terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O apriorismo de Kant e suas conseqüências (III)




Sidney Silveira
[Um email enviado por meu irmão, e que enumera algumas objeções feitas por um leitor do blog, presumivelmente jovem, motivou-me à seguinte consideração.]

A presente crítica ao apriorismo kantiano — cujas graves conseqüências para a história da filosofia exporemos no decorrer dos textos desta série —, nada tem a ver com “ceticismo” em relação aos juízos sintéticos “a priori” inventados pelo filósofo de Königsberg. Como adeptos da escola tomista, não podemos subscrever nenhum tipo de ceticismo gnosiológico que use a inteligência para desqualificá-la por meio de sofismas. Portanto, aqui se trata do esclarecimento com relação aos erros gnosiológicos fundamentais que servem de motor de arranque para o idealismo transcendental kantiano. É importante fazer esta advertência aos nossos eventuais leitores partidários de filosofias céticas — sejam antigas ou modernas. Do ceticismo trataremos noutra oportunidade.

Outra coisa: a presente exposição não se propõe ser uma novidade, pois, como já foi apontado em textos anteriores, pensadores de diferentes correntes, partindo de premissas as mais díspares (não raro contraditórias entre si), mostraram a absurdidade da procura kantiana por conceitos apriorísticos totalmente independentes da experiência, sobretudo pelos erros metodológicos implicados na própria formulação do problema crítico por Kant. Escolhemos a Octavio Derisi porque nos parece ir este filósofo ao cerne da questão, mas poderíamos aludir a outros, como por exemplo Joseph Maréchal, estudioso do tomismo que, não obstante faça algumas concessões ao idealismo transcendental, no livro Le point de départ de la métaphysique aponta de forma convincente por que a filosofia kantiana oscila entre o dogmatismo de que o alemão queria fugir (após despertar do “sonho dogmático”, com a leitura de David Hume) e o ceticismo que ele nunca conseguiu abraçar em todas as suas conseqüências, malgré lui même.

O mais difícil na refutação do criticismo kantiano é o seguinte: uma vez admitida a existência de um conhecimento totalmente desarticulado da realidade dos entes, a busca por funções ou categorias “a priori” da inteligência, assim como por todas as condições de possibilidade do conhecimento (ambas no seio da imanência), não é apenas lógica, mas sim a única possível, como aponta Derisi. Daí a importância de uma resposta que não se perca em meio às tediosas e prolixas análises transcendentais de Kant, mas vá direto à pedra angular de todo o seu sistema.

E um dos cacos dessa pedra angular é a pressuposição (implícita in nuce nas principais proposições do criticismo kantiano) de que a nossa inteligência não se refere a nenhum tipo de realidade extra mentis. Ou seja: o conhecimento não provém — como de uma fonte — das coisas que estão fora e além da nossa mente, mas sim do sujeito que as pensa. Assim, o conhecimento é despojado de um de seus pólos essenciais: o objeto, a coisa distinta do sujeito cognoscente. Kant está, pois, totalmente imerso na falsa dicotomia sujeito/objeto do conhecimento, tão característica do pensamento moderno, cujas raízes distantes apontamos em outro breve texto: Duns Scot, o ancestral da modernidade.

Uma vez mais, ouçamos a Derisi:

“[Kant] conserva el objeto como experimentado en nuestra sensibilidad, pero de cuya realidad trascendente y en sí nada sabemos todavía, con lo cual se realiza la escisión entre el objeto sensiblemente experimentado –que conserva– y el objeto o cosa en sí –del que prescinde. Desde entonces el objeto del conocimiento, cuyo análisis trascendental Kant instaura, es objeto inmanente, experimentado en nosotros con prescindencia de toda [la real] trascendencia. Los datos, empírica o pasivamente experimentados en nuestra sensibilidad, gracias a las formas ‘a priori’ de ésta, espacio y tiempo, llegan a constituirse en fenómenos, [única] materia sobre que versa nuestra inteligencia”.

Na prática, Kant diz que a nossa inteligência só alcança os fenômenos, e não o noumenon, o “em si” da coisa, e contradiz-se no ato, porque com esta proposição ele acaba de propor-nos o noumenon da própria inteligência, ou seja, uma de suas notas distintivas, que a caracterizam essencialmente... Ora, se a nossa inteligência só alcançasse os fenômenos, não poderíamos sequer dizer dela que não alcança o noumenon, como faz Kant. É a autocontradição da incognoscibilidade da coisa em si.

Mas o problema é bem mais complicado, justamente porque esta premissa vale, em alguns casos, para as ciências que... tratam dos fenômenos!!!! Mas não para a gnosiologia, e muito menos para a metafísica.

Há um quê de loucura no labor de Kant em estabelecer as condições transcendentais da subjetividade, porque de antemão ele aprisionara, de forma categórica, o objeto-fenômeno na imanência do sujeito. Sendo assim, todo o intento de evasão dessa subjetividade imanente está fechado na própria “subjetividade” do objeto. E nesta perspectiva, obviamente, nenhuma metafísica poderá ter valor. Meu Deus: que confusão dos infernos!

Para ultrapassar a imanência do conhecimento por parte do sujeito, seria preciso, antes de tudo, devolver ao objeto o seu caráter próprio de coisa em si extra mentis, ou seja, além da minha mente — e que não depende desta para ser o que é. Mas Kant despojara do objeto-fenômeno esta sua nota essencial e, com isto, não conseguiu sair do emaranhado em que se meteu.

Eis, pois, o erro dos erros do criticismo: os entes, em sua realidade nua e crua, possuem notas objetivas percebidas por nós a partir sensibilidade, mas que não provém de formas “transcendentais” subjetivas (como pensava Kant sem aduzir nenhum elemento plausível para tal suposição), pois constituem a essência mesma das coisas. A res (um dos transcendentais do ser) é algo com que a nossa inteligência se relaciona, e não uma projeção de categorias “a priori” que tenhamos na mente...

Uma das primeiras conseqüências de tais premissas será a seguinte: toda e qualquer busca da verdade objetiva tornar-se-á algo em si absurdo.

Vale ainda dizer que as idéias “descobertas” por Kant em sua análise transcendental (cosmológica, psicológica e teológica, ou seja: o mundo, o eu e Deus) são destituídas de todo e qualquer valor real, pois têm uma mera função de unificadoras das categorias “a priori” do conhecimento. Por aqui entendemos muito bem por que a refutação do argumento de Santo Anselmo (chamado por Kant impropriamente de “ontológico”) é insuficiente em Kant. Ao passo que, em Santo Tomás, basta uma linha (uma linha!) da Suma Teológica, onde o Angélico põe por terra o argumento anselmiano, embora acolha dele uma de suas premissas.

Mas esta é outra história.
(continua)