Carlos Nougué
[Advertência: Nossa série “Sedevacantismo, ou uma conclusão à procura de premissas” foi começada neste blog, há já algum tempo, e suspensa por dificuldades de tempo. Foi recomeçada no site da FSSPX, partindo-se do zero e de forma revisada e melhorada. Naquele site, fomos até a parte 4. Agora, porém, como o site da FSSPX entrará em recesso para remodelações, sigo com a série aqui, no Contra Impugnantes, a partir da parte 5, que agora se publica. Como já disse alhures, quem desejar receber as quatro primeiras partes, basta escrever-me (carlosnougu@hotmail.com) pedindo-as.]
A TESE DE CASSIACUM
Vale, sem dúvida, para a chamada Tese sedevacantista de Cassiciacum o já dito nas partes I e II deste artigo com respeito ao sedevacantismo em geral: tem ela por ponto de partida a conclusão de que um herético não pode ser cabeça da Igreja. Ora, a partir do Concílio Vaticano II todos os papas se mostraram heréticos; logo, pelo menos desde então a Sede Romana está vacante por defeito de autoridade.
Vale, sem dúvida, para a chamada Tese sedevacantista de Cassiciacum o já dito nas partes I e II deste artigo com respeito ao sedevacantismo em geral: tem ela por ponto de partida a conclusão de que um herético não pode ser cabeça da Igreja. Ora, a partir do Concílio Vaticano II todos os papas se mostraram heréticos; logo, pelo menos desde então a Sede Romana está vacante por defeito de autoridade.
Tal raciocínio se segue, como já dito, da forte impressão causada no espírito de fiéis católicos pelas novidades introduzidas a partir do Concílio Vaticano II, novidades que se chocam frontal e patentemente com o declarado pela totalidade do magistério anterior. Acontece, todavia, que ambas as premissas deste raciocínio são tênues: a primeira porque seria necessário averiguar, antes, se qualquer espécie de heresia impede de fato o ser cabeça da Igreja; a segunda porque, como se verá na refutação da Tese de Cassiciacum, implica um argumento quia inválido para o assunto de que aqui se trata.
Ou seja, entre tais premissas e aquela conclusão há saltos lógicos que tornam frágil o raciocínio. Não obstante, ainda que sabedor disso, o dominicano e bispo francês Michel Louis Guérard des Lauriers (1898-1988), o autor da Tese de Cassiciacum, não buscou investigar profundamente suas premissas iniciais, mas aferrou-se à sua conclusão e saiu em busca de outras premissas, mais sólidas, para ela. Como se dá com todas as outras formas de sedevacantismo, trata-se, na prática, de conclusão apriorística. Como porém chegou ele, de fato, a outra premissa maior, passou a seguir-se dela aquela mesma conclusão, sim, mas algo alterada: já não se trata de que os Papas pós-conciliares simplesmente não sejam Papas; de fato, não o são formalmente (formaliter), mas continuam a sê-lo materialmente (materialiter). Ora, aquela nova premissa maior (a menor permaneceu, obviamente encerrando ainda o já referido argumento quia) encerra, como também já antecipado, uma imprópria e obscura analogia da autoridade (e particularmente da autoridade papal) com o composto humano de corpo e alma.
Essencialmente menos complexa que a tese sedevacantista decorrente da obra A Figura deste Mundo, de Pacheco Salles, a Tese de Cassiciacum, porém, é não só essencialmente bem mais complexa que a dos sedevacantistas que para justificar sua posição se aferram à Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV, mas muito mais complicada que a primeira tese. Com efeito, as próprias analogias impróprias com a filosofia da natureza de que se tece a Tese de Cassiciacum a tornam intricada e obscura, e duplamente mais trabalhosa de refutar: primeiro, precisamente porque se tem de deslindar (na medida do possível) tal obscuridade; segundo, porque se tem de mostrar que aquelas mesmas analogias, supostamente fundadas na obra de Santo Tomás e na de uma multidão de outros respeitados teólogos, em verdade não se fundam nelas. Por isso, ademais, se para bem refutar qualquer tese adversária é preciso antes expô-la o mais fidedignamente, a exposição da Tese de Cassiciacum já requererá de nós e do leitor um bom e longo esforço, que tomará duas partes deste artigo (esta e a da próxima semana). Comecemos, então, a expô-la: [1]
1) Aos católicos que se opõem ao Concílio Vaticano II e às suas novidades apresenta-se um grande problema: precisamente o da autoridade papal. Com efeito, como justificar a rejeição do que tanto o Concílio como os papas chamados conciliares proclamaram com pelo menos aparente autoridade suprema? Não é satisfatória a solução adotada pela Fraternidade Sacerdotal São Pio X, a saber, que os papas conciliares são, sim, verdadeiros papas, mas não se lhes deve obedecer quando exigem, em contradição com o magistério de sempre, que se assinta ao que é falso do ângulo da Fé — como, por exemplo, a salvação possível fora da Igreja — ou que se pratique o que do mesmo ângulo não é correto — como, por exemplo, o ecumenismo. E não é satisfatória porque, conquanto tal solução possa ser perfeitamente aplicada a ordens de um papa enquanto pessoa privada, implica porém uma defecção da Igreja se se trata do magistério ordinário universal ou de leis gerais, pertencendo ambas, como de fato pertencem, ao campo das verdade infalíveis.
