Sidney Silveira
Entre muitas outras
coisas, o inferno é a rememoração
perpétua dos males cometidos, espécie de zurzir eterno do remorso que
fustiga a consciência, a ponto de deixar espaço apenas para o ódio transformado em ímpeto perene. A
alma, em tal estado, infelicita-se sumamente e sucumbe ao macabro mecanismo de co-responsabilizar
a todos por sua infelicidade, a começar por Deus, objeto do ódio maior.
Diferentemente do que sucede às pessoas más deste mundo, o réprobo não tem a possibilidade de fazer do esquecimento um ardil psíquico com que possa cauterizar a consciência e apagar as culpas, nalgum grau e durante tempos intermitentes. Não! A dor do condenado é a memória transformada em castigo — consciência de culpa imune a terapias ou a justificativas de qualquer tipo.
Diferentemente do que sucede às pessoas más deste mundo, o réprobo não tem a possibilidade de fazer do esquecimento um ardil psíquico com que possa cauterizar a consciência e apagar as culpas, nalgum grau e durante tempos intermitentes. Não! A dor do condenado é a memória transformada em castigo — consciência de culpa imune a terapias ou a justificativas de qualquer tipo.
Se fosse possível nesta vida aquilatar
a latitude desse sofrimento que lembra para sempre das suas próprias causas
culpáveis, talvez antes de chegarem ao estágio em que a cura da alma é impossível
muitas pessoas emendassem a vida. E aqui, quando dizemos causa culpável, estamos acrescentando um vetor
às formas clássicas de causalidade codificadas sobretudo por Aristóteles e por Santo Tomás de Aquino, seja no plano metafísico, seja no teológico: causa material, causa eficiente, causa formal,
causa final, causa modelar, causa instrumental, causa meritória,
etc.
Diga-se, antes de tudo,
que a causa culpável só se aplica aos entes dotados de inteligência. No caso
humano, ela aflora nos atos levados a cabo com maior ou menor negligência
voluntária na averiguação da verdade, mas pode chegar à malícia,
que não é outra coisa senão a maldade praticada com certa ciência, com certa
indústria e por livre escolha. No caso diabólico, muitíssimo mais grave, a causa culpável
aflora na ciência antecedente e na deliberação efetiva — e plena — do malefício
implicado na ação, a saber: ela emerge na intenção de acarretar o maior mal possível a
outrem. Em sua formulação mais generalista, a causa é culpável quando o agente poderia evitar os efeitos maus dela
decorrentes. E será mais ou menos culpável numa escala que vai da maior ou
menor ignorância negligente à perfeita consciência do influxo causal inerente
ao ato.
Na perspectiva teológica,
podemos dizer que o demônio é a causa
culpável remota dos maus atos humanos. Na perspectiva psicológica, como o
homem é dotado de livre-arbítrio — incoercível potência de escolha que radica
na vontade —, tal causa remota não pode ser absoluta, pois há e haverá sempre a
possibilidade de ele recusar o mal, não consentir. Portanto, o próprio homem é causa culpável próxima de sua infelicidade. E, diga-se a propósito, a
infelicidade é o signo perdurável da vontade que frustrou o fim ao qual tende
por natureza: o bem. Qualquer bem? Claro que não. Falamos do bem retamente
assimilado e hierarquizado pela inteligência e, por conseguinte, apetecido de maneira ordenada pela vontade.
A vida espiritual
genuína pressupõe uma crescente visão das causas culpáveis, e posterior
afastamento delas. Crescer espiritualmente é, pois, enxergar cada vez mais e melhor
a realidade, até chegar à compreensão de que a caridade ocupa o seu ápice. Em
contrapartida, a falta de vida espiritual de um homem caracteriza-se por atos enceguecidos quanto
ao universo causal em que se dão. O final dessa mortífera escada de Jacó às
avessas é a incapacidade de abranger a
visão à própria história pessoal, contemplada na
perspectiva do seu conjunto.
Em síntese, no
inferno, o conjunto das causas culpáveis estará
dolorosamente iluminado na consciência de cada um. Ao passo que, nesta vida,
o truque satânico que uma pessoa pode realizar contra si própria é viver na superfície das
pequenas satisfações e insatisfações cotidianas; viver alheia às conseqüências dos
seus atos.