Depois que Max Weber expôs, em 1904, a tese de que o êxito do capitalismo se deveu às atitudes religiosas propiciadas pelos reformadores do século XVI, concretamente os da linha calvinista, muita água passou debaixo da ponte. O fato é que a sua famosa tese levou incontáveis teóricos a dar por líquida e certa a idéia de que o protestantismo favorece a instauração de sistemas econômicos baseados na “liberdade”, ao passo que o Catolicismo favoreceria os sistemas “autoritários”, fechados, “estatais”. Como não poderia deixar de ser, a tese de Weber teve especial acolhida no mundo anglo-saxão, embora hoje sejam facilmente encontráveis — mesmo nos países de fala inglesa — estudos que criticam os seus pressupostos.
A primeira conseqüência da grande disseminação do livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de Weber foi o quase total esquecimento da produção da Escola de Salamanca no século XVI — ou seja: a dos tomistas espanhóis da chamada “Segunda Escolástica”, contemporânea do Concílio de Trento. Um dos primeiros a chamar a atenção para isto foi o insuspeito economista Joseph A. Schumpeter, que em sua História da Análise Econômica dedica um capítulo aos doutores domincanos desse período, embora de forma bastante superficial. É contudo digna de nota a conclusão de Schumpeter a certa altura do livro: com esses estudiosos católicos do século XVI a economia conquistou existência autônoma. E mais: são eles os fundadores da economia científica!
Um desses tomistas é Pedro Fernández, teólogo tridentino, membro — juntamente com o genial Domingo Bañez — da Escola de Salamanca em seu momento de maior pujança intelectual: daquela época, além de Bañez, citem-se Melchor Cano, Pedro de Sotomayor, Bartolomé de Medina e Domingo de Gusmán como estudiosos da obra de Santo Tomás que se transformaram em catedráticos em Salamanca e deixaram vários escritos importantes sobre temas diversos. Além, é claro, de Francisco de Vitoria, falecido quando esses teólogos estavam começando a sua trajetória.
Não é o caso de se fazer neste texto uma valoração sobre cada um desses escolásticos da época tridentina — alguns dos quais se afastaram do espírito e da letra da síntese magistral do Aquinate em pontos capitais. Importa-nos chamar atenção para o fato de que se trata de filósofos e teólogos cuja obra em temas que hoje chamaríamos de “econômicos” tem extraordinário alcance. É este justamente o caso de Pedro Fernández, que ocupou vários cargos magisteriais a pedido pessoal do Papa Pio V e foi conselheiro de Santa Teresa de Ávila em assuntos referentes à reforma do Carmelo, além de reitor da Universidade de Salamanca.
Um dos seus escritos é o Comentário à Suma Teológica (II-II, questões 77 e 78), publicado recentemente em edição bilíngüe pela EUMSA, com excelente apresentação de Teodoro López e Idoya Zarroza Huarte. Faz ali Pedro Fernández uma profunda análise sobre um dos tópicos mais discutidos na obra do Doutor Comum: a licitude ou ilicitude dos contratos de usura, significando este termo a cobrança de valores monetários pelo uso do dinheiro emprestado. É mais ou menos o que hoje entendemos por contrato de mútuo, em que credor e devedor acordam o pagamento de juros sobre um empréstimo x de dinheiro. Aqui, trata-se daquilo que esses escolásticos chamavam de bens fungíveis, ou seja, que se consomem no primeiro uso pelo intercâmbio com outras coisas, ou com dinheiro mesmo. Em poucas palavras, fundamentalmente o dinheiro seria um tipo de bem que não produz outra utilidade além do seu próprio uso, daí a sua “fungibilidade”.