2) Ora, considerada a assistência do Espírito Santo prometida aos papas, um verdadeiro papa não pode, em nome da Igreja, ensinar falsidades ou ordenar que se faça algo mau. Logo, a única solução que não atenta contra a indefectibilidade da Igreja consiste em afirmar que os papas conciliares, que propiciam a defecção da fé e induzem a uma nova religião, não desfrutam da autoridade papal. Há porém diferença entre os defensores da tese de que os papas conciliares não desfrutam da autoridade divinamente outorgada por Jesus Cristo a seus vigários. Sim, porque enquanto uns afirmam que os papas conciliares são totalmente privados da dignidade pontifical (como se dá com os que, para prová-lo, se apóiam na Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV), outros (os que defendem a Tese de Cassiciacum) sustentam que eles são privados dela apenas parcialmente: de fato não são formaliter (formalmente) papas, mas o são materialiter (materialmente).
3) Para compreendê-lo, é preciso distinguir corretamente entre a matéria e a forma da autoridade em geral e aplicar corretamente essa distinção ao papado. Ora, tal distinção é clássica e se encontra em quase todos os teólogos. Ademais, encontra-se implicitamente na questão da sucessão apostólica, onde se trata da sucessão material mas não formal entre os cismáticos. Pois bem, segundo a opinião mais aceita, a sucessão apostólica pode ser material ou formal, isto é: ou a posse da sede sem a autoridade, ou a posse da sede com a autoridade. Essa alternativa, obviamente, demonstra a realidade da distinção entre posse da sede e posse da autoridade apostólica. Como se verá, trata-se de uma distinção simples e cristalina extraída da filosofia tomista e confirmada, como já dito, por numerosos teólogos de todas as escolas católicas de pensamento.
4) Com efeito, pode-se encontrar a referida distinção nos seguintes e importantes teólogos, escolhidos precisamente por representar em conjunto uma ampla gama de correntes católicas de pensamento: Æmil Dorsch, Institutiones Theologiæ Fundamentalis, Œniponte, 1914, Tomo II; Card. Camillo Mazzella, De Religione et Ecclesia Prælectiones Scholastico-dogmaticae, Roma, 1896; Domenico Palmieri, S.J., Tractatus de Romano Pontifice, Prati Giachetti, 1891; E. Sylvester Berry, D.D., The Church of Christ, St. Louis B., Herder Book Co., 1927; G. Van Noort, Tractatus de Ecclesia Christi, Hilversi in Hollandia, 1932; H. Hurther S.J., Medulla Theologiæ Dogmaticæ, Œniponte: Libreria Academica Wagneriana, 1902; J. V. de Groot, O.P., Summa Apologetica de Ecclesia Catholica, Ratisbona, Institutum Librarium pridem G.J. Manz., 1906; Johannes MacGuinnes C.M., Commenterai Theologici, Parisiis, P. Lethielleux, 1913; M. Jugie, Art. “Apostolicità”, in Enciclopedia Cattolica, Città del Vaticano 1948, vol. I, col. 1693; Padres Jesuitas Profesores de las Facultades de Teología em España, Sacrae Theologiae Summa, I: Theologia Fundamentalis, Madri, La Editorial Católica, 1952; Raphael Cercià, S.J., Tractatus de Ecclesia Vera Christi, Neapoli Typis Caietani Migliaccio, 1852; Serapius Ab Iragui, O.F.M. CAP., Manuale Theologiæ Dogmaticæ, I, Theologia fundamentalis, Madri, Ed. Studium, 1959; Valentinus Zubizarreta, Theologia Dogmatico-Scholastica, I, Theologia fundamentalis, Bilbao, Ed. Eléxpuru Hnos., 1937; Yves de la Brière, Eglise (Question des Notes), in Dictionnaire Apologétique de la Foi Catholique, éd. A. D’Alès. Paris, Beauchesne, 1911; Card. Ludovicus Billot, S.J., De Ecclesia Christi, Roma, Università Pontificia Gregoriana, 1927; S. Roberto Bellarmino, S.J., De Romano Pontifice, I. 2, c. 17.
