Sidney Silveira
Os hábitos operativos bons a que chamamos virtudes predispõem a natureza humana a alcançar o optimum. Nas palavras de Santo Tomás, são “o complemento das potências”, ou aquilo que as leva a atualizar com perfeição os atos aos quais tendem — daí as virtudes serem chamadas propriamente de força (“unde et vis dicitur"[1]). Neste sentido, a humildade é a força que leva alguém a refrear o apetite da própria excelência, chamado soberba; a temperança é a força que leva alguém a conter os desvios ou tendências más de seu temperamento, e a tal continência se dá o nome de autodomínio. Em todos os casos, alcançar a virtude significa ter desenvolvido as potencialidades em nível de excelência, como se afirmou noutro artigo.
Neste contexto, o homem virtuoso é alguém que logra habitualmente agir bem, mas não de forma súbita, não por alguma espécie de milagre, e sim porque desenvolveu em sua psique as forças necessárias para manter-se equilibrado — tanto quanto possível — diante dos problemas e desafios que a vida lhe impõe. Isto por um esforço continuado que pode levar anos. Em palavras simples: centrando-se, ele mantém a alma sã, o que significa conter os maus impulsos e alimentar os bons.
Ignorar os traços do caráter virtuoso é um dos dramas de várias correntes da psicologia contemponânea que, buscando explicar toda a sorte de patologias humanas, não conseguem curar as enfermidades psíquicas (ou seja: as dores da alma), até porque fundamentalmente não crêem no estado de sanidade. Mas, como ensina o psicólogo tomista Martín Echavarría, o homem virtuoso — tomado como modelo a ser buscado na práxis da psicologia — tem algumas marcantes características:
Ø O centro de sua personalidade está constituído pela luz da razão, que guia o seu caminho com objetividade: é prudente.
Ø Ele não possui impulsos imoderados na afetividade. Pelo contrário: é temperado e humilde.
Ø Não se retrai diante de um bem árduo a conquistar, nem se deixa levar pelo temor ou pela tristeza diante dos perigos. Quer dizer: é forte. E, com essa fortaleza, aspira a coisas grandiosas e se move em direção a elas com segurança e confiança. É magnânimo.
Ø Ele ordena a ação não apenas para o seu próprio bem individual, mas tem em vista o bem comum — de acordo com a lei natural e a lei civil. É equitativo em suas relações com outras pessoas, e portanto é justo. Ora, exatamente por ser justo ele é reverente para com a fonte dos todos os bens (Deus), bem comum de todo o universo: é, pois, religioso[2].
Ø É um sujeito capaz de estabelecer relações interpessoais profundas, amando aos outros verdadeiramente. É, portanto, capaz de amizade[3].
Não nos estendamos nos exemplos, o que seria contraproducente. Fiquemos com o fato de que as virtudes, ao se atualizarem, eliminam os vícios contrários e, assim, vão curando a alma e gerando nela um profundo senso de realidade. Isto leva o homem a ter maior consciência de si e, por conseguinte, das coisas e pessoas que o circundam.
Por esta razão afirma Echavarría que o homem ao qual podemos chamar de normal é prudente, temperado, humilde, forte, confiante, justo, religioso, capaz de estabelecer autênticas amizades e, portanto, amar — experimentar um êxtase a partir da inexpugnável intimidade de sua alma. Faça-se apenas a ressalva de que normal, aqui, não é o resultado de uma análise estatística dos comportamentos humanos em determinado grupo, pois se 99% das pessoas de uma comunidade são taradas e assassinas, isto não quer dizer que sejam “normais”. Normal, na perspectiva de Echavarría, significa o estado saudável da alma — que predispõe à felicidade, embora não se identifique com ela simpliciter [4].
Somente um psicólogo tomista poderia estender com profundidade a práxis da psicologia a algo que está fora e acima da alma, tendo em vista que o bem ao qual está destinado o homem (e portanto a alma, que é seu constitutivo formal próprio) é sobrenatural. Assim, embora as virtudes éticas e dianoéticas possam ser chamadas analogicamente de “saudáveis”, somente a graça pode com propriedade ser considerada saúde da alma. Isto por ser ela o hábito entitativo que dispõe a alma à recepção do bem supra naturam, Deus, fim último de todas as criaturas. Neste sentido, diz Echavarría, são é, exclusivamente, o santo, quer dizer, o que recebeu a sanidade por meio das virtudes teologais infusas.
Em resumo “a saúde anímica em sentido estrito acontece por meio uma vida santa ou que tenda à santidade”, como ensinava o psicólogo católico Rudolf Allers, uma das referências de Echavarría e mestre de Viktor Frankl, mas bastante superior a este, como se torna evidente pelos muitos apontamentos arrolados por Echavarría em seu La Práxis de La Psicología. Seja como for, a infusão das virtudes teologais representa, em termos práticos, a ação terapêutica da graça na alma do homem, e embora o psicólogo católico não tenha potência para subministrar a graça, porque não é sacerdote, pode e deve no entanto trabalhar para predispor a alma à recepção dessa virtude infusa por Deus.
Não nos enganemos: Echavarría não confunde de maneira alguma psicologia com teologia, mas sabe perfeitamente que o juízo último sobre todas as coisas das quais se ocupa a psicologia pertence à teologia[5]. Assim, mesmo ao centrar-se em aspectos naturais atinentes à alma, a psicoterapia não pode lograr sua cura sem o auxílio da graça. Isto porque “sem a graça, não sabemos o que é a normalidade plena”[6].
É para nós uma grande alegria divulgar no Brasil um autor da estatura de Martín Echavarría. Esse genial psicólogo e filósofo católico está construindo com o seu vigoroso trabalho uma obra monumental e única — que certamente ainda dará muitos frutos para o estudo da psicologia nas próximas décadas.
Em breve, divulgaremos a íntegra do vídeo de sua palestra no evento “Santo Tomás, médico da alma”, que tivemos a honra de organizar.
1- Santo Tomás, Quaestiones De Virtutibus in communi, a.1.
2- Não nos custa lembrar que a religião é o primeiro (e principal) ato de justiça do homem para com Deus, segundo o Aquinate.
3- Cfme. Echavarría, Martín. La Práxis da Psicologia y sus Niveles Epistemológicos según Santo Tomás de Aquino, Editorial Ucalp: 2009. p. 332.
4- Em resumo: a felicidade não consiste em ser virtuoso, embora nesta vida a virtude seja um pré-requisito para o estado de felicidade. “A felicidade perfeita só pode estar na visão da essência divina” (Santo Tomás, Suma Teológica, I-II, q. 3, art. 8, resp.).
5- Echavarría, Martín. Op. cit., pg. 700.
6- Echavarría, Martín. Op. cit., pg. 701.