etc., o da inteligência é o ente. Mas que ente é esse primeiramente apreendido? Resposta: o das coisas sensíveis, ou, em termos técnicos, a essência das coisas materiais (quidditas rei materialis). O caminho natural da inteligência vai, pois, do sensível ao inteligível. Aristóteles já o sabia.
Diferentes foram as tentativas, a partir da modernidade, de estabelecer um tipo de conhecimento intuitivo, ou seja, uma clara visão direta dos inteligíveis — intento que tem a sua primeira formulação, recheada de premissas teológicas, em Duns Scot. Ocorre que, por mais sofisticadas que sejam essas tentativas, elas esbarram sempre numa brutal agressão às evidências e ao senso comum. Cabe ao metafísico espanar a poeira dos sofismas e apontar os erros. Houve também tentativas de pôr o sensível e o inteligível num mesmo plano, como se sempre sentíssemos inteligindo (é o caso da pressuposição do filósofo basco Xavier Zubiri de que a inteligência é radicalmente sentinte*), mas esta é uma idéia que mereceria outro texto.
O fato é que as conseqüências da má-gnosiologia são sempre terríveis. Espinosa, por exemplo, ao pressupor que o ente é não apenas unívoco, mas também único (é a tese famosa da substância única), acreditava possuir naturalmente uma intuição direta do ente divino — e ver Deus em tudo. Para ele, a multiplicidade das substâncias é enganosa, e o ente divino seria o primeiro objeto conhecido por nossa inteligência; por meio dele, tudo ganharia inteligibilidade. É o chamado ontologismo panteísta: Deus está em tudo não virtualmente, mas essencialmente, como se fora parte integrante das coisas. Ah, se Espinosa tivesse lido a questão 3 da primeira parte da Suma Teológica (Utrum Deus in compositionem aliorum veniat) em que o Aquinate mostra ser impossível Deus entrar em composição com os entes, ou ser de algum deles o princípio formal ou material!!** Enfim, qualquer estudioso da obra de Santo Tomás que tenha lido a Ética de Espinosa deparou, logo nas primeiras páginas, com agressões deste tipo ao bom senso. A experiência sensível (da qual parte o conhecimento) totalmente ignorada ou desprezada, e as evidências deixadas de lado em favor de hipóteses fantasiosas.
Depois de esmiuçar os conceitos-chave da metafísica, uma das principais tarefas do realismo filosófico é estabelecer um princípio gnosiológico que não parta de uma quimera. Já citamos no Contra Impugnantes vários e polifacéticos devaneios transformados em teorias do conhecimento: Kant, Hume, Husserl, Heidegger, Descartes, Bergson, agora Spinoza, etc. Todos eles parecem ignorar este que é um princípio fundamental: Ens est transcendens. A absoluta transcendentalidade do ente — o primeiro dos sete universais — garante não apenas a base para a analogia entis, mas também traz consigo, implícita, a distinção entre ser potencial e ser real. Sem ela, o mundo deixa de ser um conjunto de coisas reais e vira uma simples idéia.
O possível lógico, que para Santo Tomás era o “possível equívoco” (aequivoce possibile), sem a consideração da transcendentalidade do ente acaba por engendrar aberrações. Definamos os termos: possível lógico é aquilo que não possui nenhuma contradição lógica interna e pode pensar-se como verdadeiro. Há, por exemplo, uma possibilidade matematicamente mensurável de que alguém de costas para um muro atire trezentas pedrinhas de cinco milímetros para trás e elas se encaixem exatamente em trezentos buracos de dez milímetros no muro. Ocorre que, além dessa possibilidade lógica — mero ente de razão —, deve haver uma possibilidade ontológica sem a qual o possível lógico torna-se suposição infantil. Ora, como o acaso não pode ser o princípio das coisas que se ordenam a um fim, pois se o acaso tivesse uma finalidade não seria ocasional, estamos neste exemplo das pedrinhas naquilo que o filósofo e teólogo Jaime Balmes chamava de impossibilidade de senso comum: o meramente possível (possibilidade logarítmica) pode até ter uma função instrumental num teorema filosófico, mas não pode ser o esteio, a premissa fundamental; esta há-de ser uma evidência. O contrário implica construir sobre areia movediça.
E é sobre possíveis lógicos (analogamente assim chamados, para o caso de que se trata) que boa parte da filosofia pós-escolástica se apóia. Porque, parafraseando Heidegger, ela esqueceu-se do ente. A propósito, à pergunta de Heidegger “por que há o Ente e não o Nada?”, que já denota um abandono da metafísica clássica, poderíamos jocosamente responder: porque uma inteligência sem entes reais, extra mentis, é esquizofrenia pura. Coisa de louco.
* Outra questão importante é “Sobre a existência de Deus nas coisas” (De existentia Dei in rebus, I, q. VIII), onde Santo Tomás mostra que Deus está nas coisas, sim, mas não como parte da essência delas. Ele está nelas virtualmente, ou seja: assim como o agente está naquilo que faz.
** Prefiro o particípio “sentinte” ao neologismo “sensiente”, adotado por alguns estudiosos.