Pois bem, segundo todos esses autores, a sucessão apostólica deve ser contínua tanto materialiter quanto formaliter, de modo que a Igreja, por analogia com um corpo físico vivo, tenha legalmente um só corpo moral — ou seja, uma hierarquia legalmente constituída com seus membros conexos — e uma só alma moral — uma autoridade. E isso, naturalmente, ao longo do tempo até o fim dos tempos. Se esses dois princípios viessem a faltar, falharia a Igreja. Se a unicidade corporal faltasse, ou seja, se não se desse a legal sucessão apostólica, então a autoridade não poderia ser recebida na matéria e a missão da Igreja de Cristo teriam fim, sem possibilidade de restabelecimento, de modo que, se alguém a quisesse restabelecer após a solução de continuidade na sucessão apostólica, se trataria já não da mesma Igreja, mas de outra. Sim, porque neste caso faltaria o princípio de unidade material que dá unidade à Igreja. A interrupção da linha material é analógica à aniquilação do corpo num ente físico: perde-se com isso a matéria que possa receber a forma.
5) Por outro lado, a identidade da Igreja exige que ela tenha uma só forma como constitutivo de sua personalidade moral; e tal constitutivo é a própria autoridade de Cristo transmitida a todo e qualquer papa eleito válida e indubitavelmente e que não oponha nenhum óbice a receber a autoridade. Desse modo, a autoridade que governa a Igreja é a mesma autoridade de Cristo possuída vicariamente pelo Papa. Assim como não é possível haver vários corpos eclesiásticos, mas apenas um, por causa da continuidade legal da seqüência de pastores, assim também não é possível haver duas autoridades, mas apenas uma, a que constitui a Igreja como pessoa única e sobrenatural que perdura ao longo do tempo.
6) Insista-se: a autoridade apostólica não pode ser recebida senão por alguém que se tenha eleito legitimamente para a sede apostólica. Os intrusos, ou seja, os que não tenham sido eleitos legalmente, não são aptos a ser sucessores apostólicos. A sucessão material legal, todavia, não é suficiente para que haja sucessão apostólica legítima, precisamente porque a autoridade é a forma que constitui um verdadeiro sucessor. O que porém importa por ora é que, se há distinção real entre a mera ocupação material da sede e a posse formal da autoridade, é porque essas duas realidades podem efetivamente ser separadas — e tal é o fundamento mesmo da tese que aqui se expõe. Com efeito, justamente porque a designação para receber a autoridade não implica necessariamente a posse dessa mesma autoridade é que, se a pessoa designada possuísse algum óbice para receber a autoridade, permaneceria em estado puramente material com respeito à autoridade. Em tal caso, o sujeito da designação não perderia a mesma designação (a não ser que lhe fosse legalmente retirada), mas ao mesmo tempo não possuiria a autoridade, razão por que não seria papa ou bispo local simpliciter, mas tão-somente secundum quid, isto é, por disposição. Inversamente, a não-posse da autoridade ou sua perda não exclui a designação material-legal. Logo, essa designação material-legal, a única capaz de receber a autoridade, e a própria autoridade são coisas efetiva e realmente não só diversas, mas separáveis.
