Sidney Silveira
A genuína vida intelectual é uma luta constante pela verdade. E não poderia ser diferente, porque a verdade precisa ser conquistada pela inteligência humana, que ao contrário da angélica não possui a clara visão da essência dos entes num só ato. Explico-me: em cada ordem de conhecimentos, é evidente que precisamos compor e dividir raciocínios, analisar e sintetizar, até chegar ao conceito, ao verbo mental que em nossa inteligência se identifica com a essência da coisa conhecida. Os anjos, por sua vez, num só ato da inteligência esgotam totalmente a essência da coisa conhecida, e isto sem raciocinar, sem fazer silogismos, sem aventar premissas ou elaborar proposições, pois se trata de uma inteligência absolutamente intuitiva. Em suma, a verdade lhes é mostrada intuitivamente num só ato da inteligência, e não demonstrada racionalmente em atos distintos, como ocorre conosco.
De acordo com o Doutor Angélico, ao contemplar qualquer ente composto de matéria e forma, um anjo conhece-o em sua completude, ou seja, conhece tanto a essência da coisa como todos os seus acidentes individuantes. No anjo, viver é entender, pois as species intelligibilis já estão todas impressas em sua inteligência, e ele apenas as atualiza ao contemplar as coisas.* Este é, a propósito, um sinal distintivo da excelência de sua natureza.
Ora, justamente porque a verdade precisa ser conquistada por nós, e com grande dificuldade (pois a nossa inteligência é passível de erro), todo homem que a ama acaba vendo-se, mais cedo ou mais tarde, na contingência de defendê-la, e, nesta defesa, há de fazer inimigos. Querem, pois, saber se alguém é um intelectual de araque ou não? Procurem ver se tem adversários e, tendo-os, qual a sua real estatura. Divisar isto é difícil, pois muitas vezes o verdadeiro homem de idéias se confunde com o embusteiro polemista: este último é um ardiloso vencedor de pequenas disputas lógicas, e busca o combate de forma patológica, doentia, pois quer sair-se vencendor aos olhos do mundo; o outro só busca o confronto quando evitá-lo seria dar margem a erros funestos, dado que quer sinceramente ver a verdade triunfar, pois sabe, com Santo Agostinho, que “a verdade não é minha nem tua, para que seja nossa”. Ele sabe também que nenhuma civilização pode construir-se à margem da verdade, daí que defendê-la seja um ofício nobilísissimo, embora para exercê-lo seja preciso estar imbuído de um real espírito de sacrifício e abnegação.
Ora, se essa luta é importantíssima no plano natural, o será ainda mais se se tratar das verdades da fé, pois estas provêm de fonte sobrenatural: Deus mesmo. Pois bem, se de fato não há propriamente civilização onde não existem homens reunidos em torno da verdade, muito menos a haverá se por desventura a Verdade que é a fonte de todas as verdades estiver ausente da Pólis. Daí que a teoria dos dois gládios, ensinada magisterialmente por Bonifácio VIII, seja tão importante, na medida em que propõe o seguinte: o combate deve dar-se nos planos material e espiritual. No material, com a luta pelo estabelecimento de um Estado que esteja sob a sombra benemerente das verdades e da lei do Evangelho; no plano espiritual, combatendo seitas e falsas religiões que não apenas afastam o homem de Deus, mas principalmente põem-no sob o risco de perder a sua alma e de construir temporalmente uma Pólis satânica, a Cidade do Pecado, onde as almas são carniça do demônio, a corrupção é a norma e a virtude só pode ser exercida pelos Santos e mártires.
A propósito, foi com o sangue e a virtude heróica dos mártires que o Cristianismo logrou, providencialmente, a propagação do Evanvelho a todas as gentes. Hoje esse sangue santamente vertido é jogado no esgoto pelos ecumenistas da Igreja mainstream, que estão sempre a tentar acordos cada vez mais escandalosos entre Cristo e Belial. A situação atual me faz lembrar do famoso livro de Marcel de Corte chamado A Inteligência em Perigo de Morte, escrito há algumas décadas, pois hoje tal título parece já bastante desatualizado: a inteligência humana jaz na vala comum do mundo liberal-maçônico, anticatólico, que dá à Serpente a mais ilimitada liberdade de ação e de expressão...
* Esta é a razão por que os anjos não altercam entre si a respeito da verdade dos entes, pois todos conhecem as coisas naturais perfeitamente. É claro que tal conhecimento não é instantâneo, como o de Deus, mas sucessivo (tem um antes e um depois), e, além disso, há conteúdos inteligíveis sobrenaturais revelados por Deus que uns anjos possuem e outros não, de acordo com o Aquinate. Ademais, tanto mais perfeita será uma inteligência angélica quanto mais a sua forma estiver próxima de Deus, pois neste caso conhecerá qualitativamente melhor as coisas (que são efeitos da causa primeira), por conhecerem mais aspectos da Causa causarum.