terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A metafísica contra a teoria da evolução (V): a criação, um problema de natureza diversa



“Concedamos espaço maior, papel mais relevante, às causas segundas; mas não concedamos nada à evolução porque ela é uma monstruosidade metafísica que não cabe em lugar algum”.


Gustavo Corção


(As Descontinuidades da Criação)


(continuação deste texto)


Sidney Silveira


Santo Tomás de Aquino dedicou textos importantes de sua obra ao problema da criação. Isto em dois vetores: a criação em sentido geral e a criação do universo corpóreo. Em ambos os casos, comprovando a absoluta transcendência da causa primeira do ser com relação a todas as causas segundas. Estas, a propósito, sempre pressupõem em seu operar algo anterior, ao passo que a causa primeira não pode supor em suas operações algo que ela mesma produziu,[1] o que implicaria contradição. Ademais, nada pode haver anteriormente ao que é primeiro em sentido absoluto.


A causa primeira do ser não é cognoscível — sob aspecto algum — por nenhuma das ciências naturais, visto que a natureza, com todas as suas operações, já se enquadra no contexto das causas segundas. A razão disto é que as causas naturais produzem este ou aquele ente, partindo sempre de algo anterior, ao passo que a causa primeira produz o ser. Assim, nem mesmo a materia prima como “ser real-potencial”, na feliz expressão do tomista Gallus M. Manser, pode ser objeto da física, da biologia ou de qualquer outra ciência natural, justamente por ser informe. Neste contexto, como se afirmou que o problema filosófico da criação nada tem a ver com a hipótese da evolução, cabe fazer algumas considerações a seu respeito.


Comecemos pela observação do Aquinate de que os filósofos antigos — ao analisar a origem de todas as coisas — sempre consideraram um devir, uma geração, uma mutação a partir de matéria preexistente.[2] Nem mesmo Aristóteles, com o seu Primeiro Motor Imóvel, ultrapassou satisfatoriamente a idéia de uma materia prima existente desde sempre.[3] Na verdade, algo assemelha esses antigos filósofos da natureza aos cientistas contemporâneos que esboçam teses sobre a origem do universo, da vida, etc.: o não enxergar a inadequação entre os instrumentos de que se valem e as teorias que formulam.


Para ter-se idéia de quão distinto da hipótese da evolução é o problema da criação, comecemos por observar, com Santo Tomás, o seguinte: tudo o que tem potência para ser e não ser, com certeza um dia não foi. Pois bem: não é possível que todos os entes do universo sejam assim (contingentes), pois se todos, sem nenhuma exceção, possuíssem potência para o não-ser, seria necessário admitir, retrocedendo nas séries de causas ordenadas per se, que em algum momento nada foi. Mas se isto fosse verdade, nada existiria agora, pois o nada não tem potências; portanto é absolutamente falso que todos os entes do universo sejam contingentes, quer dizer, que tenham potência para ser e não ser. Logo, é preciso conceber a existência de um ser que não tenha potência alguma para o não ser, ou seja: um ser absolutamente necessário, raiz possibilitante de todas as contingências.[4]


Das cinco vias demonstrativas da existência de Deus, esta é a que mais firmemente conduz ao problema da criação, pois, ao conceber-se a existência de um (único) ser absolutamente necessário, surge a pergunta de como os contingentes dele provieram. Uma vez mais, salta aos olhos que a hipótese da evolução nada tem a ver com este problema, pois já parte das operações da natureza, ao passo que aqui se está indicando a causa de todas as naturezas — apontando para o seguinte: a existência de todo o conjunto de entes naturais do universo (do núcleo atômico aos buracos negros, do talo de grama às galáxias mais distantes) pressupõe algo supra naturam, quer dizer, algo fora da série de causas naturais, sem o que estas sequer existiriam. Noutras palavras, a natureza está orientada teleologicamente ao sobrenatural.


O leitor que até aqui nos acompanhou há de estar convencido de que é totalmente falsa a dicotomia criacionismo/evolucionismo, pois sequer se trata do mesmo problema. E mais: a hipótese da evolução das espécies é um problema posterior, para cuja formulação honesta seria necessário antes de tudo resolver como é possível o trânsito de uma potência x a um ato y ao qual não está orientada — o que está pressuposto na tese de que uma espécie evolui em outra. E aqui reiteremos o que se disse anteriormente: a cobrança de uma prova metafísica para a hipótese da evolução justifica-se, na medida em que esta, partindo de algumas observações em seu âmbito restrito, quer impor-se como verdade transcendente e omniabarcante para toda uma série de causas naturais.


Para demarcar ainda mais a diferença entre os problemas, diga-se que, em síntese, a criação pode considerar-se sob quatro aspectos distintos:


Ø Com relação à sua causa material (termo a quo): productio ex nihilo. Ou seja, é a produção de todo o conjunto de entes, literalmente, do nada, e não de uma matéria preexistente. Isto ainda abordaremos em detalhe na continuação da série sobre a criação.


Ø Com relação ao fim (termo ad quem): productio rei secundum totam substantiam. Ou seja, é a produção de todas de todas as coisas já em sua integridade substancial (matéria e forma, no caso dos entes com composição de matéria, e forma sem matéria, no caso das substâncias imateriais);


Ø Com relação à causa eficiente: emanatio totius entis a causa universali, quae est Deus.[5] Ou seja, a proveniência de todos os entes de uma causa só universalíssima: o Próprio Ser Subsistente, Deus.


Ø Com relação à ordem entre o termo a quo e o ad quem: transitus de non ente simpliciter ad ens simpliciter. Ou seja, o trânsito do nada em sentido absoluto a partir do Ente em sentido absoluto (que é o Próprio Ser). Daí dizer Santo Tomás que a criação é o primeiro ato que pode exercer-se sobre qualquer coisa (prima actio quae circa rem exercetur).


Em resumo, a hipótese da evolução não apenas nada tem a ver com a criação, mas mais ainda: por lidar com o ente já formado, a evolução, devido ao seu intrínseco materialismo, sequer pode vislumbrar tão elevado problema metafísico, que finge não existir. Sequer pode vislumbrar que a criação lida com o ente que não pode, com propriedade, ser enquadrado em nenhum gênero, e por conseguinte em nenhuma espécie.


A questão, portanto, não é contrapor a criação à evolução, mas cobrar desta última a apresentação de hipóteses verdadeiramente científicas, ou seja, que partam de premissas e princípios que não agridam a nenhum princípio universal da razão especulativa, sem o qual não pode sequer haver ciência.


(continua)


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1-“Nullum agens praeexigit ad suam actionem quod per sua actionem producit”. Tomás de Aquino, Compêndio de Teologia, c.68


2- Tomás de Aquino, Subst. Sep, c.7, ad.1.


3- Santo Tomás, comentando a tese de Aristóteles sobre a eternidade do mundo, conclui que não é possível à razão decidir com certeza se o universo foi criado por Deus no tempo ou desde a eternidade. Mas, com relação à criação, propriamente, o Aquinate aponta em diferentes obras que a razão humana pode demonstrá-la de forma apodítica. E ele o fez. Veja-se, portanto, que se trata de dois problemas distintos: o da criação e o de se ela aconteceu no tempo ou desde a eternidade (neste caso, com a pressuposição de que Deus poderia produzir algo fora do tempo).


4- Cf. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q. 2, art. 3, resp.


5-Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q. 45, art. 1.