7) Aprofunde-se a questão. A Igreja é dirigida principalmente por Jesus Cristo, seu chefe, e a autoridade do Papa, como dito, é a mesma de Cristo, mas usufruída vicariamente. A autoridade ou jurisdição é una e única (é a de Cristo) e prossegue ao longo dos séculos pela sucessão apostólica; e, com efeito, quando morre uma papa, a sede fica vacante, mas a continuidade do papado não sofre solução, precisamente porque a Igreja tem a intenção de eleger um novo pontífice. A sucessão de um papa por outro é puramente moral enquanto prossegue a intenção de eleger um papa. Mas a sucessão material deve ser física de maneira precisa, a saber: deve haver sempre pessoas legalmente aptas para eleger o papa. Em outras palavras: a linha corporal da Igreja, sobretudo de sua hierarquia, não tolera interrupção física. Se, raciocinando ab absurdo, tal linha se interrompesse ainda que por um breve momento, a Igreja, como já dito, terminaria. Com efeito, se faltassem os sucessores materiais legítimos, já não haveria ninguém para receber a autoridade de Cristo e poder, assim, governar Sua Igreja como vigário. Desse modo, a parte formal da autoridade da Igreja permanece em Cristo enquanto a sede apostólica está vacante; mas a parte material — a pessoa legalmente designada para receber a autoridade — não pode existir se não há ninguém, precisamente, para designá-la. “Neste caso [traduzimos aqui, à letra, a frase do Padre Donald J. Sanborn] esta linha material ou puramente legal falharia e não poderia ser restabelecida senão por aquele que tem a autoridade, quer dizer, Cristo mesmo, que, considerando a divina constituição da Igreja, ‘deveria’ fazer uma nova convocação de Apóstolos e uma nova Igreja, diferente da fundada sobre São Pedro.”
8) Ainda que se considere a autoridade em geral, seja a de um papa, a de um rei ou a de qualquer outro governante civil, vê-se que igualmente consiste na união de duas partes, as quais também se podem considerar por analogia com o ente substancial. Com efeito, a matéria-prima é o primeiro sujeito e substrato de toda a realidade física. A forma substancial é o ato que constitui um unum per se ao unir-se à matéria-prima dando-lhe determinado modo de ser. A causa material é aquilo por que uma coisa é feita; a causa formal é o que dá à matéria determinada essência. Já a forma acidental, por um lado, é análoga à forma substancial, porque, com relação à forma acidental que a aperfeiçoa, a substância em que inere o acidente tem idêntico caráter material ou de sujeito. Mas, enquanto a forma substancial dá o ser simpliciter, a acidental não dá senão o ser isto ou aquilo. Ora, para que haja um composto ou sínolo — no caso que nos interessa, um papa, um rei ou qualquer outro governante civil —, é preciso que a forma seja recebida numa matéria apta para recebê-la, porque as partes não podem unir-se e formar um composto se não há proporção e disposição entre elas. Logo, qualquer autoridade, seja um papa, um rei ou qualquer outro governante civil, constitui-se de matéria — um homem — e forma — a faculdade de legislar e governar, que faz daquele homem alguém superior a seus súditos ou governados. Tal homem, entretanto, só pode receber esta faculdade formal se possuir todas as perfeições requeridas para isso: assim, um louco, embora seja homem e conseqüentemente tenha, enquanto homem, predisposição para exercer algum tipo de autoridade, não é apto, porém, para receber nenhuma autoridade, por defeito de disposição intelectual para promover o bem comum. Da mesma forma, quem não tiver cidadania de determinado país não pode tornar-se seu governante, porque quem não é membro de um corpo não pode ser sua cabeça. Similarmente, portanto, se um sacerdote ou um leigo eleito papa recusa a consagração episcopal, fica impossibilitado de receber a autoridade: porque não tem a perfeição acidental necessária para governar a Igreja e promover seu bem comum. Vê-se, assim, que são necessárias certas disposições para que um homem possa receber, enquanto matéria, a forma substancial da autoridade.
