Sidney Silveira
Envia-me um colega o texto do professor Olavo de Carvalho em que se afirma ipsis verbis o seguinte: “O tomismo é filosofia em sentido pleno; o neotomismo é, ao contrário, um movimento cultural e político — ideológico, em suma — voltado à difusão dessa filosofia, tomada como solução pronta de todos os problemas e, portanto, esvaziada de boa parte de sua substância filosófica”. No mesmo texto, dá-se claramente a entender que o único tomismo verdadeiro é (ou foi) o de Tomás de Aquino; os demais seriam uma espécie de degenerescência com fins meramente ideológicos, no sentido de algo descasado da realidade e voltado a uma práxis coletivista sem qualquer compromisso com a investigação filosófica. [1]
Decididamente, nenhuma dessas assertivas do conhecido professor é verdadeira: em primeiro lugar, o tomismo histórico existiu desde a morte do Doutor Comum da Igreja, nascido e crescido da pena de filósofos e teólogos simplesmente geniais (e não de “ideólogos”), comparados aos quais um Kant, um Heidegger, um Zubiri, um Descartes, um Husserl, etc. são tímidas formigas. O tomismo, como veremos, foi uma corrente filosófica genuína e profunda, e mais: ele foi importantíssimo para o Ocidente, e isto graças ao esforço e ao engenho de homens extremamente talentosos que:
a) primeiramente, procuraram compreender o incomensurável tesouro encerrado nos escritos do mestre medieval;
b) depois, difundiram-no como puderam, enfrentando as dificuldades intrínsecas à interpretação dos textos de Tomás;
c) e, por fim, utilizaram-no em defesa da fé e contra as heresias que, ao fim e ao cabo, afastam o homem do seu fim último: Deus. Nesta primeira fase, Godofredo de Fontaines, Egídio Romano e Giovanni Capreolo estão entre os nomes de maior destaque. O leitor contemporâneo acostumado a filosofias sem a menor preocupação de escapar à equivocidade, e portanto alheias ao denodado trabalho de formular os conceitos com clareza, precisão e sistematicidade, ao deparar-se com textos de um dos três autores acima mencionados é capaz de assistir ao suicídio coletivo de seus neurônios, totalmente desafeitos das abstrações metafísicas com maior autonomia de vôo.
Outro ponto: sem a defesa da obra (e da pessoa) do mestre medieval feita por estes e por outros discípulos, Santo Tomás de Aquino dificilmente teria sido resgatado do ostracismo em que os inimigos quiseram jogá-lo, a ponto de ficar proscrito por cerca de 50 anos, até ser reabilitado com a sua canonização e posterior acolhimento da doutrina por parte da Igreja, que fez grande justiça ao transformá-lo no Doutor dos doutores, ou seja, no Doctor Communis Ecclesiæ. Ora, como o próprio Aquinate ensinou em vários de seus escritos, Deus age por causas instrumentais segundas — e serviu-se desses homens excepcionais para que a philosophia perennis não submergisse à tsunami humanista anticivilizacional que culminará, séculos depois da morte de Santo Tomás, no liberalismo clássico e nas várias revoluções vomitadas de suas negras entranhas.
Para ter-se uma vaga idéia da importância desta pujante corrente filosófico-teológico-magisterial que começa imediatamente após a morte de Tomás — e caminha de forma não linear, porém contínua, no decorrer dos séculos —, ressalte-se que, sem o tomismo, não teria havido historicamente o Concílio de Trento, ou seja, a Contra Reforma — resposta firme e magistral da Cristandade ao humanismo que, conforme diz o Pe. Álvaro Calderón na obra-prima A Candeia Debaixo do Alqueire, representava a violenta reação da carne às duras exigências do espírito (cristão); uma atitude de retrocesso a apostasia, de orgulho, de ódio à autoridade espiritual. Nesta fase o grande nome é, sem dúvida alguma, o notável Tommaso de Vio, o Cardeal Caetano, exegeta, filósofo, teólogo, professor e, além de tudo, personalidade marcante de uma época capital da história eclesiástica. Aqui, assumindo-se ou não a crítica de Cornelio Fabro ao suposto caráter “aristotelizante” da obra de Caetano, o fato é que se trata de um gigante — do teólogo de quem Lutero, obstinado em suas incontáveis heresias, literalmente fugiu apelando ao Papa, para evitar o confronto direto. Algo similar ao que, séculos antes, havia ocorrido com o lógico Abelardo, diante de São Bernardo.
Apenas para citar um tema e não estender por demais este breve texto, as obras de Caetano e de Francisco Ferrariense (outro profundo filósofo tomista da Segunda Escolástica) acerca do princípio de individuação — e contra os erros implicados no conceito formalista de hæcceitas, de Duns Scot — são de grandíssimo interesse filosófico. Somente quem não as leu poderia insinuar tratar-se de “ideologias”, o que é uma espécie de desonra à nobreza destes homens e ao seu grande talento especulativo. A prova disto nós a daremos no decorrer dos próximos anos, editando alguns textos desses filósofos simplesmente estupendos, inéditos em línguas vernáculas. Um trabalho civilizatório e de defesa da fé, seja no âmbito eclesiástico (hoje infelizmente assaz envenenado por teorias desde sempre condenadas pelo Magistério), seja fora dele.
