quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas (VI)

Carlos Nougué
(Continuação da exposição da Tese de Cassiciacum.)

9) Pressuposto, assim, tudo quanto se disse até aqui, deve-se dizer agora que a autoridade enquanto poder ou faculdade ativa é um habitus e, por conseguinte, um acidente predicamental; e, como todo acidente predicamental, não pode existir se não é recebido num sujeito. Que sujeito, ou antes, quem governa legitimamente e quem ilegitimamente? Governa legitimamente quem foi eleito legitimamente pela sociedade para receber a autoridade, e que não tem impedimento para recebê-la. Ilegitimamente aquele que tomou ilegitimamente a autoridade, ou por tê-lo feito sem designação legal, ou, ainda que validamente designado, por ter qualquer impedimento para receber a autoridade. Na sociedade civil, a instituição do sujeito da autoridade pertence ao conjunto da comunidade. “Segundo os tomistas em geral [também traduzimos aqui, à letra, uma frase do Padre Donald J. Sanborn], a comunidade inteira tem o direito de instituir ou escolher tanto a forma de governo quanto o sujeito que receberá a autoridade, mas a comunidade não transmite a própria autoridade, como sustentaram alguns, em particular Suárez. A comunidade simplesmente propõe um sujeito de autoridade. Mas é Deus quem dá a autoridade.” Assim, para que o rei, numa monarquia hereditária, receba legitimamente a autoridade, é mister que o povo aceite, pelo menos implicitamente, o sistema monárquico hereditário. Tudo isso, porém, tem que ver com o governo civil; já a constituição da Igreja, por seu lado, provém de Cristo, é imutável e de modo algum depende da aprovação da comunidade de fiéis. E, ao contrário do que se dá na sociedade civil, os elementos essenciais da constituição da Igreja se estabeleceram por disposição divina direta. A forma que lhe deu Cristo é monárquica, e nem o papa, que enquanto vigário de Cristo desfruta da mesma autoridade que Ele, pode alterá-la.

10) Insista-se na analogia com o composto humano. Com efeito, no caso da geração natural do homem, os pais não dão a forma humana, ou seja, a alma; dão, porém, a disposição última da matéria. É Deus mesmo quem dá a alma; e a união de matéria e forma realiza um ente simpliciter uno: precisamente, um homem. Se todavia a matéria não estiver de algum modo disposta, a forma nem sequer lhe é infundida; e, se de algum modo estiver mal ou imperfeitamente disposta, ainda que lhe tenha sido infundida a alma, o feto acabará por morrer. Ora, do mesmo modo a autoridade em ato não pode ser recebida senão num sujeito bem ou perfeitamente disposto para tal. Ora, se se trata do governo civil, pode dar-se, em não raro se deu, o caso de um rei ter tomado à for-ça a sede da autoridade e, no entanto, depois ter-se legitimado pela aprovação implícita de parte do povo. Mas tal não pode dar-se de modo algum na Igreja, porque nela a comunidade de fiéis não possui o direito de designar o sujeito da autoridade papal. É sempre necessário, portanto, que quem receba o papado seja designado segundo as normas em vigor no tempo de vacância da Sede Apostólica, ou seja, pelos eleitores que têm o direito legal de eleger o papa.

11) A permanência de um papa no cargo dura ou até a morte do sujeito; ou até sua renúncia voluntária; ou, ainda, até a privação da designação do sujeito por parte de quem tem o direito de fazê-lo (cf. o cânon 183 §1 do Código de Direito Canônico de 1917, o qual enumera as causas de perda dos cargos eclesiásticos). Embora não exista autoridade com poder de julgar o papa, o corpo de eleitores pode suspender-lhe a designação, porque a designação provém de Deus de maneira mediata, mas de maneira imediata dos eleitores. Por exemplo, se o papa enlouquecesse, seus eleitores poderiam constatar sua perda do poder papal e proceder a nova eleição. Ou, se um leigo se elegesse papa mas recusasse a consagração episcopal, deveriam os eleitores constatar sua falta de disposição material e proceder a nova eleição. Da mesma forma, caso uma pessoa já eleita papa caia em heresia ou promulgue leis disciplinares sacrílegas, seus eleitores deverão constatar sua incapacidade para manter a autoridade e proceder, também, a uma nova eleição. Por outro lado, a duração do direito de designar é semelhante à da mesma designação (perde-se somente com a morte, renúncia ou privação legal); mas é apenas o próprio papa validamente eleito (ou seja, apenas aquele que é pelo menos materialmente papa) quem tem tanto o direito de nomear os eleitores quanto o de privá-los legalmente dessa nomeação. Não há porém como não perguntar a esta altura [traduzimos aqui, à letra, outra frase do Padre Donald J. Sanborn]: “Como um indivíduo não-papa ou papa somente material pode privar ou nomear legalmente os eleitores do pontífice romano? Em outras palavras, de que maneira após o Concílio Vaticano II os conclaves podem ser considerados legítimos, se os próprios eleitores são heréticos, desprovidos de jurisdição ou nomeados por heréticos que, pelo próprio fato de sê-lo, também são desprovidos de jurisdição?”

