Cristo expulsa os vendilhões do Templo (Gustave Doré)
A
Luiz Astorga
Sidney Silveira
Há quem confunda
temperamento com caráter. O caráter, como nota distintiva predominante dos
hábitos morais, pode e deve ser formado, ou seja, educado para o aprendizado do
bem, da verdade, da beleza. Por sua vez, o temperamento é o conjunto de
tendências que radicam no corpo, ao modo de predisposições naturais. A clássica
teoria dos temperamentos de Hipócrates ainda tem muito a dizer a diferentes
ramos da psicologia moderna — tal o realismo de suas finas observações. Ainda
hoje, a um bom observador não é difícil entrever a irritabilidade e a
impulsividade típicas dos homens sangüíneos;
identificar as reações explosivas e repentinas dos coléricos; perceber a habitual apatia de muitos fleumáticos; e constatar a introspectiva
excitação nervosa dos melancólicos.
Não se trata
propriamente de emoções, no sentido moderno do termo, mas do substrato orgânico das emoções. Em
síntese, o temperamento são as inclinações
afetivas que predominam num sujeito — pertencentes, portanto, à instância
sensitiva. Em vocabulário metafísico, podemos dizer o temperamento participa da sensibilidade; e o caráter participa da razão. Por isso, somente uma
boa formação do caráter é capaz de fazer um sujeito vencer as inclinações radicadas
em seu corpo que, se exacerbadas, podem transformar-se em vícios para lá de daninhos.
A educação da alma,
sabemos desde Platão, passa pela estrita
atenção do pedagogo ao temperamento do discípulo. É a partir desta
identificação do feitio da têmpera que o mestre sem pruridos propõe privadamente
práticas preventivas — com perdão da quíntupla aliteração —, no sentido de se evitarem
os extremos indesejáveis. Ao fogoso aconselha o exercício da meditação; ao
apático, atividades físicas que literalmente o acendam; ao irado, receita
leituras espirituais; ao triste, banho frio e audição de boa música alegre,
como por exemplo Vivaldi. A pedagogia dos séculos XIX e XX perdeu completamente
esta noção elementar que abarca as relações entre temperamento e caráter.
Uma inteligência bem
formada é a que resolveu satisfatoriamente a dicotomia temperamento/caráter.
Noutras palavras: ela implica a vitória
do caráter sobre eventuais inclinações más do temperamento. Tal vitória,
diga-se, é consignada não pelo esmagamento das tendências naturais que radicam
no corpo — entre as quais citemos a configuração hormonal predominante —, mas pelo
aproveitamento eficaz delas, na medida em que a vida exige, em variadas
ocasiões, a manifestação de aspectos distintivos de cada um dos temperamentos.
Quando Cristo pôs para correr os vendilhões do Templo, não o fez com açúcar na
boca nem nas mãos. As glândulas supra-renais de Nosso Senhor certamente fizeram-lhe
subir a adrenalina, com o conseqüente aumento da tensão arterial provocado nas
ocasiões de manifesta ira justa.
Se a formação da
inteligência passa, entre várias outras coisas, pelos fatores anímicos acima
arrolados, somos levados a concluir em favor da existência dum temperamento filosófico. Este se caracterizaria
pela consolidação do hábito de (em
sentido literal, estrito) temperar os
afetos de acordo com a plasticidade da inteligência, de modo a não
prejudicar a tendência natural do intelecto às formas inteligíveis. Como o
filósofo — pelo menos o bom filósofo — necessita desenvolver em padrão
elevadíssimo a capacidade de análise e síntese, na prática ele precisa estar muito bem treinado para
acolher as objeções que se lhe fazem de maneira análoga à de um boxeador que suporta
os socos do adversário e se mantém de pé.
Se o candidato a
filósofo não é capaz de nem mesmo ouvir objeções razoáveis aos seus argumentos, saibamos
que estamos diante duma pessoa que não possui temperamento filosófico — por
mais cultura filosófica que possua. Em poucas palavras, trata-se de alguém cujo caráter ainda não está suficientemente moldado para vencer as inclinações desfavoráveis radicadas no corpo: irrita-se desproporcionalmente
se uma pessoa o contraria; critica os objetores movido por impulsos
irracionais; agita-se como se, a qualquer ressalva ao seu pensamento, estivesse diante de um inimigo mortal; atribui ao adversário intenções que jamais
poderá comprovar, etc.
Alguém como Kant,
por exemplo.
Muitas vezes, são homens
talentosos que, por falhas de caráter alimentadas por seus maus bofes, deixam de
realizar plenamente a sua vocação, por pura e simples falta de temperamento filosófico.