No parecer do Aquinate, a bem da justiça, nos contratos de mútuo que regulam os empréstimos de bens fungíveis não se deve cobrar valor algum pelo uso da coisa emprestada, pois isto configuraria claramente pecado de usura. Não quer isto dizer que não reconheça o Santo Doutor outra finalidade possível para o dinheiro, como a das transações comerciais em que ele tem uma utilidade tal que é possível lhe estimar um preço. A aceitação do comércio como atividade lícita e socialmente benéfica, a propósito, fez o Angélico afastar-se de Aristóteles neste ponto, aceitando a usura (nos termos acima definidos) em alguns casos pontualíssimos. Ocorre o seguinte: como para o Aquinate seria uma verdadeira aberração separar as questões econômicas do horizonte moral em que se dão os atos propriamente humanos, importava-lhe antes de tudo indagar sobre os princípios morais implicados nesse tipo de transação econômica.
Para justificar a licitude da usura em alguns casos — sempre tendo no horizonte a tese do mestre medieval —, alguns dominicanos da Segunda Escolástica recorrem a cinco pressupostos:
> O dannum emergens: a compensação do dano monetrário que o credor sofre em virtude do empréstimo que fez;
> O lucrum cessans: o ganho que o credor teria, se não tivesse emprestado o dinheiro;
> O periculum sortis: o risco de não recuperar o dinheiro emprestado;
> A poena conventionalis: o estabelecimento de uma cláusula que permita ao credor exigir uma quantidade de dinheiro, a título de mora, se o empréstimo não é pago no tempo acordado entre as partes;
> O titulus legis civilis, que se refere à legitimidade de um interesse razoável fixado na lei civil.
Santo Tomás não chega a tal casuística. E, no tocante especificamente ao lucrum cessans, argumenta o Aquinate que ele é por si ilícito porque “uma compensação por dano baseada no que já não se lucrará com o dinheiro emprestado não pode ser estipulada em contrato, dado que não se pode vender o que ainda não se possui e cuja aquisição poderia ser impedida por uma multidão de outros motivos”. Isto significa simplesmente o seguinte: o pagamento de compensações monetárias a título de lucro cessante se baseia, entre outras coisas, na mera pressuposição de ganhos certíssimos no caso de o empréstimo não ser feito. Isto para Santo Tomás seria uma caução indevida, entre outras coisas por ser uma cobrança atual baseada em algo que está apenas em potência.
A propósito da usura em linhas gerais, vejamos a famosa passagem da Suma na qual o Aquinate diz o que transcrevemos abaixo, após recorrer ao livro do Êxodo — segundo o qual “se emprestares a alguém do meu povo, a um pobre que vive ao teu lado, não o fustigarás como um cobrador, nem o oprimirás com juros” (Ex. XXII, 25):
“Receber juros por um dinheiro emprestado é por si injusto, pois [neste caso] se vende o que não existe, e isto constitui uma desigualdade manifestamente contrária à justiça. Para evidenciá-lo, devemos considerar que o uso de certos objetos se confunde com o seu consumo. Consumimos vinho utilizando-o como bebida, e o trigo, como comida. O uso de tais coisas não se deve separar de sua própria realidade, pois a quem se concede o uso se concede o próprio objeto. Por isso, o empréstimo dessas coisas transfere o domínio sobre elas. Quem pretendesse vender o vinho separadamente do uso dele venderia a mesma coisa duas vezes, ou venderia o que não existe. Portanto, pecaria manifestamente por injustiça. Pela mesma razão, comete injustiça quem empresta vinho ou trigo exigindo [duas] compensações: uma, a restituição da própria coisa; outra, o preço do seu uso, chamado usura (aliam vero pretium usus, quod usura dicitur). Por outro lado, há coisas cujo uso não se confunde com o seu consumo. Assim, o uso de uma casa consiste em habitá-la, não em destruí-la. [Aqui] Pode-se fazer uma cessão distinta do uso e da propriedade. (...). Mas o dinheiro foi principalmente inventado, segundo o Filósofo, para facilitar as comutações, e assim o uso próprio e principal do dinheiro é ser consumido ou dispendido, pois se gasta nas transações. Por isso, é ilícito receber um preço pelo uso do dinheiro emprestado, que se chama usura. E como se está obrigado a restituir o que é injustamente adquirido, está-se obrigado a restituir o que foi recebido como usura”. (Suma, II-II, q. 78, resp.)
