(Carlos Magno é coroado pelo Papa Leão III: o poder temporal recebe o beneplácito do poder espiritual)
Carlos Nougué
Na década de 1950 foi fundado por Jean Ousset e outros, na França, La Cité Catholique, movimento de leigos cujo objetivo era a reinstauração do Reinado Social de Cristo, segundo o estabelecido por Pio XI na Encíclica Quas primas. Grande foi a perseguição movida contra La Cité Catholique por largos segmentos do clero, sempre sob o argumento de que os leigos não se devem intrometer em assuntos que competiriam unicamente aos religiosos; mas com um fundo claro: tratava-se já, em parte, de reação daqueles que dariam a tônica humanista-liberal ao Concílio Vaticano II. Poucas autoridades eclesiásticas saíram em defesa daquele movimento de leigos, entre as quais D. Jean le Cour Grandmaison, D. Louis (Arcebipo de Reims), e D. Marcel Lefebvre, o que lhe valeu acerbos ataques e críticas. Leiamos extensamente a carta do então Arcebispo de Dacar e Delegado Apostólico para a África Francesa dirigida a La Cité Catholique e posta ao modo de Apresentação no livro Pour qu’Il regne (escrito por Jean Ousset, mas assinado pelo movimento): “Caros Senhores [dizia D. Lefebvre], já não é necessário que eu manifeste meu encorajamento e minha simpatia com respeito à vossa associação. Quando tive a satisfação de conhecer seu objetivo, seus desejos, suas realizações, já os aprovei plenamente. Bem sei que se fazem críticas com relação a vós: elas atingem alguns detalhes de expressão; trata-se de algumas pessoas que temem por causa de seu suposto apego a certas formas de política; e essas objeções vós não deveis levar em consideração senão para aperfeiçoar vossa obra. Mas, se tais juízos querem atingir as bases mesma de vosso pensamento, de vossa orientação, então equivalem a JULGAMENTOS DE INTENÇÃO e a puras calúnias. Vossa obra Pour qu’Il regne responderá a estes últimos por seu cuidado de ser fiel intérprete do pensamento e das mensagens dos Soberanos Pontífices. Vós tornais a dizer, com todos os Papas e segundo Nosso Senhor mesmo, “venha a nós o Vosso reino”; vós quereis, antes de tudo, purificar os espíritos de tudo o que neles e em torno deles se opõe a esse Reino. Seguindo os objetivos traçados pelos Sucessores de Pedro, vós vos esforçais por melhor conhecer os graves erros que eles denunciam, a fim de destruí-los; e o meio que preconizais está entre os mais eficazes: trabalhar para que se faça a luz nos espíritos por meio de pequenos grupos, indicando de maneira precisa a Verdade por compreender e afirmar; e o erro por combater. ‘Redigere intellectum in obsequium Christi’, diz São Paulo. Essa é a primeira tarefa; a segunda, ou seja, a ação, em função dessa submissão, se dará naturalmente. Nosso Senhor reinará na Cidade quando alguns milhares de discípulos assíduos de Nosso Senhor e da Igreja forem convencidos pela graça e por seu esforço intelectual da Verdade que lhe é transmitida e de que esta Verdade é uma força divina capaz de transformar tudo. Hoje, é a verdadeira filosofia o que mais faz falta. Se, seguindo os conselhos de todos os Papas do último século, os clérigos e os próprios leigos se esforçassem por conhecer a verdadeira filosofia tomista, os verdadeiros princípios da ética e da sociologia, já não se invocariam, nas Constituições, os sacrossantos princípios de 89, que arruínam as noções fundamentais do direito, da justiça, desconhecendo a lei divina que determina o bem e o mal. Aí está por que é excelente o vosso desejo de incutir todas essas noções salutares nos espíritos para que Cristo reine. Eu desejo que possais logo preparar um livro que resuma os principais pensamentos deste e adaptados do ponto de vista didático aos vossos grupos de africanos, que são ávidos de verdade e de verdade religiosa. As graves responsabilidades que eles têm hoje exigem que tenham princípios de ação exatos e coerentes, princípios que só a religião católica detém. Que Cristo Rei e Maria, Rainha do Mundo, bendigam vossos esforços a fim de que os governantes submetam seus espíritos e os corações a Seu Reino de Amor” (negritos nossos).*
Pois bem, a partir desta importante carta de D. Marcel Lefebvre, podem-se formular as seguintes interrogações, a que tentaremos responder em seguida: 1) Por que Jean Ousset acabou por aderir às teses conciliares?; 2) Está-se defendendo aqui a criação hoje, no Brasil, de um movimento semelhante a La Cité Catholique?; 3) O efetivo apoio de D. Lefebvre a um movimento leigo tem verdadeiro respaldo no magistério da Igreja e pode estender-se, de algum modo, à ação dos leigos nos tempos atuais?
