Sidney Silveira
A essa altura da minha vida, premido pelo raio de uma doença que faz de mim um paciente de risco — com eventos intermitentes e súbitos, mesmo estando eu sob a administração de remédios —, as coisas do mundo, sobretudo na hora das crises, parecem tornar-se absolutamente desimportantes. Nessas horas, o único recurso é pedir a Deus que se faça a vontade d’Ele, ou seja: se a morte vier, que seja em amizade com Ele, em estado de graça, e nunca em estado de pecado mortal. Um apelo à misericórdia divina no momento decisivo, de possível passagem desta vida à outra. Nessas horas, grande parte das coisas que pareciam relevantes para nós ganha a sua real dimensão. Eram na verdade pó. Fumaça. O senso de realidade, que estava entorpecido pelas paixões, pelos projetos de vida, etc., nessa hora recupera-se formidavelmente. Isto para o homem que, de alguma forma, vive no horizonte da fé. Ah, quão bom é meditar a respeito da morte! — e a melhor forma de fazê-lo parece ser quando ela nos ameaça com a sua sombra, embora saibamos que Deus é quem sabe o dia.
Mas o fato é que, estando ou não doente, se há uma coisa que não tenho é sangue de barata! Sempre fui sangüíneo, e, por isso, quando certas coisas passam do limite da aceitável, vêm-me ímpetos tremendos. Afinal, ser tolerante não é tolerar o intolerável, não obstante possamos, como cristãos, oferecer tudo a Deus em desagravo aos que nos querem fazer mal ou querem fazê-lo a quem amamos. Eu hoje sei que, nessas horas, só mesmo Deus para temperar o calor que me corre nas veias. Foi o que aconteceu anteontem, quando eu soube de uma trama contra uma pessoa espiritual, por coincidência no exato momento de uma dessas crises. Certamente porque Deus quer santificá-la, mas isto não retira de nós a tristeza com o fato.
Eu poderia dizer muitas coisas (e talvez um dia o faça), em razão do que está em jogo. Por ora, ocorreu-me apenas postar o trecho de uma das cartas de Santa Catarina de Sena, Mística e Doutora da Igreja, sobre a vida religiosa — em duas faces de uma mesma moeda.
E, por ora, mais não digo.
SANTA CATARINA DE SENA
(Trecho da Carta 67)
A vida religiosa(...)
"2. O religioso indigno desse nome
Lembrai-vos, caríssimos filhos, que pode existir religioso que não vive conforme a Regra, [que vive] sem bons costumes religiosos, lascivamente, com desejos errados, impaciente, descontente com as observâncias regulares da Ordem, por demais alegre em divertimentos e prazeres do mundo, soberbo e vazio. Dessa soberba e vacuidade procede a desonestidade mental e corporal. É possível haver religioso sedento de honras, posições sociais e riquezas materiais, que são a morte para a alma, e vergonha e confusão para os consagrados. Tal religioso seria uma flor malcheirosa e desagradável a Deus, aos anjos e aos homens. Seria digno de condenação, pois encaminha-se para a morte eterna. Desejando riquezas, empobrece; querendo honra, se rebaixa; procurando o prazer sensível e o cuidado de si fora de Deus, termina odiando-se; desejoso de saciar-se com prazeres do mundo, acaba passando fome e dessa fome vem a morrer. Porque as realidades e prazeres do mundo não conseguem saciar a alma humana. As criaturas materiais foram feitas para o homem e o homem para Deus. As criaturas materiais não podem satisfazer o homem, dado que são menores que ele. Somente Deus, Criador e artífice de tudo, é capaz de saciá-lo. Por isso aquele religioso morre de fome [espiritual]!
3. Como vive o bom religioso.
Não agem assim as flores perfumadas, ou seja, os verdadeiros religiosos obedientes à Regra da Ordem. Não desobedecem; prefeririam morrer. Sobretudo no que se refere ao voto feito na profissão religiosa, quando prometem obediência, pobreza voluntária e continência da mente e do corpo. (...) Os verdadeiros religiosos não investigam a vontade de quem os governa; simplesmente obedecem. (...) o religioso humilde compreende que a pobreza voluntária das coisas do mundo enriquece a alma e a liberta da escravidão, torna-o benigno e manso, afasta-o da vacuidade da fé na esperança das coisas transitórias e traz a fé viva da esperança verdadeira".