12) Ora, a autoridade tem dois fins: legislar e nomear os sujeitos pelos quais se recebe a autoridade. Assim como a mesma autoridade tem “um corpo” e “uma alma”, ou seja, matéria e forma, sendo a primeira a designação para receber a jurisdição e a segunda a própria jurisdição, assim também o objeto ou fim da autoridade são dois: o primeiro e principal é dirigir a comunidade ao bem comum por meio de leis (e isto tem que ver com a alma da autoridade); enquanto o segundo e secundário (porque ordenado ao primeiro) é nomear os sujeitos da autoridade (e isto tem que ver com o corpo da autoridade), a fim de que tenha continuidade no tempo a própria comunidade. Esses dois objetos ou fins da autoridade são realmente diversos, como é evidente. Se pois se trata efetivamente de dois objetos ou fins, então as faculdades ordenadas a tais objetos também são efetivamente diversas. E, se a faculdade de designar é efetivamente diversa da faculdade de legislar, pode suceder que alguém que não desfrute da faculdade de legislar possa, porém, desfrutar da de designar — na medida em que queira o efetivo e objetivo bem da sucessão legal da autoridade. Ora, como já se disse, a faculdade de designar provém da Igreja, enquanto a faculdade de legislar provém de Deus. Logo, a Igreja pode dar a faculdade de designar sem que, por causa de algum impedimento, Deus confira a de legislar. Mas os eleitores do papa, ainda que tenham aderido ao Concílio Vaticano II e suas teses heréticas, têm a intenção de designar legalmente alguém para receber o papado. Assim os papas conciliares, embora sejam papas apenas materiais, quando nomeiam os “cardeais”, têm a intenção de nomear sujeitos com a faculdade de designar o papa. Neste sentido, mesmo os conclaves que se seguiram ao Concílio Vaticano II quiseram objetivamente o bem da sucessão na sede pontifical, e os que são eleitos para esta sede objetivamente se propõem ao bem de nomear os eleitores do papa. E atenção: esta continuidade meramente material da autoridade pode, pela razão já apontada de que se busca o bem da sucessão material, prosseguir por tempo indefinido. O fato da heresia não anula a designação dos eleitores nem dos eleitos. Mas, repita-se, aquele que está materialmente bem disposto está, por outro lado, pelo fato da heresia, não-disposto para receber a forma, ou seja, a autoridade de legislar. Assim, são válidos todos os seus atos que concernem à parte material da autoridade, mas não à jurisdição, que concerne diretamente à parte formal da autoridade.

13) Recorra-se mais uma vez à analogia com a alma humana. Com efeito, a alma se ordena a atos especificamente diversos, como os atos da vida vegetativa, da vida sensitiva e da vida racional. Pode suceder que, por inaptidão ou por não-disposição da matéria (devida, por exemplo, a uma má-formação congênita ou a uma concussão cerebral), a alma cumpra ou passe a cumprir apenas os atos da vida vegetativa. Quando porém a matéria se torna de todo inapta para manter até a vida meramente vegetativa, então sobrevém a morte. Similar e analogicamente, a Igreja pode manter a “vida vegetativa” da hierarquia e concomitantemente não conservar a “vida legislativa”, que busca precisamente o bem comum da Igreja. Tal não decorre de uma falha da parte de Cristo, mas de um defeito da parte dos homens. E isto é permitido por Cristo por um bem superior. Com efeito, os fins da Igreja continuam a ser buscados pelos bispos e padres que não incorreram em heresia, com uma jurisdição não habitual, mas transitória, quando eles cumprem atos sacramentais.