9) Geralmente, para definir formalmente a autoridade, os filósofos recorrem à noção de lei. Com efeito, correntemente se define a autoridade como faculdade de legislar, à qual corresponde o direito da autoridade de obrigar seus súditos ou subordinados a fazer ou não fazer determinadas coisas. De fato, a noção de autoridade se deve seguir da noção de lei porque a especificidade de toda e qualquer faculdade decorre de seu ato e de seu objeto. É o que diz Santo Tomás na Suma Teológica: a lei é “uma ordenação da razão ao bem comum, estabelecida e promulgada por quem tem sob sua responsabilidade a comunidade”. Por isso, por ordenar-se essencialmente ao bem comum, é que para o mesmo Santo Tomás, se faltar tal ordenação, perde a lei a força de obrigar e perde, pois, o próprio nome e o caráter de lei. Ora, a autoridade também se ordena essencialmente ao bem comum. Como diz Cathrein, autoridade é “o direito de obrigar os membros da sociedade a que com seus atos cooperem para o bem comum”. Ora, se desse modo se define a autoridade, deve-se incluí-la no gênero dos habitus ou disposições; e, enquanto é um habitus, recebe sua espécie e sua definição de seu objeto formal. Assim, o objeto formal e primário do habitus da autoridade é elaborar leis, promulgá-las e fazer com que sejam aplicadas; ora, o objeto formal da lei é promover o bem comum; logo, mediante a lei, também a autoridade se ordena necessária e essencialmente ao bem comum. Mas para que tal se dê é preciso que a autoridade tenha a intenção habitual de promover o bem comum, precisamente porque qualquer autoridade é um direito permanente e não transitório. Ademais, tal intenção habitual tem de ter caráter objetivo e não apenas subjetivo: não basta que o detentor da autoridade entenda a seu modo o bem comum da comunidade por que é responsável; é preciso, igualmente, que sua concepção desse bem comum se identifique efetivamente com o bem comum objetivo. Se assim não fosse, a definição de lei como “ordenação da razão ao bem comum” não se cumpriria, nem portanto a de autoridade, porque para definir a autoridade, como se viu, se deve precisamente recorrer à noção de lei.
10) Se porém se trata de saber o fundamento último de toda e qualquer autoridade, não a podemos encontrar senão em Deus e em sua Providência, mediante a qual, segundo Sua própria Lei eterna, Ele ordena tudo no universo a seu fim. Se assim é, a faculdade de legislar do rei ou de qualquer governante é participação na mesma Providência divina, recebendo a lei humana da Lei eterna sua própria capacidade de obrigar: obedecer à lei humana é indiretamente obedecer a Deus. Pela mesma razão, a relação rei-súdito provém de Deus e não da comunidade, ainda que se exija que a comunidade designe legalmente a pessoa que vai receber o poder real. Pois bem, reciprocamente ao poder de legislar, que é um poder ativo e a razão por que alguém é constituído rei ou governante, tem-se a obrigação de obedecer à lei, obrigação que é a razão por que alguém se constitui súdito. Por isso, o rei permanece unido à comunidade enquanto é promotor do bem comum; e a comunidade permanece unida ao rei enquanto é movida ao bem comum. O rei recebe o direito de legislar porque Deus lhe “infunde” o direito de mover a comunidade ao bem comum; enquanto os súditos recebem a capacidade de obedecer porque Deus lhes “infunde” o dever de obedecer ao legislador. Assim, a relação rei-súdito tem por fundamento, antes de tudo, a Deus mesmo e sua Providência; em seguida, o fato de Ele “infundir” no rei o poder de obrigar e nos súditos o correspondente dever de obedecer; dessa maneira, o rei recebe a autoridade de Deus, embora receba a designação da comunidade para promover o bem comum. Pois é precisamente do fato de a comunidade “gerar” o rei que se produzem duas relações mútuas, tal como acontece na geração natural: porque o rei é “gerado” apenas em ordem ao bem comum, por isso mesmo as relações de autoridade e sujeição não perduram senão enquanto perdure aquela ordem ao bem comum; se esta é suprimida, suprimem-se igualmente aquelas relações. Logo, aquele que promulga leis más não pode ser verdadeiro papa, porque o bem é essencial não só à fé, mas à missão confiada por Cristo à sua Igreja.
11) Se, pois, como diz Santo Tomás, é preciso haver proporção entre a matéria e a forma que entram na formação de um mesmo composto, sendo essa proporção dupla: por ordem natural entre matéria e forma, e por supressão de um impedimento, então não pode receber o poder real senão aquele que foi legalmente designado para tal — e se houver proporção ou ordem natural entre matéria e forma e se não existir nenhum impedimento. Assim, por uma permanente desproporção de ordem física um louco não pode receber o poder papal; mas, na ordem do moral, não pode receber o poder papal quem quer que interponha qualquer óbice voluntário e amovível, como, por exemplo, o recusar-se a se consagrar bispo — ou ainda o ter a intenção de ensinar erros ou promulgar leis más. Logo, pode alguém ser apto à designação válida para o papado e, no entanto, não ter a autoridade “infundida” por Deus em razão de um impedimento moral e voluntário não suprimido — no caso, a ausência de intenção de promover o bem comum.
