terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Ofuscação (outra pequena estória)

Ofuscação


A Elias Canetti



Uma torrente incoercível de imagens acossa a mente de Plácido, sugerindo-lhe agir de imediato. Em verdade, tudo ali parece contribuir para a sua recente e súbita tomada de decisão: a incongruência deste corredor vazio, a lâmpada defeituosa que acende e apaga em ritmo pusilânime, a porta às escâncaras no final do caminho, a música que atravessa as paredes e lhe agride os ouvidos com uma melodia descompassada, vinda sabe-se lá de onde. De forma aparentemente inexplicável, estes e outros fatores se lhe afiguram como um chamado ao qual ele não pode ser indiferente e perante o qual não deve estagnar, como acontece com as pessoas cuja vontade se tornou enfermiça, tolhedora da ação. A de Plácido, ao contrário, alcança um estonteante ápice e será difícil prever as conseqüências do que nascerá da força desse querer.


O homem caminha esgueirando-se pelos cantos, com as mãos retesadas e a menina dos olhos a se movimentar num frêmito oscilante. É como se por este pequeno orifício de diâmetro regulável, situado belamente entre a córnea e o cristalino, vazasse mais luz do que a retina pode suportar, dado o descomunal esforço de Plácido para aguçar a vista e pôr às claras qualquer coisa suspeita. Seja como for, nada agora parece interpor-se entre ele e o seu objetivo imediato. Nada parece ser capaz de aplacar o medo solene que o arroja a fazer a coisa necessária, de acordo com o seu momentâneo parecer. A esta altura, nem mesmo o esgotamento nervoso que torna os seus músculos pesados e doídos o fará mudar de resolução. Com tal pensamento ele vai ultrapassando as diferentes entradas desse amplo corredor, em busca da porta final.


Talvez por uma espécie de êxito fraudulento da imaginação, Plácido vê projetadas no chão algumas sombras esguias de pessoas que parecem ensaiar movimentos ritmados, e isto o faz diminuir o passo ainda mais. Haveria nele algo da coragem onírica com a qual uma pessoa enfrenta inimigos inexistentes, mas o fato é que a realidade estava à sua frente dando-lhe evidências inequívocas, e isto era suficiente para ele preparar-se com a diligência exigida pela situação. Num esforço para certificar-se da própria sanidade, ele abre e fecha os olhos diversas vezes para ver se essas sombras são reais ou coisa da sua cabeça, mas lhe falta tempo para aderir a conclusões. Por isso continua sem olhar para trás, caminhando com as costas praticamente coladas à parede, como lhe sugere a prudência.


Vozes sussuradas começam a ser ouvidas por Plácido atrás de uma das portas fechadas, pois da que está aberta ao final do corredor a única coisa perceptível são as velas a compartilhar a sua trêmula e escassa luminosidade com a defeituosa, porém potente, lâmpada elétrica que ele divisara ao chegar ali. Não há como discernir o que conversam em segredo essas pessoas, mas o tom geral parece de sarcasmo. Há no lugar um rumor sibilino semelhante a panos que roçam nalguma superfície áspera, mas Plácido em verdade jamais saberá ao certo do que se trata, e vai prosseguindo o seu trajeto sem fazer da incerteza um impedimento. Na vertigem dos pequenos mistérios o homem avança em seus objetivos e temores, com as lacunas sendo preenchidas pela confiança, que são vestígios aos quais se apega a vontade.


Plácido estava na metade do caminho quando a lâmpada problemática apagou-se de vez, deixando o corredor iluminado apenas pela réstia de claridade oriunda da única porta ali aberta. Isto de imediato o fez caminhar com atenção para não tropeçar em algo no ambiente tornado escuro. Os seus passos, antes inaudíveis, passam a emitir um som que o incomoda, e ele então começa a andar na ponta dos pés para não ser flagrado por algum possível espectador. Aquela tênue luz de velas mantém o padrão do seu otimismo, mas ainda não é hora de dar por certa a vitória porque, em suas conjecturas, há obstáculos a superar, como dá mostras o elevador que passa novamente pelo andar trazendo a possibilidade de alguém surgir repentinamente, o que poria tudo a perder.


Não havia testemunhas ao engendrar-se o plano, mas neste momento até os objetos inanimados parecem invadir a consciência de Plácido, o que lhe traz certa angústia. Isto no entanto perde a importância quando ele se aproxima da derradeira porta, por cuja abertura vê a biblioteca. Ainda a certa distância, sua impressão é de simetria, ordem, harmonia, apesar da pouca luz ambiente que incide sobre as grossas prateleiras de jatobá, acima das quais repousam livros de lombadas gastas. Essas imagens subitamente desaparecem quando Plácido dá os seus últimos passos por aquele corredor, e não erraria quem o tomasse por sonâmbulo no momento em que chega à porta e recebe um livro das mãos do homem de longas barbas e hábito branco e preto, que estava à entrada sorrindo com enigmática expressão.


Ao abrir com avidez o antigo volume, Plácido é acometido de um formigamento que ameaça paralisar as suas mãos, obrigando-o a fazer força para folhear as primeiras páginas. Neste momento um espasmo facial lhe contrai o rosto e dificulta a leitura, mas não importa, ele porá fim à sua busca custe o que custar, livrando-se da desconfiança com a qual desde sempre se escondera de si mesmo.


Quando Plácido intui a força do verbo que dera vida àquele livro, a sua vista é tomada por cegante claridade, e ele só consegue captar o sentido das coisas presentes, passadas e futuras no instante em que o seu corpo tomba, chocando-se inanimado contra o chão empoeirado.


(Sidney Silveira)