Resposta à primeira. Naturalmente, não é este o espaço para esta discussão. Digam-se apenas duas coisas. Em primeiro lugar, parece-nos, após atenta leitura de Pour qu’Il regne, encontrar um problema nele: certa incapacidade de aceitar que não se refaça a Cristandade, esquecendo-se acaso de que, conquanto Cristo possa de potentia absoluta refazê-la, talvez tal refeitura não esteja nos desígnios de Deus para a história humana (que, como já se disse num artigo deste blog, não pode ordenar-se senão à completação do números dos eleitos). Em segundo lugar: apesar disso (e da adesão de Jean Ousset, mais que às teses conciliares, à “autoridade” do Concílio), “a única obra de política católica totalmente sã que encontramos [desde séculos atrás]”, afirma o Padre Álvaro Calderón, “é Para Que Ele Reine, de Jean Ousset. É verdadeiramente ‘fiel intérprete do pensamento e das mensagens dos Soberanos Pontífices’, como diz dela o Arcebispo de Dacar, Mons. Marcel Lefebvre” (negrito nosso).
Resposta à segunda. Obviamente que não defendemos, neste blog nem em nenhum outro espaço, a criação de movimento algum, seja ao estilo de La Cité Catholique, seja ao estilo de qualquer outro. Não é a primeira vez que o dizemos, mas o repetiremos pacientemente quantas vezes for necessário; imputar-nos algo diferente com relação a isto é fazer “julgamento de intenção”. Mas por que não o defendemos, pergunte-se ainda assim? Se se trata de um movimento ao estilo de La Cité Catholique, evidentemente por já não ter lugar no mundo de hoje; era adequado para o mundo de antes do Concílio Vaticano II. Se porém se trata de qualquer movimento, não defendemos sua criação ou porque simplesmente não temos pendor ou índole para isso, ou sobretudo porque tampouco parece adequado para o mundo de hoje — por razões que já demos ao longo de muitos artigos neste blog e que não cabe repetir aqui. O que, então, fazemos neste blog e em qualquer outro espaço ao defender a verdadeira filosofia tomista, o magistério da Igreja, a Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo? Tudo quanto M. Marcel Lefebvre elogiava em La Cité Catholique — menos o fato de constituir-se como movimento. Mas cabe insistir hoje em dia no tema da Realeza de Cristo? Como se lê no Catecismo da Realeza Social de Jesus Cristo, do Padre A. Philippe, C.SS.R., ainda que tudo no mundo indique a impossibilidade aparente dessa Realeza, devemos defendê-la até a morte – não seja que, de tanto a omitirmos, acabemos nós mesmos por negá-la.
