quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O elogio da amizade

Sidney Silveira
De Spirituali Amicitia
(Elredo de Rievaulx, monge cirstenciense do século XII).

A amizade é a glória dos ricos, a pátria dos desterrados, a riqueza dos pobres, a medicina dos enfermos, a vida dos mortos, a graça dos sãos, a força dos débeis e o prêmio dos fortes. (...) E há algo que tudo supera: a perfeição consiste no amor e no conhecimento de Deus, e a amizade está junto dela como uma espécie de escada — de modo que o homem, de amigo do homem, sobe um infinito degrau e se torna amigo de Deus, conforme diz o Salvador no Evangelho: Já não vos chamo servos, mas amigos”.

Esse trecho de um escrito do notável Elredo [Aelredus], companheiro de São Bernardo, nos faz lembrar que não pode haver real amizade se não for em Deus e na verdade. Daí dizerem os latinos: Amicus Plato, sed magis amica Veritas. Em suma, ou seremos amigos de Deus, para poder ser amigos dos homens, ou não seremos amigos de Deus nem de ninguém (nem de nós mesmos). Neste último caso, restar-nos-á apenas a angústia, a depressão, a solidão, as rixas e as taras mais acachapantes. Diz Elredo neste primor de tratado que é o De Spirituali Amicitia: “Está absolutamente só quem não tem amigos (“Solus omnino est qui sine amico est”). E poderíamos acrescentar: está sem amigos que não procura a Deus.

Noutras palavras: só é possível haver amizade entre os bons, ou melhor, entre os que participam da bondade de Deus por um ato da vontade e da inteligência (na oração, na prática dos mandamentos [com o auxílio da Graça] e na freqüência aos sacramentos), pois entre estes se estabelece um vínculo espiritual verdadeiro — que é a essência da amizade. Portanto, sem Deus no horizonte, a amizade se avilta e se molda, sempre, a interesses menores. Neste último caso, por mais presentes que estejam umas pessoas na vida de outras, sempre há um vazio de sentido nessa relação. Isto porque o amor sem Deus é paixão, o prazer sem Deus é fetiche, a amizade sem Deus é interesse, e o trabalho sem Deus dá frutos secos.

Em suma, a amizade que não se atualiza por esse vínculo espiritual profundo, na verdade, não é amizade. É qualquer outra coisa que se estraga com o tempo, torna-se pútrida como uma carne não conservada. Pois a amizade verdadeira é, como dizia Elredo de Rievaulx, o supra-sumo das relações entre os homens:

“Entre as coisas humanas, nada mais santo se pode desejar, nada mais proveitoso se pode buscar, nada se encontra mais dificilmente, de nada se tem mais doce experiência e nada mais proveitoso se pode ter do que a amizade. Pois ela leva consigo o fruto da vida que permanece. Tempera com a sua doçura todas as virtudes, enfraquece todos os vícios com a força do seu poder, mitiga a adversidade e modera a prosperidade. De modo que, entre os mortais, ninguém pode ser feliz se não tem amigos”.