segunda-feira, 29 de março de 2010

Autoridade doutrinal do Doutor Comum (II)

Santo Alberto e Santo Tomás, juntos

Sidney Silveira
Passado o primeiro momento da morte de Santo Tomás, a pronta reação da Ordem dos Pregadores às incompreensões que acabaram por resultar na condenação formal, em 1277, de algumas teses a ele atribuídas foi o que manteve acesa a chama de sua excelsa doutrina, ao longo dos 50 anos em que o Aquinate ficou proscrito. Na verdade, a oposição ferrenha de teólogos como John Peckham, Robert Kilwardby, Gil de Roma, Enrique de Gand, Duns Scot e outros acabou sendo o crisol que purificou o ouro, como lindamente afirma Santiago Ramírez em conhecido texto. Tanto isto é verdade que, mesmo antes de sua canonização, frei Tomás foi por muitos considerado como autoridade máxima em Filosofia, Teologia e Exegese, inclusive pelo seu antigo mestre, Alberto Magno.


Depois de quase cinco décadas de verdadeira prova de fogo, a autoridade doutrinal do Aquinate cresce ininterruptamente até o último quartel do século XX, antes de ser por assim dizer “rebaixada” a uma filosofia entre outras, com João Paulo II, que na Encíclica Fides et Ratio (nº 49) afirma que a Igreja não canoniza nenhuma filosofia em detrimento de outras. Mas deixemos este delicadíssimo tópico para o último texto desta série, e vejamos antes o que séculos de Magistério solene dos Papas nos dizem.

João XXII (1249-1334) frisa, ao iniciar-se o processo de canonização de Santo Tomás, que será uma magna gloria para toda a Igreja ter o frade dominicano entre os santos dos altares. Afirma o Papa, noutro documento, que o Senhor obrou verdadeiras maravilhas no Aquinate — tanto em santidade, como em sabedoria e milagres: em santidade porque observou o Boi Mudo da Sicília exatissimamente todas as regras e constituições de sua Ordem, conservando entre outras coisas a sua virgindade até a morte, além de não ter cometido nenhum pecado mortal em toda a sua vida; em milagres porque se comprovaram mais de trezentos, embora bastasse consultar os seus escritos para atestar o milagre da inteligência (tot fecerat miracula quot scripserat articulos); em sabedoria porque, depois dos Apóstolos e dos Padres, ninguém iluminou a Igreja tanto quanto ele (iste gloriosus Doctor post Apostolos et Doctores primos plus iluminavit Ecclesiam Dei).

Clemente VI (1291-1352) celebra-o como sal fecundo da vida da Ordem dos Pregadores, Doutor Egrégio de cujas obras e ensinamentos, repletos de sabedoria, recolhe a Igreja copiosos frutos espirituais, com os quais se nutre continuamente (ipsius fructus odore reficitur incessanter). Este Papa ordenou ao Capítulo Geral da Ordem, em 1346, que impusesse a todos os religiosos a obrigação estrita de seguir a doutrina de Santo Tomás.


O Beato Urbano V (1310-1370), por sua vez, ao ordenar o traslado do corpo do Aquinate de Fossanova a Toulouse para depositá-lo na Igreja dos dominicanos, diz que Santo Tomás pôs às claras vários enigmas da Sagrada Escritura, elucidando obscuridades teológicas e esclarecendo, com a sua exegese, incontáveis dúvidas no estudo da Sacra Pagina. Ao entregar a cabeça de Santo Tomás ao Geral da Ordem dos Dominicanos, diz o Papa que era ela depósito da divina sabedoria (cælestis utique sapientiæ gazophylacium). Urbano V também manifestou firmemente a vontade de que a Faculdade de Teologia de Toulouse se fundasse na “sólida e consistente doutrina aquinatense”, que deveria ser propagada como “doutrina verdadeira e católica” (doctrinam tamquam veridicam et catholicam sectemini).


Nicolau V (1397-1455) fará o mesmo ao mencionar o Aquinate ex cuius doctrina tota universalis iluminatur Ecclesia. E assim também Alexandre VI (1431-1503), para quem Santo Tomás é um luzeiro que ilumina todo o orbe cristão (lucerna præfulgens in inuverso christianorum orbem illustrat). Para Pio IV (1499-1565), sua doutrina é sagrada e produz abundantíssimos frutos de ciência e santidade. E esta primeira etapa de manifestação pela Igreja da autoridade doutrinal de Santo Tomás se encerra exatamente com São Pio V (1504-1572), que na Bula Mirabilis Deus, de 11 de abril de 1567, faz de Santo Tomás Doutor da Igreja Universal e equipara-o aos quatro grandes doutores da Igreja latina: Santo Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho e o excelso São Gregório Magno. Chama Pio V ao Aquinate de clarissimum Ecclesiæ lumem, e afirma com todas as letras que a sua doutrina é regra certíssima da nossa fé (certissima christianæ regula doctrinæ, qua Apostolicam Ecclesiam infinitis confutatis erroribus illustravit).


(continua)