Resposta à terceira. Circunscrevamos a resposta ao magistério de dois Papas, Leão XIII e Pio XII, considerando que ambos pontificaram num mesmo período: o do encurralamento da Igreja e do resto de Cristandade pelas revoluções liberais e comunistas, ou seja, antes do esmagamento desta e da autodestruição daquela resultantes do Concílio Vaticano II; mas também que ambos esses períodos constituem um só do ponto de vista que nos interessa aqui: o da ação dos leigos. Com efeito, DISSE LEÃO XIII em Sapientiae Christianae, II, 8: “A missão de pregar, isto é, de ensinar, compete por direito divino aos doutores, aos quais o Espírito Santo constituiu bispos para apascentar a Igreja de Deus, e principalmente o Romano Pontífice, Vigário de Jesus Cristo, e da moral. No entanto, ninguém pense que é proibida aos particulares [ou leigos] qualquer colaboração neste apostolado, sobretudo aos que Deus concedeu talento e desejo de fazer o bem. Os particulares, quando for o caso, podem facilmente, não arrogar-se o cargo de doutor [da Igreja], mas sim comunicar aos demais o que eles receberam, repetindo, como um eco, a voz dos mestres [ou seja, como já vimos em “Nosso Papel e Divisão de Águas”, repetindo, como repetidores de segundo grau — abaixo dos sacerdotes em geral — o que disse Nosso Senhor Jesus Cristo, o Magistério da Igreja, Santo Tomás de Aquino e os mestres auxiliares deste]”. Por seu lado, ADVERTIU PIO XII em 31 maio de 1954 (na “Alocução aos Cardeais e Bispos para a canonização de Pio X”) contra uma “teologia laica”, ou seja, uma teologia que manifestasse a autonomia de um suposto “poder espiritual” próprio do laicato e independente do poder espiritual eclesiástico: “‘Teólogos laicos’ que se proclamam independentes […], que distinguem seu magistério do magistério público da Igreja e, de certo modo, o opõem a ele […]. Contra isto deve-se sustentar o seguinte: nunca houve, nem há, nem haverá jamais na Igreja um magistério legítimo de leigos que tenha sido subtraído por Deus à autoridade, guiamento e vigilância do magistério sagrado [...]. Isso não significa que a Igreja proíba aos leigos a profissão (como num eco para maior aplicação e difusão) da única e verdadeira doutrina: a do sagrado Magistério. Um comportamento assim, longe de opor ao magistério espiritual eclesiástico um magistério espiritual que, em si, seria laico […], um comportamento assim, ao contrário, é sinal da subordinação que deve existir entre o poder temporal do laicato e o poder espiritual dos clérigos. A Igreja não terá jamais demasiados leigos teologicamente formados para fazer que penetre na substância do temporal o fermento da doutrina elaborada pela hierarquia eclesiástica” (negrito nosso). Pois bem, supondo tudo quanto se disse de doutrinal nessas duas manifestações do magistério anterior ao Concílio Vaticano II; e considerando que então, como dizia ainda Pio XII, “a responsabilidade dos homens católicos parece maior e mais urgente em vista da organização mais avantajada da sociedade e do papel que cada um é chamado a desempenhar dentro dela […]” e que “ao nosso redor, as forças do mal estão poderosamente organizadas, trabalhando sem trégua” (“Mensagem aos homens da Ação Católica Portuguesa”, 10 de dezembro de 1950), razão por que, “por este aspecto, os fiéis, e mais precisamente os leigos, se encontram na linha de frente da vida da Igreja” (“Discurso aos novos cardeais”, 20 fevereiro de 1946; negrito nosso); pergunte-se: suposto, segundo o próprio magistério da Igreja, que não só não é um mal mas é importante os leigos serem repetidores da Sacra Doutrina, pode-se dizer que após o Concílio Vaticano II diminuiu a importância, indicada por Pio XII, desta forma de atuação dos leigos? Por óbvia, nem se necessita enunciar aqui a resposta.
Resta ainda, porém, outra questão: os escritos dos leigos não teriam de ter o nihil obstat e imprimatur da Hierarquia da Igreja? Sem dúvida, seria o correto, e com efeito o tem o mesmo Pour qu’Il regne de Jean Ousset. Mas não apenas os escritos dos leigos; também os de quaisquer clérigos, excetuados, naturalmente, o Papa e os bispos. Ora, é um fato que os autores (leigos e clérigos) modernistas e liberais foram progressivamente, por razões óbvias, esquivando-se de tal submissão. Como hoje em dia, porém, um escrito católico obteria o nihil obstat e imprimatur da Hierarquia da Igreja, se o governo dos Papas conciliares fez cair em desuso sua necessidade? Além do mais, usemos de bom senso: que escrito católico tradicional obteria hoje o nihil obstat e imprimatur de qualquer bispo, ainda que algum se dispusesse a ressuscitar tais permissões episcopais? Pediu-as Gustavo Corção para seu O Século do Nada? Pediu-as o carlista Rafael Gambra para seus numerosos escritos? Pediu-as ou as pede Rubén Calderón Bouchet para suas muitas obras?
