sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Corte-e-costura e ainda a Encíclica “Caritas in veritate” (V)

Carlos Nougué
Mostrado pois o que nos dizem as Escrituras, devemos passar, segundo nosso plano, ao que diz o magistério da Igreja. Antes, porém, há que resolver um preâmbulo. Dante Alighieri — e todos os que de algum modo lhe seguiram e seguem nisto — afirma que não há ordenação essencial do poder temporal ao espiritual, havendo-a no máximo acidental ou indireta. Ora, isso supõe, como diz claramente o mesmo Dante em De Monarchia, a atribuição ao homem de dois fins últimos: um sobrenatural e o outro natural, propiciando o poder espiritual a consecução do fim sobrenatural (a salvação das almas individuais), e o temporal a consecução do fim natural (a felicidade terrena possível, com o atendimento das necessidades materiais e a formação das virtudes morais do homem no âmbito da pólis). Donde as perguntas: antes de tudo, convém aos entes ter um fim último? Se sim, é possível um mesmo ente ter dois fins últimos? Se não, qual o único fim último do homem e qual o caráter de seus demais fins?

Responde a isso Santo Tomás de Aquino, na Suma Teológica, ao longo dos oito artigos da questão 1 (De ultimo fine hominis, O fim último do homem) da Ia-IIae. Acompanhemos-lhe a questão passo a passo, imbuindo-nos da precisão quase matemática do Aquinate na demonstração, para pisarmos terreno de todo seguro ao estudar o que diz infalível e imperiosamente o magistério da Igreja das relações entre poder civil e poder eclesiástico.

1) Procedendo sempre ordenadamente, pergunta-se antes de tudo o Angélico “utrum homini conveniat agere propter finem” (se convém ao homem agir em vista de um fim). E parece que não. Mas, entre as ações realizadas pelo homem, “só podem considerar-se propriamente humanas aquelas que são próprias do homem enquanto homem” (tudo quanto vier entre aspas será, salvo advertência, tradução do corpus do artigo). Com efeito, o fato de ser dono de seus atos é o que diferencia o homem das criaturas irracionais, razão por que só aquelas mesmas ações de que ele é senhor podem propriamente chamar-se humanas. Pois bem, é por ser dotado de razão e vontade que tem o homem domínio sobre seus atos, e a faculdade ou potência conjunta de razão e vontade é o que se chama livre-arbítrio. Se pois as ações do homem que não procedem de uma vontade deliberada e instruída pela razão podem ser ditas, precisamente, do homem, não podem, porém, pelo já dito — ou seja, por não pertencerem ao homem enquanto homem —, chamar-se com propriedade humanas. Ora, “todas as ações que procedem de uma potência são causadas por ela em razão de seu objeto”, e o objeto da vontade não é senão o bem e o fim. “Logo, é necessário que todas as ações humanas tenham em vista um fim.”

2) É preciso agora saber “utrum agere propter finem sit proprium rationalis naturae” (se agir em vista de um fim é próprio [apenas] da natureza racional). E parece que sim. Sucede, porém, que todo e qualquer agente obra necessariamente em vista de um fim. Com efeito, numa seqüência de causas ordenadas entre si, não se pode suprimir a primeira sem que se suprimam igualmente as demais. Ora, “a primeira de todas as causas é a final”. Assim é porque, se a matéria não adquire a forma sem a moção de um agente (uma vez que nada pode por si mesmo passar da potência ao ato), esse mesmo agente obra necessariamente em vista de um fim: porque, se qualquer agente não visasse a algo concreto, não faria uma coisa em vez de outra. Ou seja, faria qualquer coisa, o que não é próprio de um agente. O agente sempre tende a determinado efeito, o que supõe esteja ele determinado a algo certo: e isso “tem razão de fim”. Tal determinação se dá, nos entes racionais, pelo apetite racional que chamamos vontade, enquanto nos demais entes, os irracionais, se dá mediante uma inclinação natural ou apetite natural. Com efeito, um ente pode tender de dois modos a um fim: em primeiro lugar, quando se move por si mesmo a ele, como faz o homem; e, em segundo lugar, quando é dirigido ao fim por outro, como se dá não só com uma pedra atirada por alguém contra algo, mas também com os animais irracionais. Sim, porque, se os entes racionais se dirigem por si mesmos ao fim em razão do senhorio sobre seus atos que o livre-arbítrio lhes proporciona, os animais irracionais não podem tender ao fim senão por um apetite natural, que, dada esta mesma naturalidade e aquela mesma irracionalidade, não pode ser senão como um instrumento; o que implica serem os entes irracionais movidos não por si mesmos, mas por um agente que se utilize de tal instrumento. Com efeito, os entes irracionais são incapazes da noção de fim, razão por que “toda a natureza irracional está para Deus assim como um instrumento está para um agente principal”. É verdade que os animais irracionais tendem ao fim por um apetite natural resultante de certa apreensão estimativa da realidade, enquanto os demais entes irracionais a ele se dirigem privados de todo e qualquer conhecimento (mesmo estimativo) dele. Mas todos os entes irracionais, como explicado, são atuados ou conduzidos ao fim por outro, tendo razão de instrumento para o agente principal que é Deus. Logo, tão-somente os entes dotados de razão agem e tendem por si mesmos ao fim.