Pois bem. Naquilo que é, para alguns historiadores, a chamada “Terceira Escolástica”, surge João Poinsot, conhecido como João de Santo Tomás, a quem cabe perfeitamente o epíteto de gênio. O seu Cursus Theologicus, monumental tanto em tamanho como em profundidade, é uma das obras que adquirimos recentemente na íntegra, e está “na fila” para ser editada em diferentes volumes, quando a Deus aprouver (e se providencialmente conseguirmos recursos financeiros para tanto). A beleza, a precisão, a concisão, a clareza expositiva e a harmonia dos conceitos filosóficos de João Poinsot nos autorizam a elencá-lo entre os notáveis da história da filosofia, infelizmente pouco conhecido. O seu Cursus Philosophicus é outra obra que — quem sabe antes de morrer — apraza a Deus editarmos (digo “antes de morrer” porque este é um trabalho para anos a fio).
Em suma, tendo à frente estes e outros grandes filósofos, o tomismo vai sendo estudado nas academias e seminários católicos ao longo de vários séculos, e é também acolhido de forma cada vez mais solene pelo Magistério (o que, longe de torná-lo vazio, estático ou desinteressante, lhe dá uma pujança tremenda). Chegamos então ao século XIX e ao Papa Leão XIII, que na famosa Encíclica Aeterni Patris, diante dos perigos do modernismo teológico que, já então, se imiscuía nos meios católicos, ordena em palavras simples mais ou menos o seguinte: as filosofias cujos princípios são contrários ou derrogatórios da fé devem ser preteridas, em favor do ensino de Sto. Tomás de Aquino em todos os seminários católicos. Naquela época, o ditado Roma locuta, causa finita era quase um decreto pétreo, razão pela qual houve um salutar rejuvenescimento do tomismo.
A partir deste documento papal nasce e se desenvolve o que hoje se convenciona chamar de neotomismo, corrente cuja força será quase totalmente podada quando o modernismo for consagrado no Concílio Vaticano II, e os seminários abrirem, a partir do final dos anos 60, os gonzos ínferos de um sem-número pseudofilosofias e da nouvelle théologie denunciada pelo tomista Garrigou-Lagrange (a meu ver o maior teólogo do século XX). Infiltradas no seio da Igreja, essas filosofias criarão algo que o Pe. Álvaro Calderón chama, com humor ácido, de consenso “plurânime” dos teólogos, ou seja: uma verdadeira babel doutrinária cujos reflexos são sentidos hoje por qualquer pessoa de bom senso que se veja na contingência de assistir à Missa reformada de Paulo VI, ler os documentos do Magistério conciliar, confessar-se com padres modernistas — muitos dos quais “aboliram” o pecado e a penitência de seu ofício —, ver a arte produzida pela nova estética católica, etc.
Em suma, o neotomismo produziu alguns dos maiores filósofos do final do século XIX e do século XX, os quais estão muitíssimo além dos manuais a que chamo jocosamente de “coleção primeiros e últimos passos”, engendrados por historiadores da filosofia em geral anticristãos, para quem o mundo começa no século XVI. Pierre Mandonnet, G. M. Manser, o já citado Garrigou-Lagrange, Gredt (que escreveu toda a sua densa obra em latim), Santiago Ramírez (este último, autor do fabuloso De analogia secundum doctrinam aristotélico-thomisticam, outro sonho nosso de edição) e Cornelio Fabro são apenas alguns dos exemplos de autores extraordinários, sobretudo se comparados à maior parte do que se produziu no século XX: de Husserl a Sartre; de Heidegger a Ortega y Gasset. Abro aqui um parêntese para dizer que não incluo Jacques Maritain nesta lista, mas isto será tema para outro texto.
Por fim, não sei se o caro professor Olavo de Carvalho ainda mantém a opinião do texto supracitado (que, pelo visto, foi escrito há tempos, razão pela qual pode ser que ele tenha revisto este parecer). Mas como este seu texto é bastante difundido e diz respeito a um tema tão importante para a história da filosofia — e também para a história da Igreja, o que implica dizer: para nós católicos —, vimo-nos compelidos a mencionar apenas alguns exemplos do tomismo histórico, que, se porventura foi utilizado para a defesa da fé e dos Dogmas, não implica dizer que o tenha sido de forma “ideológica” ou “política”.
A menos que concebamos a política de uma perspectiva liberal (condenada pelo Magistério), quer dizer, como algo não necessariamente ordenado ao poder espiritual participado por Cristo à Santa Madre Igreja.
Ao modo de um Dante ou de um Thomas Morus.
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1- Aqui, não custa lembrar que “ideologia” é um termo plenamente assimilado pelo jargão da filosofia política a partir do francês Antoine Destutt de Tracy, que na bolorenta obra Elements d’ideologie (1801) afirmara ser a ideologia “uma filosofia primeira em substituição a qualquer metafísica”.