(Continua.)
[1] Para a exposição da Tese de Cassiciacum, baseamo-nos, como já dito, particularmente na série “La Papauté matérielle”, do Padre Donald J. Sanborn, ed. francesa da revista Sodalitium, nos 46, 48 e 49, e numa “Entrevista a Monseñor Guérard des Lauriers”, cujo original se encontra no no 13 da mesma revista. Para a refutação da Tese, apoiamo-nos sobretudo em Padre Álvaro Calderón, A Candeia Debaixo do Alqueire, Artigo Primeiro, especialmente pp. 71-76; Arnaldo Xavier da Silveira, La nueva misa de Pablo VI, especialmente sua Segunda Parte: “La hipótesis teológica de un Papa hereje” (tradução datilografada); e Santo Tomás de Aquino, especialmente a Suma Teológica, Ia-IIae, Tratado da Lei, qq. 90-97.
5) Por outro lado, a identidade da Igreja exige que ela tenha uma só forma como constitutivo de sua personalidade moral; e tal constitutivo é a própria autoridade de Cristo transmitida a todo e qualquer papa eleito válida e indubitavelmente e que não oponha nenhum óbice a receber a autoridade. Desse modo, a autoridade que governa a Igreja é a mesma autoridade de Cristo possuída vicariamente pelo Papa. Assim como não é possível haver vários corpos eclesiásticos, mas apenas um, por causa da continuidade legal da seqüência de pastores, assim também não é possível haver duas autoridades, mas apenas uma, a que constitui a Igreja como pessoa única e sobrenatural que perdura ao longo do tempo.
6) Insista-se: a autoridade apostólica não pode ser recebida senão por alguém que se tenha eleito legitimamente para a sede apostólica. Os intrusos, ou seja, os que não tenham sido eleitos legalmente, não são aptos a ser sucessores apostólicos. A sucessão material legal, todavia, não é suficiente para que haja sucessão apostólica legítima, precisamente porque a autoridade é a forma que constitui um verdadeiro sucessor. O que porém importa por ora é que, se há distinção real entre a mera ocupação material da sede e a posse formal da autoridade, é porque essas duas realidades podem efetivamente ser separadas — e tal é o fundamento mesmo da tese que aqui se expõe. Com efeito, justamente porque a designação para receber a autoridade não implica necessariamente a posse dessa mesma autoridade é que, se a pessoa designada possuísse algum óbice para receber a autoridade, permaneceria em estado puramente material com respeito à autoridade. Em tal caso, o sujeito da designação não perderia a mesma designação (a não ser que lhe fosse legalmente retirada), mas ao mesmo tempo não possuiria a autoridade, razão por que não seria papa ou bispo local simpliciter, mas tão-somente secundum quid, isto é, por disposição. Inversamente, a não-posse da autoridade ou sua perda não exclui a designação material-legal. Logo, essa designação material-legal, a única capaz de receber a autoridade, e a própria autoridade são coisas efetiva e realmente não só diversas, mas separáveis.
7) Aprofunde-se a questão. A Igreja é dirigida principalmente por Jesus Cristo, seu chefe, e a autoridade do Papa, como dito, é a mesma de Cristo, mas usufruída vicariamente. A autoridade ou jurisdição é una e única (é a de Cristo) e prossegue ao longo dos séculos pela sucessão apostólica; e, com efeito, quando morre uma papa, a sede fica vacante, mas a continuidade do papado não sofre solução, precisamente porque a Igreja tem a intenção de eleger um novo pontífice. A sucessão de um papa por outro é puramente moral enquanto prossegue a intenção de eleger um papa. Mas a sucessão material deve ser física de maneira precisa, a saber: deve haver sempre pessoas legalmente aptas para eleger o papa. Em outras palavras: a linha corporal da Igreja, sobretudo de sua hierarquia, não tolera interrupção física. Se, raciocinando ab absurdo, tal linha se interrompesse ainda que por um breve momento, a Igreja, como já dito, terminaria. Com efeito, se faltassem os sucessores materiais legítimos, já não haveria ninguém para receber a autoridade de Cristo e poder, assim, governar Sua Igreja como vigário. Desse modo, a parte formal da autoridade da Igreja permanece em Cristo enquanto a sede apostólica está vacante; mas a parte material — a pessoa legalmente designada para receber a autoridade — não pode existir se não há ninguém, precisamente, para designá-la. “Neste caso [traduzimos aqui, à letra, a frase do Padre Donald J. Sanborn] esta linha material ou puramente legal falharia e não poderia ser restabelecida senão por aquele que tem a autoridade, quer dizer, Cristo mesmo, que, considerando a divina constituição da Igreja, ‘deveria’ fazer uma nova convocação de Apóstolos e uma nova Igreja, diferente da fundada sobre São Pedro.”