Poder-se-ia multiplicar enormemente essa lista. Baste-nos, contudo, reproduzir aqui uma breve mas sugestiva relação de autores leigos da atualidade que publicam escritos ou conferências não só sobre filosofia, mas sobre teologia, sobre liturgia e sobre o próprio magistério da Igreja — sem imprimatur nem nihil obstat. Encontramo-la no site “Stat Veritas” (assim como se poderiam encontrar similares em muitos e muitos outros sites tradicionais): José Miguel Gambra (“En el centenario de la Pascendi de São Pio X”); Antonio Caponnetto (“El historicismo de los modernistas”); Juan Carlos Ossadón Valdés (“Tres puntos sobre la nueva misa”); Julián Gil Sagredo (“El pecado próprio del liberalismo”); etc.
Não pode, todavia, haver erros doutrinais nos escritos dos leigos? Sim, como os pode haver, também, nos escritos dos clérigos. Há como sair do impasse? Sim: que os clérigos tradicionais apontem, eles próprios, PUBLICAMENTE E COM PROPRIEDADE, quaisquer erros que se encontrem em tais escritos. Quanto a nós, caso o façam e assim que o fizerem, retratar-nos-emos publicamente como devido.
* DIZIA SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO, Doutor da Igreja: “Se consigo converter um rei, terei feito mais pela causa de Deus do que se tivesse pregado centenas ou milhares de missões. O que um soberano tocado pela graça de Deus pode fazer, em prol da Igreja e das almas, nunca o farão mil missões” (apud Jean Ousset, Pour qu’Il regne).
Em tempo 1: Esta semana estarei particularmente ocupado, razão por que se adia para a segunda-feira dia 21 a informação dos dados concretos do curso de História da Filosofia via Internet; e para a mesma semana a continuação das séries sobre o sedevacantismo e o corte-e-costura dos liberais.
Em tempo 2: Fecharam-se as três primeiras turmas da primeira parte do “Trivium” (“Para bem escrever na língua portuguesa”): a de Belo Horizonte e duas do Rio. A primeira aula em Belo Horizonte será em 24 de outubro próximo; a da primeira turma do Rio, em 28 de novembro; e a da segunda turma do Rio, em 27 de fevereiro (de 2010, naturalmente). Mas ainda há algumas vagas para a turma de Belo Horizonte e para a segunda do Rio. Qualquer interessado pode, pois, escrever-me (carlosnougue@hotmail.com).
Pois bem, a partir desta importante carta de D. Marcel Lefebvre, podem-se formular as seguintes interrogações, a que tentaremos responder em seguida: 1) Por que Jean Ousset acabou por aderir às teses conciliares?; 2) Está-se defendendo aqui a criação hoje, no Brasil, de um movimento semelhante a La Cité Catholique?; 3) O efetivo apoio de D. Lefebvre a um movimento leigo tem verdadeiro respaldo no magistério da Igreja e pode estender-se, de algum modo, à ação dos leigos nos tempos atuais?
Resposta à primeira. Naturalmente, não é este o espaço para esta discussão. Digam-se apenas duas coisas. Em primeiro lugar, parece-nos, após atenta leitura de Pour qu’Il regne, encontrar um problema nele: certa incapacidade de aceitar que não se refaça a Cristandade, esquecendo-se acaso de que, conquanto Cristo possa de potentia absoluta refazê-la, talvez tal refeitura não esteja nos desígnios de Deus para a história humana (que, como já se disse num artigo deste blog, não pode ordenar-se senão à completação do números dos eleitos). Em segundo lugar: apesar disso (e da adesão de Jean Ousset, mais que às teses conciliares, à “autoridade” do Concílio), “a única obra de política católica totalmente sã que encontramos [desde séculos atrás]”, afirma o Padre Álvaro Calderón, “é Para Que Ele Reine, de Jean Ousset. É verdadeiramente ‘fiel intérprete do pensamento e das mensagens dos Soberanos Pontífices’, como diz dela o Arcebispo de Dacar, Mons. Marcel Lefebvre” (negrito nosso).
