terça-feira, 2 de março de 2010

Metafísica e mistério (I)


Sidney Silveira
Por mais bem elaborada que seja em sua forma escrita, nenhuma filosofia abarcará a completude do pensamento de um filósofo e, mais ainda, o ser dos entes — que, a propósito, é o objeto formal de toda atividade cognoscitiva. Quando Santo Tomás de Aquino, após o êxtase em que foi arrojado, diz a seu secretário Reginaldo e a outros frades que, a partir daquele dia, não escreverá mais nada, porque, depois do que viu, tudo o que escreveu é palha, está com isto indicando a todos nós o seguinte: por mais elevada que seja uma doutrina filosófica e teológica (e a dele o foi em grau superlativo), será sempre insuficiente para dar conta do mistério do ser que nos envolve. Sendo assim, ainda que uma filosofia, partindo de princípios sólidos, estenda as suas conclusões às causas mais universais, sempre apresentará um maior ou menor grau de precariedade. Em suma, a ninguém — exceto Deus — é dado saber tudo. A propósito, de acordo com o Aquinate, nem mesmo na visão beatífica da essência divina nós compreenderemos o que Deus é em si mesmo.

Tudo isso não quer dizer que os escritos filosóficos sejam autárquicos, como se entre eles e o ser não houvesse a mais ínfima conexão. Como já apontava Platão no Fedro, eles possuem algumas utilidades que não devemos desprezar, entre as quais destacamos três: a) têm uma salutar função mnemônica, na medida em que estimulam a memória a guardar os conceitos; b) são adequados para desencadear em nós o processo cognoscitivo com relação aos conhecimentos mais abstratos; c) e, se expressam doutrinas solidamente baseadas no ser, predispõem a inteligência à captação da verdade. Não obstante todas essas utilidades, o escrito filosófico será sempre inferior ao hábito mental por meio do qual se logra conhecer algum aspecto do real, dado não ser senão a limitada expressão deste último. Por isso costumo dizer que um filósofo que não saiba defender oralmente e com propriedade as suas teses, mas tão-somente por escrito e apoiando-se em muletas bibliográficas, é na verdade um ignorante ilustrado*.

O melhor quadro sinóptico de conhecimentos em todos os âmbitos do real que nos é dado alcançar terá sempre limitado alcance, pois a luz da razão natural, embora alcance os princípios supremos (protologia) e as causas últimas do ser (ontologia), jamais consegue esgotar a verdade. Não por acaso, em seu Comentário ao Credo lembra-nos Santo Tomás que nunca nenhum filósofo conseguiu sequer exaurir o conhecimento da essência... de uma mosca!** Mas o que, a princípio, poderia parecer o signo da pobreza gnosiológica do ente humano é, na verdade, o espelho da riqueza ontológica que Deus imprimiu às suas criaturas, que receberam por criação a “novidade do ser” (novitas essendi), nas palavras do Doutor Comum da Igreja no livro De Potentia Dei. Em suma, entre os primeiros princípios e as causas últimas do ser encontra-se o horizonte amplíssimo da nossa atividade noética, e todos os nexos teoréticos apontados pelo filósofo em qualquer âmbito serão nada mais do que um simples vislumbre de aspectos do real pela inteligência — inteligência que é speculum do ser.

Jacques Maritain, cujos maiores equívocos contribuíram para a moderna acepção de “pessoa humana” — coonestada, em linhas gerais, pelo Concílio Vaticano II, acontecimento decisivo do século XX no plano dos valores —, possui um famoso texto em seu livro Les Degrés du Savoir, no qual fala da grandeza e da miséria da metafísica, ciência que estuda o ente (o qual tem ser): a sua grandeza é ser sabedoria; e a miséria é ser sabedoria humana, e, portanto, limitada. Nisto o pensador francês estava certo, e, se avaliarmos bem, quase todos os principais erros gnosiológicos a partir de Duns Scot, o elo perdido da modernidade, com ressonâncias em Guilherme de Ockham, Descartes, Hume, Kant, Hegel, Bergson, Husserl, etc., poderiam ter sido evitados se se levasse em conta que, embora a inteligência seja potencialmente apta para a posse formal de todos os inteligíveis, ela é incapaz de esgotar a inteligibilidade do próprio ser. Intuicionismo, agnosticismo gnosiológico e relativismo axiológico não teriam chance de deitar tão fundo as suas raízes , se a metafísica não tivesse sido fragorosamente deixada de lado.

Se o mistério é a saúde da alma, como dizia Chesterton, a perda do sentido do mistério é o sintoma de uma das mais graves patologias, e vem sempre acompanhado de um desconhecimento cabal da metafísica.

* Tive um brilhante e gaiato professor de Gramática Portuguesa que fazia, jocosamente, a distinção entre dois tipos de idiotia: o da anta stricto sensu e o da anta extraordinária, encarnada no burro teimoso que não entende nada e se julga apto a contestar tudo. “Esse não é uma anta comum”, dizia-me o falecido professor. “É a anta com fumos de sabedoria: uma anta de tênis Nike atolada no pantanal mato-grossense”.
** (...) “sed cognitio nostra est adeo debilis quod nullus philosophus potuit unquam perfecte investigare naturam unius muscae”. SANTO TOMÁS DE AQUINO, em Expositio in Symbolum Apostolorum, Proêmio.

(continua)