Sidney Silveira
Graças ao bom Deus, as pessoas não têm o hábito de ficar em posição de cócoras no meio da rua e evacuar à vista de todos, com ledo gesto enquanto se aliviam das fecais premências. Certo pudor natural é a barreira psíquica que as induz a resguardar a própria intimidade física e a salubridade das narinas alheias. Coisa parecida acontece com sujidades muitíssimo mais difíceis de limpar, como as do espírito: não se vê todo dia o vigarista se gabar em público das fraudes que pratica, nem o empregado desonesto roubar o patrão sem a menor cerimônia, na frente dos seus colegas. Em resumo, toda abjeção se camufla de alguma maneira, mas até entre indivíduos que ostentam a amoralidade com altivez há camuflagens quase imperceptíveis.
É comum a recorrência a subterfúgios por meio dos quais a torpeza humana se apresenta sob o disfarce de algum aspecto positivo. De modo geral, os ardis aos quais os homens apelam para escamotear ações infames variam numa escala que vai da quase inconsciência da maldade ao maquiavelismo da pior cepa. Noutras palavras, o caminho da fraqueza à malícia passa por gradações de ignorância que podem atenuar a culpa ou torná-la quase imperdoável. Seja como for, “natura non facit saltus”: não se vai da boa-fé à malícia de repente, mas por meio dum processo pelo qual a desordem das paixões vai gradativamente reduzindo a ignorância quanto ao malefício de determinados atos, tornando-os, pois, cada vez mais conscientes e imputáveis na perspectiva moral.
Em suma, ninguém dorme Sócrates e acorda Lula.
O ódio é dessas paixões que se tem por hábito esconder, não raro por meio de um sofisticado sistema de autojustificativas, as quais, na prática, implicam o mais tenebroso artifício por cujo intermédio um homem engana-se a si mesmo. Nestes casos, cedo ou tarde o sujeito acaba por cair numa espiral de cansativas explicações sobre o seu proceder, e chega a pintar o ódio que o move em cores heróicas, justas, sublimes, mas a máscara não passa despercebida do olhar das pessoas com o mínimo de sagacidade espiritual. Para estas, um trejeito pode ser revelador; uma palavra dita em dado contexto, capaz de pôr a nu as trevas da alma do próximo.
A propósito, a jactância é uma das camuflagens do ódio. Como filha do amor exagerado da própria excelência — a que o cristianismo chamou "soberba" —, quando encarna em alguém ela se faz acompanhar invariavelmente do hábito de desmerecer as pessoas, sempre alegando razões nobilitantes. Na melhor das hipóteses, trata-se de perfeccionismo psicótico projetado, cuspido sobre a reputação dos outros, capaz de denegrir méritos reais por causa de miudezas. Chegado a este estado mental, o jactancioso se sente pessoalmente preterido em favor de quem não merece ser louvado, de acordo com o seu patológico parecer. Quem age assim não percebe que "é fraqueza entre ovelhas ser leão", como escrevera Camões num famoso verso. É gente demasiado confiante nos talentos que possui ou pensa possuir; gente susceptível, invejosa. Neste ponto, convém salientar o seguinte: a inveja é a predisposição psíquica ao ódio.
Nada mais triste do que detectar a vanglória num jovem. Isto porque, se não for aplicado o corretivo sanatório até certa idade, o vício fica tão entranhado na psique que se transforma em mal moral incurável, ou curável apenas por milagre. A criatura começa livremente apaixonada por algo abstrato — o conhecimento, por exemplo — e acaba escravizada na concreta paixão por si mesma. O seu ímpeto de saber tudo, chamado por Santo Tomás de Aquino de “curiositas”, encobre o pânico voraz de não ser reconhecida como pessoa notável em alguma coisa. Encobre o medo de ser percebida como alguém não sapiente. São João da Cruz diria que o indivíduo nesta situação lastimável precisaria com urgência passar pelas “noches oscuras” por meio das quais a vontade vai, aos poucos, educando-se, limpando-se.
Isso a que chamamos “pavor de não saber” não brota por partenogênese: ele é uma das subespécies da vanglória. Portanto, ao observarmos alguém reiteradamente se pavonear dos seus méritos em detrimento do próximo (o qual pode ser uma pessoa em particular, uma coletividade específica ou mesmo um país inteiro), tenhamos a certeza de que se trata de criatura acometida da pungente doença do espírito chamada jactância, que Santo Tomás demonstrou ser oposta à virtude da veracidade.[1] O jactancioso juvenil, que vive numa espécie de pavor onírico, é aspirante à loucura na meia-idade; uma loucura permeada de ódio. A velhice, quando chega a um sujeito nestas condições, é puro rancor.
Mas não desesperemos! Como acontece com todas as doenças morais codificadas por grandes filósofos de diferentes épocas, para esta também existe cura, a qual passa pela regra universalíssima que nos foi dada pela Escritura Sagrada: “Qui se exaltat, humiliabitur”.[2] A sabedoria popular traduziu esta verdade bíblica, proferida por Cristo em pessoa, numa fórmula interessante: “Elogio em boca própria é vitupério”.
Deus nos livre disso.
1- Suma Teológica IIª-IIº, q. 112.
2- Lc. XIV, 11.