Resposta à segunda. Obviamente que não defendemos, neste blog nem em nenhum outro espaço, a criação de movimento algum, seja ao estilo de La Cité Catholique, seja ao estilo de qualquer outro. Não é a primeira vez que o dizemos, mas o repetiremos pacientemente quantas vezes for necessário; imputar-nos algo diferente com relação a isto é fazer “julgamento de intenção”. Mas por que não o defendemos, pergunte-se ainda assim? Se se trata de um movimento ao estilo de La Cité Catholique, evidentemente por já não ter lugar no mundo de hoje; era adequado para o mundo de antes do Concílio Vaticano II. Se porém se trata de qualquer movimento, não defendemos sua criação ou porque simplesmente não temos pendor ou índole para isso, ou sobretudo porque tampouco parece adequado para o mundo de hoje — por razões que já demos ao longo de muitos artigos neste blog e que não cabe repetir aqui. O que, então, fazemos neste blog e em qualquer outro espaço ao defender a verdadeira filosofia tomista, o magistério da Igreja, a Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo? Tudo quanto M. Marcel Lefebvre elogiava em La Cité Catholique — menos o fato de constituir-se como movimento. Mas cabe insistir hoje em dia no tema da Realeza de Cristo? Como se lê no Catecismo da Realeza Social de Jesus Cristo, do Padre A. Philippe, C.SS.R., ainda que tudo no mundo indique a impossibilidade aparente dessa Realeza, devemos defendê-la até a morte – não seja que, de tanto a omitirmos, acabemos nós mesmos por negá-la.
Resposta à terceira. Circunscrevamos a resposta ao magistério de dois Papas, Leão XIII e Pio XII, considerando que ambos pontificaram num mesmo período: o do encurralamento da Igreja e do resto de Cristandade pelas revoluções liberais e comunistas, ou seja, antes do esmagamento desta e da autodestruição daquela resultantes do Concílio Vaticano II; mas também que ambos esses períodos constituem um só do ponto de vista que nos interessa aqui: o da ação dos leigos. Com efeito, DISSE LEÃO XIII em Sapientiae Christianae, II, 8: “A missão de pregar, isto é, de ensinar, compete por direito divino aos doutores, aos quais o Espírito Santo constituiu bispos para apascentar a Igreja de Deus, e principalmente o Romano Pontífice, Vigário de Jesus Cristo, e da moral. No entanto, ninguém pense que é proibida aos particulares [ou leigos] qualquer colaboração neste apostolado, sobretudo aos que Deus concedeu talento e desejo de fazer o bem. Os particulares, quando for o caso, podem facilmente, não arrogar-se o cargo de doutor [da Igreja], mas sim comunicar aos demais o que eles receberam, repetindo, como um eco, a voz dos mestres [ou seja, como já vimos em “Nosso Papel e Divisão de Águas”, repetindo, como repetidores de segundo grau — abaixo dos sacerdotes em geral — o que disse Nosso Senhor Jesus Cristo, o Magistério da Igreja, Santo Tomás de Aquino e os mestres auxiliares deste]”. Por seu lado, ADVERTIU PIO XII em 31 maio de 1954 (na “Alocução aos Cardeais e Bispos para a canonização de Pio X”) contra uma “teologia laica”, ou seja, uma teologia que manifestasse a autonomia de um suposto “poder espiritual” próprio do laicato e independente do poder espiritual eclesiástico: “‘Teólogos laicos’ que se proclamam independentes […], que distinguem seu magistério do magistério público da Igreja e, de certo modo, o opõem a ele […]. Contra isto deve-se sustentar o seguinte: nunca houve, nem há, nem haverá jamais na Igreja um magistério legítimo de leigos que tenha sido subtraído por Deus à autoridade, guiamento e vigilância do magistério sagrado [...]. Isso não significa que a Igreja proíba aos leigos a profissão (como num eco para maior aplicação e difusão) da única e verdadeira doutrina: a do sagrado Magistério. Um comportamento assim, longe de opor ao magistério espiritual eclesiástico um magistério espiritual que, em si, seria laico […], um comportamento assim, ao contrário, é sinal da subordinação que deve existir entre o poder temporal do laicato e o poder espiritual dos clérigos. A Igreja não terá jamais demasiados leigos teologicamente formados para fazer que penetre na substância do temporal o fermento da doutrina elaborada pela hierarquia eclesiástica” (negrito nosso). Pois bem, supondo tudo quanto se disse de doutrinal nessas duas manifestações do magistério anterior ao Concílio Vaticano II; e considerando que então, como dizia ainda Pio XII, “a responsabilidade dos homens católicos parece maior e mais urgente em vista da organização mais avantajada da sociedade e do papel que cada um é chamado a desempenhar dentro dela […]” e que “ao nosso redor, as forças do mal estão poderosamente organizadas, trabalhando sem trégua” (“Mensagem aos homens da Ação Católica Portuguesa”, 10 de dezembro de 1950), razão por que, “por este aspecto, os fiéis, e mais precisamente os leigos, se encontram na linha de frente da vida da Igreja” (“Discurso aos novos cardeais”, 20 fevereiro de 1946; negrito nosso); pergunte-se: suposto, segundo o próprio magistério da Igreja, que não só não é um mal mas é importante os leigos serem repetidores da Sacra Doutrina, pode-se dizer que após o Concílio Vaticano II diminuiu a importância, indicada por Pio XII, desta forma de atuação dos leigos? Por óbvia, nem se necessita enunciar aqui a resposta.