14) Por quanto já se viu até aqui, um papa apenas material pode legítima ou validamente até mudar as regras da eleição, sobretudo se essas mudanças são aceitas pelo conclave. O direito porém de legislar, ou seja, o direito de ensinar, governar e santificar a Igreja, provém diretamente de Cristo, ou antes, de Sua autoridade, da qual o papa participa como vigário. Não obstante, segundo o documento Vacantis Apostolicæ Sedis, de Pio XII, uma vez que o eleito tenha expressado seu consentimento com a eleição, torna-se automaticamente papa: em outras palavras, a união de matéria e forma no papado é imediata. Então, como um eleito pode permanecer apenas materialmente papa após aquele consentimento? Precisamente porque a matéria e a forma não podem unir-se se aquela não tem proporção com esta. Ora, como já visto, a intenção de promulgar erros ou leis disciplinares más é impedimento para o recebimento da forma da autoridade, e o papa apenas material continuará tal enquanto ele próprio não suprimir tal impedimento.

15) Os entes per se, como, por exemplo, um homem, não podem sobreviver se matéria e forma se separam, porque aquela não pode ser em ato sem sua forma substancial. Nos entes per accidens, que nascem da união de uma forma acidental com uma substância (que analogicamente se torna matéria com relação ao acidente), matéria e forma podem separar-se sem que se corrompa o suppositum, assim como, por exemplo, um homem político ou filósofo pode deixar de ser político ou filósofo sem deixar de ser homem. Pois bem [outra vez traduzimos aqui, à letra, uma frase do Padre Donald J. Sanborn], “o papa, enquanto papa, é um ente ‘per accidens’ por ser uma agregação de muitos entes, ou seja, de um homem por um lado e de muitos acidentes por outro”. Desses acidentes, alguns são dispositivos, como a consagração episcopal, etc., mas apenas um é formal: aquele pelo qual este homem concreto é designado papa simpliciter. Tal acidente é o direito de legislar, que também se diz autoridade ou jurisdição. Se tal homem não recebe imediatamente a autoridade ou jurisdição, permanece “matéria”, homem designado, mas ainda sem o direito de legislar nem, o que é o mesmo por outro ângulo, o de dirigir a comunidade a seus fins. Um exemplo disso o podemos encontrar no presidente dos EUA, que é legalmente designado no mês de novembro, mas só recebe a autoridade em janeiro do ano seguinte. Entre esses dois momentos, ele ainda não é presidente, mas tampouco é simpliciter não-presidente: com efeito, já recebeu a designação legal. Em outras palavras, já é materialmente (materialiter) presidente, mas ainda não formalmente (formaliter). Pois bem, algo similar pode suceder com o romano pontífice, ou seja, pode dar-se o caso de alguém ter sido legalmente designado papa e, no entanto, ainda depois de ter aceitado a designação, não receber de Cristo a jurisdição por lhe faltar uma disposição necessária, como, por exemplo, o inteiro uso da razão ou, que é o que aqui nos interessa, a intenção de legislar e governar em vista do bem comum da Igreja — e tal intenção não pode faltar senão no herege. Neste caso, o homem designado papa não seria verdadeiro papa, ou, em outras palavras, como já visto, o seria apenas materialmente, não formalmente. É exatamente o caso dos hereges Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI.

16) Termina aí, quanto ao essencial, a Tese de Cassiciacum. Resta ainda, porém, por explanar uma última distinção: a que se dá entre fato real e reconhecimento legal de um fato real. Explique-se. Toda e qualquer sociedade é uma pessoa moral que, por analogia com a pessoa física, tem inteligência e vontade próprias. Se assim é, pode acontecer, e de fato acontece, que determinado fato possa ser verdadeiro ou real (e até evidente) sem, no entanto, ser reconhecido como tal pela sociedade. Alguém pode cometer um crime diante de testemunhas, mas, apesar disso, será considerado inocente enquanto não for condenado pelo competente tribunal. Em razão desta distinção entre fato real e fato legal, toda e qualquer sociedade, incluída a Igreja, não se reduz a uma simples massa ou multidão de indivíduos. Veja-se o caso do bispo herege Nestório: após ele ter expressado publicamente sua heresia, o clero e o povo recusaram-se a seguir-lhe obedecendo, embora ele tenha continuado a ocupar a sede que era sua por designação legal até ser legalmente deposto, três anos depois, pelo Concílio de Éfeso. Se não fosse necessário o reconhecimento legal de sua heresia, o papa teria nomeado outro para o seu lugar antes do julgamento do Concílio. O terrível problema atual é que, ao menos aparentemente, todas as sedes de autoridade na Igreja ensinam os erros do Concílio Vaticano II e todos os eleitores do papa compartilham suas heresias. Se assim é, não há, com efeito, quem possa legalmente reconhecer o fato de tais erros no magistério nem a conseguinte ausência de autoridade nos que as propalam — situação jamais verificada na história da Igreja. E, se por um lado os fiéis atuais, tal como os fiéis da época de Nestório, devem proteger-se rompendo a comunhão com os propaladores de erros e recusando-se a reconhecer-lhes a autoridade, por outro lado não podem deixar de reconhecer o caráter de sociedade legal da Igreja, pelo qual aqueles mesmos propaladores de heresias permanecem em sua sede e cargo enquanto legalmente não forem destituídos por uma autoridade competente. Por isso a tese que aqui se expõe não só é verdadeiramente católica, mas é a única que explica adequadamente a inusitada situação que se vive hoje na Igreja: porque, com efeito, sem negar a indefectibilidade da Igreja, sua apostolicidade e unidade enquanto corpo moral único e a infalibilidade de seu magistério, ela se recusa a reconhecer a autoridade de Cristo nos que divulgam heresias desde o Concílio Vaticano II.