Como se trata de “matéria opinável” do ponto de vista do Magistério da Igreja, não é nenhum pecado capital para um católico divergir do Doutor Comum neste tópico, e é o que faz Pedro Fernández corajosamente, pois esta não era uma posição majoritária no seu tempo. Argumenta o teólogo salmantino que o dinheiro investido em um negócio, por exemplo, tem maior valor que o dinheiro não investido, razão pela qual quando um comerciante empresta a alguém um dinheiro que retirou do seu negócio, deixando com isto de obter os lucros inerentes ao negócio, é lícito que cobre por lucros cessantes, o que não configuraria usura. E aponta outros casos em que a cobrança de juros seria lícita.
Seja como for, todos esses grandes teólogos tinham em vista algo que passa totalmente ao largo do tecnicismo econométrico hoje encontrável em teses de economistas das mais diferentes linhas: a ganância humana. Ganância, a propósito, oriunda do pecado original. Ciente disto, mesmo nos casos em que há justificativas para o contrato de usura, Pedro Fernández salienta que ele é perigosíssimo e pode viciar-se por vários motivos, e em várias circunstâncias.
Eis algumas delas:
> Por parte da coisa, quando se vende uma coisa de per si não vendável (caso dos bens espirituais);
> Por parte do vendedor, nos casos em que estes estejam proibidos devido à sua condição (por ex.: religiosos de ordens mendicantes);
> Por parte do comprador, quando este compra algo que não pode adquirir (por ex.: um menor que compre cachaça), ou, se adquire, é para usos ilícitos ou contra o próximo;
> Por parte do lugar, se se vende algo dentro de uma igreja (si fiat in ecclesia);
> Devido ao tempo, se a venda tem lugar em dias santos;
> Devido ao modo, quando não é ordenado pela reta razão, caso dos contratos cujos termos extrapolam os limites da justiça;
> Devido ao fim, se se vende a coisa com um fim intrinsecamente mau (por ex.: material de curetagem para a prática de aborto).
Todas essas considerações parecerão extemporâneas ou anacrônicas para qualquer economista do nosso tempo que não tenha boa formação católica. Seja como for, vale registrar o seguinte: para Santo Tomás, acima de quaisquer casuísticas estão dois fatores preponderantes: a usura é um ato contrário à caridade e implica uma desconfiança na Providência Divina.
Foi isto o que, há uns cinco anos, tentei explicar a um amigo abastado que me emprestou uma quantia razoável cobrando-me juros mais que razoáveis — o que aceitei devido à minha penúria proverbial e à necessidade circunstancial de pôr as mãos naquele dinheiro. Na ocasião, eu me questionei se não seria pecado aceitar o dinheiro naquelas condições, e agora confesso sentir certo alívio ao reler na Suma que receber empréstimo em condições usurárias é lícito quando se trata de socorrer as necessidades próprias e alheias, mesmo sendo pecado para quem empresta. E a minha urgência era, então, urgentíssima.
Em matérias tão suscetíveis a gerar polêmicas, como esta, as circunstâncias históricas devem ser consideradas e postas à luz dos princípios que regem os atos propriamente humanos, ou seja, os que nos distinguem de todos os outros animais na escala zoológica. No caso de que se trata, se pensarmos que hoje toda a economia mundial é, no sentido escolástico, usurária, mesmo que não cheguemos a uma resposta definitiva ao problema devido à dificuldade de materialmente ter acesso a todos os dados, vale recorrer à imagem de que o usurário é muito, muito parecido com o personagem do Evangelho a quem o patrão perdoou uma grande dívida, mas que depois foi cobrar do seu colega uma dívida irrisória...
Noutra oportunidade, voltaremos ao tema.