segunda-feira, 5 de abril de 2010

Autoridade Doutrinal do Doutor Comum (III)



Sidney Silveira

Aguilhão para os inimigos

Antes de prosseguir com o Magistério papal que sucedeu à Bula Mirabilis Deus, de São Pio V, vale fazer algumas considerações, colhidas de G. Manser, sobre a recepção do Aquinate entre os gregos e, também, os chamados “amigos da união das Igrejas”, objeto dos sínodos de Lyon (1274) e Florença (1439-1445). Nestes dois Concílios, tanto a Summa Theologiæ como o opúsculo Contra errores Græcorum do Aquinate desempenharam papel importante. Neste ponto, para dimensionarmos a admiração que a sua obra suscitou entre inimigos da fé, citemos um manuscrito anônimo do século XIV, escrito por um cismático ortodoxo, que dizia o seguinte:

Ah, Tomás, se tivesses sido um oriental e não um ocidental! Se tivesses escrito como ortodoxo sobre as processões do Espírito Santo tão maravilhosamente como sobre outras questões!” (Utinam, o Thoma, non in Occidente sed in Oriente natus esses! Utinam orthodoxus esses non minus de Processione Spiritus Sancti quam de aliis quæstionibus, quas admirando prorsus modo tractas).

Embora hoje saibamos que um certo Neilos Kabasilas, de Tessalônica, escreveu uma obra polêmica contra Santo Tomás, e outro, chamado A. Paranetes, elaborou mais de vinte disputas que, ainda hoje, se guardam inéditas em Oxford, a admiração dos eruditos gregos com as traduções de numerosas obras do Aquinate foi grande, especialmente pelas duas Sumas. A propósito, até 1350 são conhecidas várias traduções do latim para o grego de escritos de Santo Tomás. Lembra-nos Manser que tão grande foi o entusiasmo dos gregos pelo Aquinate na época do Concílio de Florença que, por esta ocasião, foi traduzido para o grego o ofício da festa do nosso Santo, de acordo com vários depoimentos.

Já em Lyon, logo após a morte de frei Tomás, o influxo do seu trabalho teológico é claro, como teremos oportunidade de ver em outro texto. E no Concílio de Viena (1311-1312) — o qual, mais do que a unidade de Cristo, tinha como objetivo discutir a unicidade da alma humana —, isto se confirma com a condenação formal das teses de Pedro Olivi, que defendia a pluralidade de almas em cada homem... A supremacia aquinatense, na verdade um reflexo da elevação de sua doutrina, continua no Concílio de Constança (1414), quando a chaga do nominalismo ockhamista esboçava crescer. Prova-o o fato de este sínodo reunir-se para combater (fazendo uso das conquistas teológicas do Aquinate) teses do reformador Jan Hus, que aliás morreu na fogueira. Anos depois, o heresiarca Lutero escreverá o seguinte: “No Concílio de Constança, com certeza Tomás de Aquino triunfou sobre Hus”.

No importantíssimo V Concílio de Latrão (1512) — do qual participou o “general dos dominicanos”, o futuro Cardeal Cayetano — aconteceu um dos maiores triunfos do Aquinate. As teses averroístas latinas da dupla verdade (duplex veritas) e da unicidade do intelecto para todos os homens (intellectus numerice unus), que haviam sido refutadas por Santo Tomás dois séculos antes, contra Siger de Brabante, são enfim condenadas pela Igreja. Outro fato: foi decidida a demonstrabilidade da imortalidade da alma humana no sentido em que a defendia o Aquinate, contrariando as escolas scotistas e ockhamistas, opostas à tese. A decisão do Concílio foi nada menos que unânime.

No Concílio de Trento, um dos mais importantes da história da Igreja do ponto de vista doutrinal, a preeminência de Santo Tomás pode ser medida pelo fato, muito conhecido de todos os estudiosos, de que a Suma Teológica foi posta ao lado da Bíblia no momento da declaração dos Dogmas. E não obstante um Concílio, por ser regido pelo Espírito Santo, dispense a sabedoria dos homens, o fato é que a defesa das suas decisões, baseadas na Sagrada Escritura e na Tradição, sempre recorre ao auxílio luxuoso da teologia e da filosofia. Tendo isto em vista, compreendemos muito bem o fato de Cardeal Vicente Justiniano chamar a Santo Tomás de Patrum Concilii Tridentini oraculum. Para ter-se uma idéia desta benéfica influência doutrinal, diga-se que, numa passagem sobre a Eucaristia — na seção XXI do referido Concílio —, os Padres reexaminaram uma questão anteriormente decidida simplesmente porque uma passagem de Santo Tomás na Suma parecia contrariá-la.

Ao repassar um pouco dessa história, não resisto a dizer o seguinte: quando vejo professorecos metidos a filósofos dizer que a obra filosófico-teológica do Aquinate deve ser vista à parte de questões doutrinais da Igreja, tenho vontade de rir... Ou de chorar. São engambeladores que vendem gatos por lebres.

(continua)