segunda-feira, 18 de maio de 2015

Uga-muga no reino do zap-zap

Sidney Silveira
Expressar os próprios estados de espírito com clareza e objetividade, descrever a realidade exterior de maneira compreensível, manifestar as emoções com critérios que não as embaralhem, explicar os fatos sem prolixidade, falar ou escrever não dando margem a mal-entendidos. Todas essas coisas são mais relevantes do que possa imaginar o vulgo, pois a linguagem verbal humana não é utensílio para uso adventício, episódico, fortuito: ela é o ponto de inflexão a partir do qual temos acesso ao universo das formas inteligíveis — portadoras de ricos matizes semânticos, susceptíveis de gradações sutis, indicadoras de aspectos do ser inalienáveis e insubstituíveis, representativas de horizontes simbólicos capazes de levar uma pessoa a sublimes estados contemplativos.

Diante do Teorema de Fermat ou do de Pitágoras, perante uma página de Vieira ou qualquer polifonia de Tomás de Victoria, o gato mia, o cão ladra e o homem... extasia-se ao perceber a harmonia entre as formas inteligíveis! Ou melhor: ele é capaz de extasiar-se, ou seja, sair de si com a inteligência embevecida e a vontade pletórica de amor, mas isto se por desventura não tiver sofrido graves fraturas estéticas ou gnosiológicas. Neste ponto, diga-se que tais fraturas passam, necessariamente, pelo depauperamento da linguagem verbal, cujas palavras são signo das afecções da alma em contato com o mundo, como ensinara o velho Aristóteles numa imortal lição. 

O verbum mentis, ou conceito (conceptum), é o instrumento por meio do qual se descortina o ser para nós, pobres criaturas humanas. Ele é anterior à palavra manifestada — que indica, pela voz ou pela escrita, algo existente com anterioridade na mente. Noutras palavras: a linguagem, que se aproxima do ser de maneira assintótica, nunca o abarcando por completo, ou pode ser precisa a ponto de servir ao conhecimento cada vez mais aprofundado das coisas, ou pode ser confusa e impedir que uma pessoa se relacione consigo mesma e com as demais com o mínimo de proficiência. Para os indivíduos naufragados neste último caso, a tendência funesta é de que as palavras sejam sopro inútil, falatório empobrecido. Em suma, flatus vocis, vagidos tênues saídos de almas opacas.

Entre jovens brasileiros contemporâneos, é crescente a dificuldade de comunicar — oralmente ou por escrito — o que quer que seja. A linguagem escrita desce ao nível onomatopaico quando não precisa. São “kkkkk”, “hehehehe”, “hahahaha” e outras maneiras infantis de expressar algo análogo ao contentamento, que, utilizadas por pessoas de certa idade, chegam a soar ridículas. Com a linguagem falada não é diferente: são simplesmente lançados às urtigas verbos, preposições, advérbios, conjunções, pronomes, apostos explicativos, concordâncias nominais e outros fatos relativos à índole da língua portuguesa, como se esta não tivesse história. Advirta-se, neste contexto, o seguinte: não se trata de jogar palavras ao léu, usar mal da língua, não ter conteúdo. Trata-se da imanência dolorosa de gente amputada do veículo básico de comunicação, a língua mesma, substituída por sestros de todos os tipos. 

A continuarmos neste compasso, adotaremos a mímica como idioma nacional. Com um detalhe: não se tratará duma linguagem de sinais análoga à dos surdos-mudos, a qual busca apreender a realidade de alguma maneira, mas de gestos animalescos trocados entre pessoas exiladas do reino da beleza e, por conseguinte, da civilização. 

Perto destas criaturas inermes, os índios canibais que devoraram o bispo Sardinha eram gênios de compreensão, tanto que foram cristianizados pelos jesuítas e aprenderam que comer gente não é bom, pois atenta contra a lei natural.

Se os nossos jovens hoje se matam uns aos outros — as estatísticas são verdadeiramente assombrosas —, tenhamos a certeza de que isto não é por acaso.