Sidney Silveira
Celso Cunha, Lindley Cintra, Said Ali, Mário Barreto, Adriano da Gama Kury e Mattoso Câmara Jr. estão entre os autores que habitualmente indico, quando me indagam a respeito de estudos gramaticais de língua portuguesa. Destes, conheci Mário Barreto graças ao querido amigo Sergio Pachá, ao longo das aulas do curso “A Língua Absolvida” — por ele ministrado ano passado no Instituto Angelicum, o qual está agora na segunda turma.
Não são santos da minha predileção, embora eu não deixe de lhes reconhecer a erudição e os méritos, o citadíssimo Napoleão Mendes de Almeida e Evanildo Bechara, o gramático de madeixas tingidas da cor acaju, hoje quase nonagenário. O primeiro porque algumas vezes, numa volúpia irrefragável de estatuir regras e preceitos, semelhante à do velho Cândido de Figueiredo, mistura questões de estilística com problemas de gramática normativa; o segundo porque me parece confuso e, ocasionalmente, até contraditório ao explicar os fatos da linguagem.
Mencionei acima apenas um autor português, entre vários brasileiros: Luís Filipe Lindley Cintra. Isto porque entre nós os livros dos portugueses são encontráveis quiçá entre alfarrabistas calejados, um pouco mais cultos. Mas frise-se que conhecer pelo menos um pouco da história da gramática em terras lusitanas, desde o quinhentista Fernão Dias até os dias atuais, é fundamental, sobretudo para quem queira entender o seu âmbito e ver que se trata duma ciência cujo objeto material são fatos anteriores a ela. Pois menciono agora outro português — este contemporâneo —, para não ficarmos apenas com Cintra: o ex-sacerdote Mário Augusto do Quinteiro Vilela, filólogo, lexicologista e sintaticista, autor de trabalhos como “A Antonímia como Relação Semântica Lexical” e “Definição nos Dicionários de Português”, que me chegaram às mãos há alguns anos.
Digamos agora sem tergiversações amenizadoras: o gramático não é uma espécie de pontífice que tenha o poder de proferir anátemas “ex cathedra”, como fazia Cândido de Figueiredo em seu pomposo consultório popular de enfermidades da linguagem (nos famosos, e muitas vezes abstrusos, tópicos de “O que se não deve dizer”), mas um serviçal proficiente do idioma. Um estudioso que, antes e acima de tudo, está em busca dos elementos consubstanciais da língua, como afirmava o mencionado Joaquim Mattoso Câmara Jr.; não o sujeito com a palmatória em riste na direção do perímetro glúteo de pessoas desavisadas, paranoicamente à cata de desvios normativos ou de supostos barbarismos. Um exemplo? O Dr. Castro Lopes, médico, polígrafo e poetastro novilatino, autor do engraçadíssimo “Neologismos Indispensáveis e Barbarismos Dispensáveis”.
Castro Lopes eriçava os próprios pêlos até a púbis ao ouvir, ou ler, palavras oriundas do francês, como menu, massagem, turista, galochas, abajur e outras. Para combatê-las, qual Quixote enfurecido perante moinhos de vento, talvez por ver nelas elementos alienígenas ao português — e certamente por não compreender o fenômeno multimilenar da apropriação da linguagem —, o feérico Dr. Lopes criava monstros apátridas, muitas vezes compostos de pedaços avulsos de palavras gregas e latinas.
Eis algumas das suas façanhas:
Galochas = anidropodoteca
Chalé = Casteleste
Claque = Venaplauso
Nuança = Ancenúbio
Abajur = Lucivelo
Pincenê = Nasóculos
Turista = Ludâmbulo
Este nosso Policarpo Quaresma da gramática não conseguia sequer enxergar que, para combater neologismos de origem francesa, estava criando, no ato, neologismos greco-romanos. A propósito, um primo espiritual de Castro Lopes, o Sr. Silva Túlio, outro aspirante a pontífice do idioma, brindou-nos com o livro “Estudinhos da Língua Pátria”, obra hoje infelizmente difícil de encontrar, a qual fora indicada por decreto, no longínquo ano de 1894, como bibliografia básica em língua portuguesa a ser consultada por quem quisesse participar de concursos públicos em nosso país. Seja como for, a quem pretenda desanuviar a alma e divertir-se um bocado com as estripulias castrolopinas, informo haver uma edição mais recente de “Neologismos Indispensáveis e Barbarismos Dispensáveis” na Estante Virtual.
Este foi o tema duma palestra ministrada no último sábado, 09/05/15, por mim e pelo prof. Sergio Pachá para amigos aqui do Rio, à qual demos o nome de “Língua e Liberdade” — com o intuito de mostrar a importância do domínio da norma culta e, ao mesmo tempo, fazer ver que a plasticidade expressiva do nosso idioma não está ao arbítrio deste ou daquele gramático, isolado da tradição na qual se insere, quer queira, quer não.
P.S. Por favor, não digam “caramba, por que o Sr. não nos avisou?”, pois este evento foi realizado a convite de amigos, em ambiente com espaço para um número restrito de pessoas. Quem quiser organizar o seu grupo e convidar-nos, sinta-se à vontade, desde que apenas nos remunere o transporte de ida e volta.
P.S.2. Em breve, o Instituto Angelicum anunciará dois cursos: "O Soneto", com o Prof. Sergio Pachá; e "Retórica", com o Prof. Carlos Nougué. Ambos com a participação deste que agora vos escreve.