8) Ainda que se considere a autoridade em geral, seja a de um papa, a de um rei ou a de qualquer outro governante civil, vê-se que igualmente consiste na união de duas partes, as quais também se podem considerar por analogia com o ente substancial. Com efeito, a matéria-prima é o primeiro sujeito e substrato de toda a realidade física. A forma substancial é o ato que constitui um unum per se ao unir-se à matéria-prima dando-lhe determinado modo de ser. A causa material é aquilo por que uma coisa é feita; a causa formal é o que dá à matéria determinada essência. Já a forma acidental, por um lado, é análoga à forma substancial, porque, com relação à forma acidental que a aperfeiçoa, a substância em que inere o acidente tem idêntico caráter material ou de sujeito. Mas, enquanto a forma substancial dá o ser simpliciter, a acidental não dá senão o ser isto ou aquilo. Ora, para que haja um composto ou sínolo — no caso que nos interessa, um papa, um rei ou qualquer outro governante civil —, é preciso que a forma seja recebida numa matéria apta para recebê-la, porque as partes não podem unir-se e formar um composto se não há proporção e disposição entre elas. Logo, qualquer autoridade, seja um papa, um rei ou qualquer outro governante civil, constitui-se de matéria — um homem — e forma — a faculdade de legislar e governar, que faz daquele homem alguém superior a seus súditos ou governados. Tal homem, entretanto, só pode receber esta faculdade formal se possuir todas as perfeições requeridas para isso: assim, um louco, embora seja homem e conseqüentemente tenha, enquanto homem, predisposição para exercer algum tipo de autoridade, não é apto, porém, para receber nenhuma autoridade, por defeito de disposição intelectual para promover o bem comum. Da mesma forma, quem não tiver cidadania de determinado país não pode tornar-se seu governante, porque quem não é membro de um corpo não pode ser sua cabeça. Similarmente, portanto, se um sacerdote ou um leigo eleito papa recusa a consagração episcopal, fica impossibilitado de receber a autoridade: porque não tem a perfeição acidental necessária para governar a Igreja e promover seu bem comum. Vê-se, assim, que são necessárias certas disposições para que um homem possa receber, enquanto matéria, a forma substancial da autoridade.
9) Geralmente, para definir formalmente a autoridade, os filósofos recorrem à noção de lei. Com efeito, correntemente se define a autoridade como faculdade de legislar, à qual corresponde o direito da autoridade de obrigar seus súditos ou subordinados a fazer ou não fazer determinadas coisas. De fato, a noção de autoridade se deve seguir da noção de lei porque a especificidade de toda e qualquer faculdade decorre de seu ato e de seu objeto. É o que diz Santo Tomás na Suma Teológica: a lei é “uma ordenação da razão ao bem comum, estabelecida e promulgada por quem tem sob sua responsabilidade a comunidade”. Por isso, por ordenar-se essencialmente ao bem comum, é que para o mesmo Santo Tomás, se faltar tal ordenação, perde a lei a força de obrigar e perde, pois, o próprio nome e o caráter de lei. Ora, a autoridade também se ordena essencialmente ao bem comum. Como diz Cathrein, autoridade é “o direito de obrigar os membros da sociedade a que com seus atos cooperem para o bem comum”. Ora, se desse modo se define a autoridade, deve-se incluí-la no gênero dos habitus ou disposições; e, enquanto é um habitus, recebe sua espécie e sua definição de seu objeto formal. Assim, o objeto formal e primário do habitus da autoridade é elaborar leis, promulgá-las e fazer com que sejam aplicadas; ora, o objeto formal da lei é promover o bem comum; logo, mediante a lei, também a autoridade se ordena necessária e essencialmente ao bem comum. Mas para que tal se dê é preciso que a autoridade tenha a intenção habitual de promover o bem comum, precisamente porque qualquer autoridade é um direito permanente e não transitório. Ademais, tal intenção habitual tem de ter caráter objetivo e não apenas subjetivo: não basta que o detentor da autoridade entenda a seu modo o bem comum da comunidade por que é responsável; é preciso, igualmente, que sua concepção desse bem comum se identifique efetivamente com o bem comum objetivo. Se assim não fosse, a definição de lei como “ordenação da razão ao bem comum” não se cumpriria, nem portanto a de autoridade, porque para definir a autoridade, como se viu, se deve precisamente recorrer à noção de lei.
