Sidney Silveira
A filosofia não é como um platô onde se mesclam a esmo, de forma indiferenciada, elementos de todos os tipos, pois é próprio da atividade noética estabelecer uma hierarquia de princípios e fins e extrair, da tensão advinda das relações entre as partes do conjunto conhecido, um sentido de unidade. Divisar o uno no múltiplo, como ensinava Platão. Este trabalho verdadeiramente artesanal é um reflexo do modo humano de chegar à região da inteligibilidade dos entes: compondo e dividindo raciocínios, nas famosas palavras de Santo Tomás, até lograr uma visão sinóptica do Ser.
A filosofia não é como um platô onde se mesclam a esmo, de forma indiferenciada, elementos de todos os tipos, pois é próprio da atividade noética estabelecer uma hierarquia de princípios e fins e extrair, da tensão advinda das relações entre as partes do conjunto conhecido, um sentido de unidade. Divisar o uno no múltiplo, como ensinava Platão. Este trabalho verdadeiramente artesanal é um reflexo do modo humano de chegar à região da inteligibilidade dos entes: compondo e dividindo raciocínios, nas famosas palavras de Santo Tomás, até lograr uma visão sinóptica do Ser.
Neste contexto, convém dizer que não se alcança tal visão unitária do saber sem uma construção de grandíssimo porte, uma monumental arquitetura feita de conteúdos inteligíveis que, agrupados, nos dão uma visão panorâmica (embora incompleta) da ordem do Ser. Como dizia com razão o tomista canadense Louis Lachance, la sagesse c’est architectonique, e não um flash intuitivo pelo qual se capte, num fugaz relance, o sentido maior das coisas. Esse caráter arquitetônico de todo genuíno saber filosófico pode ser comparado a um quebra-cabeças de incontáveis níveis superpostos — que nunca poderá ser preenchido, de todo, pela inteligência humana. Após determinado ponto, a esta última não lhe resta senão a contemplação extática do mistério. Ou melhor: a assombrosa percepção de que, por traz da insondabilidade do mistério, existe uma ordem superior.
A inteligência humana tem, portanto, como ápice de sua atividade cognoscitiva a contemplação da inteligibilidade inexprimível de Deus — do Próprio Ser cujos vestígios se encontram em todos os entes. Observe-se que, aqui, a referência ainda não é à visão beatífica da essência divina obtida na luz da glória, nem ao conhecimento místico que só pode ser representado por símbolos ou paradoxos, pois do esplendor da visio Dei não podemos ter o menor vislumbre nesta vida, dado que se trata de uma realidade não passível de ser enquadrada ou sintetizada por nenhum símbolo, nenhuma linguagem, nenhuma categoria.[1]
A alusão é à capacidade humana de obter, ainda neste mundo, um olhar agudo que, partindo de primeiros princípios auto-evidentes, conduza à certeza de haver uma uniformidade universal metafísica, una e perfeita, açambarcadora de toda a diversidade fenomênica — que pressupõe uma inteligência ordenadora.
Infelizmente, a perda da pretensão de construir grandes sínteses que agrupem os problemas fundamentais da condição humana acabou por pulverizar a filosofia num sem-número de questões tópicas que, desligadas do horizonte ontológico que lhes serve de abóbada e esteio, acabam esterilizadas, empobrecidas ou, o mais das vezes, simplesmente inócuas. Metida num bazar de idéias bizarras, ou presa a postulados reducionistas válidos para uma só esfera epistêmica, a filosofia condena-se à cegueira em relação às verdades mais elevadas e importantes.
No entanto, a partir de uma sólida metafísica, a procura da apoditicidade nos pode conduzir, pelas pegadas da inteligibilidade dos entes, à certeza de que há um Deus que move tudo e não pode ser movido por nada; que é a primeira causa eficiente; que é o único Ente necessário; que é o grau sumo de Ser, pois n’Ele essência e Ser se identificam perfeitamente; que é, por fim, a Inteligência providente que governa todas as coisas. E daí deduzir todos os divinos atributos e relacioná-los a tudo o que tem ser...
Uma inteligência não contaminada por sofismas é capaz, portanto, de fazer naturalmente o seguinte caminho: do mistério da ordem à ordem do mistério.
[1]- Nenhum símbolo é capaz de representar a realidade absolutamente transcendente de Deus. Nenhuma linguagem pode referir-se a Ele, a não ser analogicamente. Nenhuma categoria pode enquadrá-lo. E o prova Santo Tomás com premissas bastante simples: Um ente é cognoscível na medida em que esteja em ato. Sendo assim, Deus (Ato Puro sem mescla de nenhuma potência passiva) é cognoscível em grau sumo. Ocorre o seguinte: o que é cognoscível em grau sumo só pode ser conhecido, na prática, por uma suma inteligência que atualize todos os inteligíveis num só ato. Ora, sendo Deus a única inteligência suma, por conseguinte nenhuma outra inteligência poderá conhecê-lo em si mesmo. (Suma Teológica, I, q. 12, a. 1, resp.). Aqui é necessário pontuar, profilaticamente, algumas coisas, para evitar equívocos. A primeira é: mesmo sendo o sumo cognoscível uma realidade que ultrapassa a capacidade de qualquer inteligência que não a d’Ele própria, isto não implica que o homem — inteligência limitada e mesclada de potência e ato — não possa ver a essência divina. Mas o pode não por suas próprias potências intelectivas, e sim pela lumen gloriæ participada por Deus aos bem-aventurados. Daí dizer Santo Tomás: “É impossível que uma inteligência criada, por sua própria capacidade natural, veja a essência de Deus. (...) Se o modo de ser da realidade cognoscível sobrepassa a natureza do cognoscente, é necessário que o conhecimento daquela esteja acima das possibilidades [cognoscitivas] desta. (...) Deve-se portanto concluir que conhecer o Próprio Ser Subsistente [que é Deus] é algo conatural apenas à inteligência divina, estando acima de qualquer inteligência criada.” (Suma, I, q. 12, a.4, resp.). Outra coisa: mesmo sendo possível aos bem-aventurados ver a essência divina pela luz da glória, isto não implica que eles esgotarão a inteligibilidade de Deus, mas sim que, contemplando a Deus com os olhos da inteligência elevada sobrenaturalmente à glória, verão todas as coisas em Deus — a partir do que lhes aprouver conhecer d’Ele. O Aquinate ensina: “Para qualquer inteligência criada, é impossível compreender a Deus (...). Nenhuma inteligência criada pode chegar a ter um conhecimento perfeito da essência divina naquilo que Ela tem de cognoscível” (Suma, I, q. 12, a.7, resp.). Tendo em vista esta doutrina do Aquinate assimilada pelo Magistério da Igreja, desenhemos um quadro esquemático: 1- Nenhuma inteligência pode naturalmente conhecer a Deus; 2- Somente as inteligências dos que são, pela graça, elevados à glória poderão ver a essência divina e conhecer sobrenaturalmente algo de Deus; 3- Este conhecimento obtido pela visio Dei, no entanto, não esgota a inteligibilidade de Deus porque só Ele pode conhecer-Se perfeitamente.
Portanto, mesmo na visão beatífica, o mistério continuará a alimentar as almas...
Portanto, mesmo na visão beatífica, o mistério continuará a alimentar as almas...