quarta-feira, 27 de maio de 2015

Língua, história, povo


Aos amigos Rodrigo Gurgel, Sergio Pachá e Carlos Nougué

Sidney Silveira 

Quando certas palavras ou expressões caem em completo desuso, é sinal de que algo da história de um povo morreu, pelo menos até este ou aquele escritor de gênio retirá-las do "estado de dicionário", metáfora usada pelo poeta Carlos Drummond de Andrade para designar o crepúsculo circunstancial, o estertor provisório de parte do universo semântico do idioma — que passa a existir virtualmente como possibilidade expressiva, em silêncio pulsante. A propósito, a tradição oral e literária de qualquer nação é feita de pontuais ressurreições lingüísticas, de movimentos pendulares no âmbito de certo modo de ser e de estar no mundo.

O verdadeiro escritor é elo entre gerações, instrumento da posteridade de um país, seja ele poeta, romancista, historiador ou filósofo. Sem a palavra densa, artesanal, polissêmica do escritor, o padrão da cultura vai decaindo, e isto acaba por contaminar os costumes e as instituições. Neste ponto lembremos o seguinte: mesmo entre os povos de línguas ágrafas, ou seja, as que não tiveram a fortuna de conhecer a escrita, houve homens destacados no manejo das idéias, e portanto do idioma no qual veiculavam conceitos. Quem tiver dúvidas neste quesito, leia o clássico “Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil”, do calvinista Jean de Léry, documento importantíssimo para entendermos como as tribos indígenas de diferentes etnias viviam e pensavam no Brasil quinhentista.

A linguagem do escritor genuíno, mesmo quando vulgar, se eleva muito acima do palavreado do vulgo. Quem já leu as poesias fesceninas de Bocage, por exemplo, entende o que aqui se diz: trata-se, invariavelmente, de artesanato dotado do condão de transcender o tempo presente, elevá-lo, sublimá-lo, colocá-lo — aqui e agora — perante o passado e o futuro. Neste sentido, não há nação que não seja devedora de quem, no passado, usou belamente da sua língua comum, razão pela qual o Brasil deve muito mais a Machado de Assis, a Lima Barreto, a Manuel Bandeira, aos Árcades, a Olavo Bilac, a Cecília Meireles, a Leonel Franca, a Otto Maria Carpeaux, a Capistrano de Abreu e a outros, do que poderia dever ao hipotético governante cuja varinha de condão resolvesse todos os problemas econômicos contemporâneos: este nos traria a solução para demandas presentes imediatas; aqueles nos possibilitam um futuro de longo prazo.

Em suma, se alguma dívida histórica realmente existe, é para com os grandes do passado. Somente a partir deles os homens do presente podem erigir uma obra civilizacional em qualquer área do conhecimento, cientes de que, havendo descontinuidades cíclicas, muitas vezes incontornáveis, dadas as vicissitudes do devir histórico, não pode haver rupturas, quebras de identidade acentuadas. Estas costumam ser irreversíveis, como a história é pródiga em nos mostrar, e, para tristeza nossa, o Brasil está no limiar duma fratura dessas que põem em risco o próprio sentido de unidade da nação, a qual se esfacela a olhos vistos, com divergências crescentes entre “tribos” criadas por engenheiros sociais e açuladas por legisladores criminosos. São grupos adestrados para agir como cães pavlovianos, condicionados a ladrar quando às suas débeis consciências são apresentadas algumas palavras mágicas. Nem Huxley nem Orwell viveram para ver, nestas terras, o ponto a que poderia chegar o futuro negro por eles prognosticado para o Ocidente.

A crise brasileira contemporânea é espiritual, intelectual, moral, política e estética — em ordem de importância decrescente. Em todos estes casos, o empobrecimento da linguagem se faz notar de maneira incontestável, acompanhado da degradação dos costumes, da incivilidade aguda, da perda da capacidade de percepção dos matizes sem os quais toda comunidade humana está fadada a autodestruir-se (talvez chegue o dia em que desejar “bom dia” a alguém seja respondido com tiros de bazuca). Frise-se que, no tocante à linguagem, não nos referimos a depauperamento gramatical, pois o conhecimento da gramática, em todos os seus variados âmbitos, é para estudiosos do idioma, mas à perda do senso comum da língua entre nós, coisa que em Portugal não acontece: mesmo entre pessoas iletradas de aldeias multisseculares onde não vive quase ninguém, fala-se um português escorreito, inteligível, rico.

Devido à macabra abrangência dos nossos problemas, resolver tudo duma só vez é materialmente impossível; mas, se é preciso começar o Brasil de novo, não há promessa de futuro que não passe pela reassimilação da herança do nosso passado. Neste exato ponto, não cabe tergiversações: o Brasil nasceu como Portugal na América — católico, evangelizador, desbravador. A pluralidade de culturas autóctones aqui existentes deu lugar a uma civilização cristã, com uma língua comum e forte sentido de unidade, neste último caso muito distinta da esfacelada América espanhola.

Revisitemos, pois, os nossos clássicos, antes que o país inteiro passe a viver tristemente no “estado de dicionário” poetado por Drummond. 

Antes que caia no limbo da completa ininteligibilidade, geradora da barbárie.