Sidney Silveira
A santa ranzinzice dos bons gramáticos serve aos usuários de qualquer idioma como balizadora do que se convencionou chamar de “norma culta”. E muito mais que isso: sem a gramática, como diz o prof. Carlos Nougué — que está finalizando o primeiro volume de suas Lições de Português, a ser apresentado no próximo ano —, a língua tende à entropia, à dissolução, à impermanência. Em certo sentido, a gramática é a pedra angular da cultura de uma nação, na medida em que uniformiza os conceitos mentais implicados no uso virtuoso do idioma, sem o qual não há filosofia, nem direito, nem literatura. Até ao jornalismo, hoje tão facilmente adaptável a novidades, tão fomentador de impropriedades e barbarismos, tão useiro em difundir o mau uso do idioma, faz falta o norte gramatical.
Em poucas palavras, sem o vernáculo, que a gramática busca preservar, não há idioma comum. Lembremos que vernaculum, como ensinava Napoleão Mendes de Almeida, provém de verna, vocábulo latino que aludia ao escravo nascido na casa do senhor — e de “nascido na casa do senhor” passou a palavra a significar “nascido no país” ou “próprio do país”. Defender o vernáculo é, pois, defender a permanância da cultura de um país, a sua propriedade fundamental, a tradição sem a qual um povo perde o seu caráter, perde as marcas que o distinguem no tecido da história.
Se hoje os nossos jovens não conseguem ler sequer uma página de Machado de Assis ou do Padre Antônio Vieira sem quase ter uma concussão cerebral, é porque os gramáticos de alguma maneira naufragaram em sua tarefa. Um exemplo disto nós o podemos dar na recente e, ao nosso ver, absurda reforma ortográfica da língua portuguesa, que teve num gramático — Evanildo Bechara — um de seus defensores e fomentadores, estudioso da língua omisso com relação a mudanças tolas e injustificáveis que recusamos aceitar neste modesto espaço na internet, embora no cotidiano de nosso trabalho sejamos obrigados a adotar a intervenção imposta pelo Estado luliano (logo quem, Pedro Bó!) nos usos da língua pátria.
Se por trás das políticas de destruição do idioma, no Brasil e noutros países, está o objetivo de debilitar as identidades nacionais com o intuito de preparar o governo global — cujos tentáculos começam a nos alcançar —, não sabemos. Mas sabemos que, neste momento dramático da história humana, é preciso criar em cada país ilhas civilizatórias para preservar o que for possível, e isto passa necessariamente pelo DNA da língua, que é a gramática. Trabalho análogo ao que os monges irlandeses fizeram entre os anos 500 e 800, entesourando a tradição literária e cultural cristã em meio à barbárie crescente.
Sem a gramática, a língua seria um perpétuo e caótico devir, ao modo heraclíteo, seria impermanência pura, como diz o citado Prof. Nougué. A gramática — e não a lingüística — lhe garante a permanência na mudança sem a qual, como dissemos, nenhuma nação possui identidade própria.
Encerramos este breve texto destacando que tudo o que é usado por muitos, ao longo do tempo e em diferentes lugares tende naturalmente à entropia, se não existe um elemento normatizador — definidor de padrões comuns que, embora aceitem mudanças adventícias e acidentais, preservam o essencial, o quid est.
E este é o papel da gramática como preservadora da civilização. É seu papel de contenção, de dique à barbárie.