Resta ainda, porém, outra questão: os escritos dos leigos não teriam de ter o nihil obstat e imprimatur da Hierarquia da Igreja? Sem dúvida, seria o correto, e com efeito o tem o mesmo Pour qu’Il regne de Jean Ousset. Mas não apenas os escritos dos leigos; também os de quaisquer clérigos, excetuados, naturalmente, o Papa e os bispos. Ora, é um fato que os autores (leigos e clérigos) modernistas e liberais foram progressivamente, por razões óbvias, esquivando-se de tal submissão. Como hoje em dia, porém, um escrito católico obteria o nihil obstat e imprimatur da Hierarquia da Igreja, se o governo dos Papas conciliares fez cair em desuso sua necessidade? Além do mais, usemos de bom senso: que escrito católico tradicional obteria hoje o nihil obstat e imprimatur de qualquer bispo, ainda que algum se dispusesse a ressuscitar tais permissões episcopais? Pediu-as Gustavo Corção para seu O Século do Nada? Pediu-as o carlista Rafael Gambra para seus numerosos escritos? Pediu-as ou as pede Rubén Calderón Bouchet para suas muitas obras?
Poder-se-ia multiplicar enormemente essa lista. Baste-nos, contudo, reproduzir aqui uma breve mas sugestiva relação de autores leigos da atualidade que publicam escritos ou conferências não só sobre filosofia, mas sobre teologia, sobre liturgia e sobre o próprio magistério da Igreja — sem imprimatur nem nihil obstat. Encontramo-la no site “Stat Veritas” (assim como se poderiam encontrar similares em muitos e muitos outros sites tradicionais): José Miguel Gambra (“En el centenario de la Pascendi de São Pio X”); Antonio Caponnetto (“El historicismo de los modernistas”); Juan Carlos Ossadón Valdés (“Tres puntos sobre la nueva misa”); Julián Gil Sagredo (“El pecado próprio del liberalismo”); etc.
Não pode, todavia, haver erros doutrinais nos escritos dos leigos? Sim, como os pode haver, também, nos escritos dos clérigos. Há como sair do impasse? Sim: que os clérigos tradicionais apontem, eles próprios, PUBLICAMENTE E COM PROPRIEDADE, quaisquer erros que se encontrem em tais escritos. Quanto a nós, caso o façam e assim que o fizerem, retratar-nos-emos publicamente como devido.
* DIZIA SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO, Doutor da Igreja: “Se consigo converter um rei, terei feito mais pela causa de Deus do que se tivesse pregado centenas ou milhares de missões. O que um soberano tocado pela graça de Deus pode fazer, em prol da Igreja e das almas, nunca o farão mil missões” (apud Jean Ousset, Pour qu’Il regne).
Em tempo 1: Esta semana estarei particularmente ocupado, razão por que se adia para a segunda-feira dia 21 a informação dos dados concretos do curso de História da Filosofia via Internet; e para a mesma semana a continuação das séries sobre o sedevacantismo e o corte-e-costura dos liberais.
Em tempo 2: Fecharam-se as três primeiras turmas da primeira parte do “Trivium” (“Para bem escrever na língua portuguesa”): a de Belo Horizonte e duas do Rio. A primeira aula em Belo Horizonte será em 24 de outubro próximo; a da primeira turma do Rio, em 28 de novembro; e a da segunda turma do Rio, em 27 de fevereiro (de 2010, naturalmente). Mas ainda há algumas vagas para a turma de Belo Horizonte e para a segunda do Rio. Qualquer interessado pode, pois, escrever-me (carlosnougue@hotmail.com).