quinta-feira, 29 de outubro de 2009

As relações entre a inteligência e a vontade (I)


Sidney Silveira
De acordo com Santo Tomás, os atos propriamente humanos, ou seja, aqueles que nos distinguem de todos os demais entes dotados de alma (anima = princípio intrínseco de movimento do corpo) provêm das duas potências superiores inscritas em nossa forma: a inteligência e a vontade. Em suma, entender e querer são atualizações de possibilidades propriamente humanas — na medida em que dos outros animais só podemos dizer que entendem e querem por analogia de atribuição. A menos que concedêssemos que uma anta pudesse querer jogar uma partida de xadrez contra Garry Kasparov, ou que um asno recitasse o Veni, Creator Spiritus desejando contemplar a face de Deus, por entender ser Ele o Sumo Bem. Como tal opinião é de uma asnice sem tamanho, pois nos levaria a aporias insanáveis, deixemo-la.

Ao indicar a bibliografia para a primeira aula do seu Curso de História da Filosofia, o Carlos fez alusão ao caráter problemático de uma tese do Pde. Cornelio Fabro atinente às relações entre a inteligência e a vontade. Noutra oportunidade, faremos um comentário ao livro do pensador italiano intitulado Riflessioni sulla libertà, onde se encontra a tese referida pelo meu querido amigo. Por hora, deixemos consignadas quais são as relações entre a vontade e a inteligência, na doutrina do Aquinate. Em suma, faremos um esboço de definição acerca de se há ou não primazia de uma potência sobre a outra — e em que ocasiões isto pode ocorrer.

Comecemos pela consideração de que o objeto do entendimento (o verum) é superior ao da vontade (o bonum apprehensum), na medida em que para nós o bem só pode dizer-se “bom” enquanto verdadeiro. Neste sentido, a razão de bem (ratio boni) radica na razão de verdade (ratio veri), porque a vontade — que é o apetite intelectivo do bem — só deseja algo na única e exata medida em que esse algo se apresenta a ela na forma de um bem. Em síntese, dada a sua constituição ontológica, a vontade não pode querer o mal em si (simpliciter), mas apenas acidentalmente (per accidens), como por exemplo ocorre a um suicida que, ao matar-se, realiza esse ato porque morrer, naquele instante dramático, se lhe afigurou como algo melhor do que viver sofrendo, por esta ou por aquela razão. Ou seja: a vontade quis o que, no ato, lhe pareceu um bem.

Em síntese, o verdadeiro está para o bom na mesma medida em que o ato está para a potência, pois o ser dos entes é apresentado à vontade somente após ser conhecido. Por isso Santo Tomás sustenta que não é possível querer o que não se conhece, pois algo só pode ser apetecido na medida em que o seu modo de ser (modus essendi) seja descortinado, em algum grau, pela inteligência. Por conseguinte, o entendimento dá à vontade o seu objeto, conforme se lê num estupendo artigo da Suma Teológica (I, q. 82, a.3, ad.2).

Como diz com grande acerto G. M. Manser, O.P., no seu hoje esgotado A Essência do Tomismo, a primazia do verdadeiro e da inteligência sobre o bem e a vontade aplicou-a Santo Tomás a Deus, ao universo e ao homem com uma extraordinária perfeição. Em resumo, o fim supremo do universo é a verdade (cfme. Suma Contra os Gentios, I), captável apenas pelo intelecto, razão pela qual o entendimento move a vontade humana até o seu objeto e exerce uma radical primazia sobre ela. A vontade só quer e apetece o fim enquanto conhecido pela inteligência e apresentado por esta como apetecível. O entendimento é, pois, a primeira causa de toda apetecibilidade da vontade, e dele dependem, em caráter absoluto, todas as volições.

Por outro lado, em certo aspecto (secundum quid) pode-se dizer que há uma primazia específica da vontade sobre o entendimento. Ela ocorre quando a atividade da vontade supera a da inteligência. Quando, por exemplo, a vontade apetece bens externos que têm um modo ser mais nobre em si mesmos do que em nosso entendimento — Deus, por exemplo —, a sua atividade supera a da inteligência. Assim, amar a Deus supera tudo o que dele possamos conhecer pela razão natural. É, pois, um ato da vontade mais nobre e superior a quaisquer atos que o homem possa praticar neste mundo.

Mas há outra primazia, à qual denominamos “primazia de atividade” (quoad exercitum, nas palavras de Santo Tomás). Em síntese, tendo a vontade como objeto o bem em geral (bonum in communi), por conseguinte ela quer o bem de cada uma das potências do homem, inclusive o da inteligência. Em palavras chãs, podemos dizer que, quanto às atividades, a vontade é a propulsora das outras potências, inclusive da inteligência. Um exemplo? A aquisição mesma do saber, que exige tantos sacrifícios, tantos anos de dedicação e tantas renúncias, que só mesmo uma firme vontade pode levar um homem ao ponto de se transformar num grande conhecedor de determinada matéria.

Há ainda outra primazia da vontade — também uma primazia de atividade — que é com relação à liberdade. Mas como há tantos erros neste ponto, como o do voluntarismo scotista, por exemplo, convém explicar:

1- No juízo meramente especulativo, o entendimento julga se algo é em si verdadeiro ou falso. Aqui não desempenha a vontade nenhum papel. Guiada pelas evidências, a inteligência chega à conclusão da bondade ou maldade do ente a que se refere (real ou de razão) por si mesma;
2- No juízo especulativo-prático, o entendimento julga se algo é bom ou mau e, por conseguinte, permitido ou proibido por si mesmo, em todas as partes e para todos (conformitas ad rem). Aqui também a vontade não entra em campo;
3- Por fim, no juízo meramente prático, o entendimento julga o que é preciso fazer num caso concreto, e, nestas circunstâncias, este juízo se apresenta à vontade. Portanto, julga o que é conveniente para a vontade hic et nunc, e o que é para ela bom ou proveitoso (conformitas ad appetitum). Mas como, em cada homem, nada há de mais variável do que as situações concretas, é evidente que este juízo não é propriamente científico, mas prático — e se refere à primazia da liberdade da vontade. Ou seja: a vontade, aqui, é absolutamente livre para querer ou não querer.

Estes três casos foram retirados do mencionado livro de Manser, e ilustram muito bem a teoria de Santo Tomás. Em suma, a nossa vontade é absolutamente livre apenas com relação a bens particulares aos quais não se determina necessariamente, de sorte que possa ou não escolhê-los. Mas, ainda neste caso, ela está condicionada pelo entendimento na medida em que mesmo estes bens particulares, aos quais a vontade pode ser indiferente, só são apetecidos na medida em que sejam formalmente bens para a inteligência.

Em outro texto, falaremos como, numa teoria como esta, se explica ter o primeiro anjo querido o mal e caído em tão monstruoso pecado de aversão a Deus, se nele a apreensão intelectiva do bem era tão perfeita... E como em Adão, em quem (no estado de justiça original) os apetites estavam todos ordenados, pôde haver pecado.

Para os desavisados, estes fatos poderiam levar-nos à conclusão de que o mal pode ser querido em si (simpliciter). Mas este é um grande erro. Veremos os porquês noutra ocasião.