Sidney Silveira
O despotismo caracteriza-se pela imposição de políticas que não se orientam pela verdade — ou seja: que não tenham como referência a realidade mesma das coisas. Por isso, um poder de governo (potestas regendi) sem nenhuma referência ao ensino da verdade (potestas docendi) será sempre tirânico, ainda que se trate de uma tirania da maioria teleguiada, como é o caso das democracias contemporâneas, onde o descasamento entre o ético e o político é essencial, e o povo, mera massa de manobra de minorias infrapolíticas altamente organizadas e financiadas. Se isto vale para o plano político, muito mais valerá para o espiritual-noético ao qual a política está por natureza subordinada.
Platão — o pagão Platão! — já ensinava que só pode haver república quando os homens se reúnem em torno da verdade. E tinha razão nisto o notável grego, pois, de forma diametralmente oposta ao que propugnava Maquiavel, a verdade é o critério da política, o pilar sem o qual sequer pode haver civilização. Em suma, uma política baseada em mentiras ou em erros se voltará sempre contra o bem comum e se porá a favor das oligarquias, a favor dos tiranos, dos corruptos, dos imbecis que se inebriam com o poder e vendem a alma por trinta dinheiros, fomentando a ruína geral. É este o exato momento em que as arbitrariedades passam a dar o tom da política, e em que a verdade começa a se tornar uma impossibilidade social; e defendê-la, um grande risco.
Pois muito bem. Feito este preâmbulo em que está implicada a necessária ordenação do político ao espiritual, cumpre-nos dizer: toda a luta iniciada por D. Marcel Lefevbre — devida à reviravolta magisterial dos documentos do Concílio Vaticano II e de todos os que se lhes seguiram — se deu no plano doutrinal, e não no terreno político. Ou seja, o aspecto político dessa luta sempre ficou num patamar adventício e secundário, como aliás deve ser, de acordo com a reta razão. Neste contexto, o x da questão da FSSXP criada por D. Lefevbre nunca foi do tipo “político-partidário”, mas a necessidade de preservar a Tradição e manter íntegras todas as notas essenciais da Igreja — que estavam sob gravíssimo risco de perder-se em poucos anos, devido ao modernismo “consagrado” pelas autoridades romanas que, desde o Concílio, passaram a ensinar doutrinas contrárias a dois mil anos de magistério eclesiástico.
Quando contemplamos, com o coração desapaixonado, o vendaval modernista, observamos que dada ficou de pé, nos últimos 46 anos:
Ø Novo Catecismo (um tratado de [má] fenomenologia totalmente inacessível à maioria dos simples fiéis);
Ø Novo Código de Direito Canônico (em que até a inversão da ordem dos artigos — estando as questões leigas à frente das eclesiásticas — indica o novo vetor da lei, isto sem falar em algumas adaptações sutis ao modo de pensar moderno e as teorias por ele informadas);
Ø Nova liturgia (protestantizada);
Ø Novos ritos de canonização (com a exclusão de etapas fundamentais);
Ø Nova ordenação sacerdotal (bem reduzida, na nova fórmula, e sem a devida ênfase ao fato de o padre ser ordenado para perdoar os pecados);
Ø Novo ministério dos sacramentos, propenso ao fomento de toda a sorte de escândalos (como os que hoje pululam nas dioceses);
Ø Novo ensino filosófico e teológico nos seminários (com a exclusão do ensino escolástico ou, então, sua adaptação forçosa às filosofias moderna, contemporânea e pós-moderna, ao modo de “diálogo”);
Ø Mil etecéteras e milhões de conseqüências práticas!
É fato inegável que a foice modernista alcançou todos os âmbitos da Igreja, desde 1965 (a propósito, ano em que nasci). O mais incrível é alguém não querer ver a íntima conexão entre a crise atual e as novas doutrinas, a nova teologia.
Agora, um dos bispos da FSSPX fez um recente sermão dizendo o seguinte, entre outras coisas:
“Roma é o centro do Catolicismo; é de Roma que a solução deve vir”.
Pronto! Bastou isto para uma plêiade de católicos neoconservadores (e também alguns padres tradicionais) dar mil “vivas” e fazer incríveis ilações pseudopolíticas sobre o benefício que um acordo entre Roma e a FSSPX traria para o orbe católico, em quaisquer bases. Acreditam estes amigos que, num passe de mágica, todas as inúmeras e fundamentais questões doutrinárias (referentes às verdade da fé, ao caráter da Igreja e ao valor mesmo do magistério conciliar) serão resolvidas pela oferta de postos eclesiásticos?
“Sejam caridosos e cedam”, dizem os ácidos críticos dos católicos que não cedem na doutrina, como se pudesse haver caridade sem verdade. Com relação a estes, o blog do SPES dá hoje uma resposta bem concisa e precisa: ou tudo o que ensinaram os padres tradicionalistas até hoje era falta de caridade, e os que nos acusam “de faltar a ela” mudaram de posição sem aviso prévio, ou, devido a uma ignorância quase invencível, nunca entendemos nós os seus ensinamentos anteriores. Tertium non datur.
Para mostrar que esta última opção não pode sustentar-se de forma alguma, o referido blog começará a publicar, a partir de hoje, uma série com esses ensinamentos, apontando sempre as fontes.
Finalizo dizendo o seguinte: é claro que rezamos por um acordo, mas não em quaisquer bases, e sim com a condição inegociável de que Roma retome a tradição bimilenar da Igreja, pondo fim ao modernismo fomentador de crimes contra a fé.
P.S. É evidente que é de Roma que a solução deve vir! Mas a solução não é, como frisamos, política — e sim doutrinária. Sem esta, qualquer acordo está fadado a mutilar a resistência católica.