10) Se porém se trata de saber o fundamento último de toda e qualquer autoridade, não a podemos encontrar senão em Deus e em sua Providência, mediante a qual, segundo Sua própria Lei eterna, Ele ordena tudo no universo a seu fim. Se assim é, a faculdade de legislar do rei ou de qualquer governante é participação na mesma Providência divina, recebendo a lei humana da Lei eterna sua própria capacidade de obrigar: obedecer à lei humana é indiretamente obedecer a Deus. Pela mesma razão, a relação rei-súdito provém de Deus e não da comunidade, ainda que se exija que a comunidade designe legalmente a pessoa que vai receber o poder real. Pois bem, reciprocamente ao poder de legislar, que é um poder ativo e a razão por que alguém é constituído rei ou governante, tem-se a obrigação de obedecer à lei, obrigação que é a razão por que alguém se constitui súdito. Por isso, o rei permanece unido à comunidade enquanto é promotor do bem comum; e a comunidade permanece unida ao rei enquanto é movida ao bem comum. O rei recebe o direito de legislar porque Deus lhe “infunde” o direito de mover a comunidade ao bem comum; enquanto os súditos recebem a capacidade de obedecer porque Deus lhes “infunde” o dever de obedecer ao legislador. Assim, a relação rei-súdito tem por fundamento, antes de tudo, a Deus mesmo e sua Providência; em seguida, o fato de Ele “infundir” no rei o poder de obrigar e nos súditos o correspondente dever de obedecer; dessa maneira, o rei recebe a autoridade de Deus, embora receba a designação da comunidade para promover o bem comum. Pois é precisamente do fato de a comunidade “gerar” o rei que se produzem duas relações mútuas, tal como acontece na geração natural: porque o rei é “gerado” apenas em ordem ao bem comum, por isso mesmo as relações de autoridade e sujeição não perduram senão enquanto perdure aquela ordem ao bem comum; se esta é suprimida, suprimem-se igualmente aquelas relações. Logo, aquele que promulga leis más não pode ser verdadeiro papa, porque o bem é essencial não só à fé, mas à missão confiada por Cristo à sua Igreja.
11) Se, pois, como diz Santo Tomás, é preciso haver proporção entre a matéria e a forma que entram na formação de um mesmo composto, sendo essa proporção dupla: por ordem natural entre matéria e forma, e por supressão de um impedimento, então não pode receber o poder real senão aquele que foi legalmente designado para tal — e se houver proporção ou ordem natural entre matéria e forma e se não existir nenhum impedimento. Assim, por uma permanente desproporção de ordem física um louco não pode receber o poder papal; mas, na ordem do moral, não pode receber o poder papal quem quer que interponha qualquer óbice voluntário e amovível, como, por exemplo, o recusar-se a se consagrar bispo — ou ainda o ter a intenção de ensinar erros ou promulgar leis más. Logo, pode alguém ser apto à designação válida para o papado e, no entanto, não ter a autoridade “infundida” por Deus em razão de um impedimento moral e voluntário não suprimido — no caso, a ausência de intenção de promover o bem comum.
(Continua.)
[1] Para a exposição da Tese de Cassiciacum, baseamo-nos, como já dito, particularmente na série “La Papauté matérielle”, do Padre Donald J. Sanborn, ed. francesa da revista Sodalitium, nos 46, 48 e 49, e numa “Entrevista a Monseñor Guérard des Lauriers”, cujo original se encontra no no 13 da mesma revista. Para a refutação da Tese, apoiamo-nos sobretudo em Padre Álvaro Calderón, A Candeia Debaixo do Alqueire, Artigo Primeiro, especialmente pp. 71-76; Arnaldo Xavier da Silveira, La nueva misa de Pablo VI, especialmente sua Segunda Parte: “La hipótesis teológica de un Papa hereje” (tradução datilografada); e Santo Tomás de Aquino, especialmente a Suma Teológica, Ia-IIae, Tratado da Lei, qq. 90-97.