3) Cabe agora perguntar “utrum actus hominis recipiant speciem ex fine” (se os atos do homem recebem a espécie do fim). E parece que não. Sucede porém que os entes compostos de matéria e forma se constituem em suas espécies por suas respectivas formas, e isso justamente porque as coisas em geral se constituem em suas espécies não pela potência, mas pelo ato. Ora, semelhantemente se deve pensar do movimento. Com efeito, se o movimento se divide, de algum modo, em ação e paixão, ambas recebem sua espécie do ato: aquela, do ato que é princípio do agir; esta, do ato que é termo do próprio movimento. Assim, “a ação de esquentar nada mais é que uma moção procedente do calor, e sua paixão nada mais é que um movimento para o calor”, manifestando-se assim a razão da espécie. Ora, também os atos humanos recebem do fim sua espécie, consideremo-los ou como ativos ou como passivos, porque, com efeito, o homem ao mesmo tempo se move e é movido por si mesmo. Mas, como já visto, os atos humanos só se podem dizer propriamente humanos quando procedem da vontade deliberada, que, como igualmente visto, tem por objeto o bem e o fim. Logo, o fim é não só necessariamente “o princípio dos atos humanos enquanto são humanos”, mas também seu termo, “porque aquilo em que terminam os atos humanos é o que a vontade busca como fim”. É assim que os atos morais recebem propriamente sua espécie do fim, razão por que são o mesmo os atos morais e os atos humanos.

4) Corolário fundamental, a que adequadamente não se poderia seguir senão a pergunta de “utrum sit aliquis ultimus finis humanae vitae” (se há um fim último da vida humana). E parece que não. Sucede porém que, assim como com relação à série de motores ou à de causas eficientes, “é impossível proceder ao infinito nos fins”. Com efeito, se assim se procedesse com relação às causas motoras, deixaria de haver um primeiro motor, e, na ausência deste, os demais motores não poderiam mover, uma vez que recebem o movimento justamente do primeiro motor. Similarmente quanto às coisas que se ordenam umas às outras como a um fim: se se suprimisse a primeira, desapareceriam obrigatoriamente todas as demais. Ora, nos fins distinguem-se duas ordens: a da intenção e a da execução, e em ambas as ordens deve haver algo que seja primeiro. “O primeiro na ordem da intenção é como o princípio que move o apetite”, razão por que, se se suprime o princípio, ou seja, se se suprime o motor, se imobiliza o apetite. Por sua vez, é no que é princípio na ordem da execução que tem começo a operação, razão por que, se se elimina este princípio, tampouco se pode começar a agir. “O princípio da intenção é o último fim; o princípio da execução é a primeira das coisas que se ordenam ao fim.” Como se vê, em ambos os casos é impossível proceder ao infinito, porque, se não houvesse último fim, não se apeteceria nada nem, por conseguinte, se levaria a efeito ação alguma; e, pelo mesmo motivo, tampouco a intenção do agente encontraria termo ou repouso. Insista-se: dessa maneira, não haveria ação alguma nem, pois, se chegaria a nenhuma resolução — proceder-se-ia assim, precisamente, ao infinito. (Note-se, todavia, que se trata aqui das coisas que se ordenam entre si essencialmente ou per se. As que se ordenam entre si per accidens comportam, sim, infinitude, precisamente porque as causas que são per accidens supõem indeterminação. Por isso, considerada essa indeterminação, pode haver infinitude per accidens não só nas coisas que se ordenam aos fins, mas nos próprios fins.)

(Continua. Já não é possível, porém, com o exposto até aqui, divisar a inanidade de tentar atribuir a Santo Tomás a autoria da tese dos dois fins últimos do homem e, pois, da não-ordenação essencial do poder civil ao eclesiástico?)

P.S.: Um leitor deste blog sugeriu-me escrevesse uma série sobre as relações entre as ciências (no sentido moderno) e a filosofia. Escrevê-la-ei, com muito gosto, assim que terminar este longo artigo sobre “Corte-e-costura, etc.”. Esclareço, porém, desde já: a série será não só sobre as relações entre as ciências e a filosofia, mas também sobre as relações entre elas e a teologia. Por outro lado, a série sobre sedevacantismo começada aqui, a estou desenvolvendo e terminando no site do Priorado da FSSPX de São Paulo (
http://www.fsspx-brasil.com.br/index.htm). Os sedevacantistas que afirmam refutar o que digo sobre sua doutrina devem dirigir-se a essa página para conhecê-lo, progressivamente, na íntegra. Acaba-se de refutar, ali, a tese sedevacantista fundada no pensamento de Pacheco Salles, e na próxima semana começa a refutar-se a Tese de Cassiciacum. Fica para o final a tese dos sedevacantistas que se fundam na Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV. Segue-se com essa ordem a ordem de complexidade decrescente das diversas correntes do sedevacantismo.