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Como se vê pela exposição, a classe de sedevacantismo que agora se investiga chegou às duas premissas seguintes:
● Assim como na geração natural do homem os pais não lhe dão a forma humana, ou seja, a alma, mas apenas a disposição da matéria, enquanto é Deus mesmo quem lhe infunde a alma, assim também, na Igreja, é o colégio eleitoral competente quem dá a determinado homem a matéria ou designação legal de papa, enquanto é Cristo mesmo quem lhe dá a forma ou autoridade; mas, assim como a alma humana deixa de ser infundida se a matéria não estiver adequadamente disposta para receber a forma substancial, assim também, se o homem designado legalmente papa não estiver materialmente disposto (por exemplo, por heresia) para receber de Cristo a forma ou jurisdição, seguirá sendo papa, mas apenas materialmente.
● Ora, desde o Concílio Vaticano II os papas têm sido notoriamente heréticos.
Donde a conclusão (que, como visto, já estava preestabelecida, mas foi alterada em razão da nova premissa maior encontrada):
● Os papas, desde o Concílio Vaticano II, são materialiter papas, mas não o são formaliter, razão por que devem os fiéis católicos romper a comunhão com eles e não reconhecer-lhes nenhuma autoridade ou direito de legislar.
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Notas prévias à refutação da Tese de Cassiciacum

> Como convém, começaremos por refutar a premissa maior da tese adversária. Diga-se, porém, desde já: se se quer explicar o papado por uma analogia com o composto humano de corpo e alma, antes se deveria reconhecer (como escreve o Padre Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire, p. 79) que, “assim como, na geração, da disposição da matéria por parte dos pais se segue necessariamente a criação da alma por parte de Deus, da eleição validamente aceita por parte da Igreja se segue [necessariamente] a comunicação do poder por parte de Nosso Senhor. As disposições requeridas para aquilo são as mesmas que para isto”. Ora, se assim é, rui toda a Tese de Cassiciacum pela improcedência de sua premissa maior. E não deteve o autor da tese nem seu defensor o Padre Donald J. Sanborn sequer o fato de a Constituição Vacantis Apostolicæ Sedis, de Pio XII, referida por eles mesmos, estabelecer exatamente o contrário do que defendem. Veremos tudo isso detidamente.
> A premissa menor da tese implica, como já se adiantou, um argumento para trás (quia) de todo ilícito aqui, e pode-se dizer que a pretensa notoriedade atribuída por ela à heresia de Paulo VI durante o Concílio efetivamente não se deu então. Em verdade, como se verá, também esta forma de raciocinar para trás constitui uma “reconstrução ideal da história”.
> A conclusão desta tese será refutada aqui na medida mesma em que se diferencia da dos demais tipos de sedevacantismo, ou seja, no afirmar uma sedevacância apenas formal. Mas, na medida em que compartilha com os demais tipos o caráter geral do sedevacantismo, só será refutada ao final do exame do conjunto deles.
> Após aquelas refutações da Tese de Cassiciacum, responder-se-á particularmente a cada item numerado de sua exposição, e então se mostrará a quantidade impressionante de suas imprecisões e obscuridades filosóficas e o uso impróprio que faz não só de Santo Tomás de Aquino, mas também de São Roberto Bellarmino, Suárez, etc.

(Continua.)