sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Corte-e-costura e ainda a Encíclica Caritas in veritate (III)

Carlos Nougué
“Louvai ao Senhor do alto dos céus, louvai-O nas alturas.
Louvai-O, todos os seus anjos; louvai-O, todos os seus exércitos.
Louvai-O, sol e lua; louvai-O, todas as estrelas e a luz.
Louvai-O, céus dos céus, e todas as águas que estão sobre os céus.
Louvai o nome do Senhor. Porque Ele disse e tudo foi feito; ordenou e tudo foi criado.
Estabeleceu-o para sempre, e pelos séculos dos séculos; impôs uma lei que não passará.
Louvai ao Senhor, vós da terra, monstros marinhos e todos os abismos do mar.
Fogo e granizo, neve e gelo, ventos de tempestades que obedecem à sua palavra;
Montes e colinas, árvores frutíferas e todos os cedros;
Animais selvagens e todos os rebanhos, serpentes e pássaros;
Reis da terra e todos os povos, príncipes e todos os juízes da terra;
Jovens e virgens, velhos e meninos, louvai o nome do Senhor!
Sua glória está acima do céu e da terra [...].”

Assim reza o Salmo 148. E semelhantemente rezam outros Salmos, como o 2:

“Por que se agitam as nações, e tramam em vão os povos?
Os reis da terra se levantam, conspiram os príncipes contra o Senhor e seu Cristo:
‘Vamos, quebremos seus grilhões, sacudamos de nós o seu jugo!’
Aquele que está sentado no céu [...] lhes falará na sua cólera, os espantará no seu furor:
‘Fui eu que o sagrei meu rei em Sião, minha montanha santa.’
[...]
E agora, ó reis, compreendei; juízes da terra, instruí-vos.
Servi ao Senhor com respeito, beijai-lhe os pés com tremor [...].”

E o 7:

“[...] Despertai, ó Deus, para o julgamento que convocas.
Que a assembléia das nações Vos circunde, e sobre elas, o Vosso trono.
O Senhor vai julgar os povos [...].”

E o 9, I:

“Abatestes [ó Deus] os pagãos, ao ímpio destruístes, apagastes o seu nome para sempre.
[...]
Demolistes, suas cidades são ruínas eternas.
Mas eis que o Senhor está para sempre sentado, armou seu trono para o julgamento.
Pois julgará o mundo com eqüidade, pronunciará sobre as nações sentença justa [...].”

E ainda o 9, II:

“[...] Fazei tombar sobre eles [os pagãos], Senhor, o vosso terror; compreendam os povos que não passam de homens.
[...]
O Senhor é rei para sempre; desaparecei da terra, pagãos! [...]”

Poder-se-iam multiplicar aqui, quase inumeravelmente, as citações do Antigo Testamento em que Deus aparece como Rei e Juiz das nações e dos povos, e estes, e seus reis, e seus príncipes, e seus próprios juízes como devendo prestar-Lhe, a Seus pés, a devida glória e louvor.

Ora, Nosso Senhor Jesus Cristo, a) por direito de nascimento eterno e de consubstancialidade divina (“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feiras por Ele, e nada do que foi feito foi feito sem Ele” — Jo., I, 1-2), b) por descendência carnal de Davi e c) por direito de conquista, resgate e redenção mediante sua própria Paixão e Morte na Cruz, herdou a suprema Realeza e Magistratura sobre toda a terra e suas nações, e seus povos, e seus reis, e seus príncipes, e seus juízes. Disse-o Ele mesmo, ressurecto, num monte da Galiléia, a alguns Apóstolos que duvidavam: “Omnia potestas data est mihi in cœlo et in terra (Foi-me dado todo o poder no céu e na terra)” (Mat., XXVIII, 18).

Com efeito, ser rei é ter ordenados a si todos os seus súditos como a seu bem comum, assim como ser general é ter ordenados a si todos os seus subordinados como a seu bem comum. Como dizia Aristóteles em passagem luminosa, “Devemos considerar de que modo a realidade do universo possui o bom e o ótimo, se como algo separado em si e por si, ou como a ordem, ou ainda de ambos os modos, como acontece com um exército. De fato, o bem do exército está na ordem, mas também está no general; antes, mais neste que naquela, porque o general não existe em virtude da ordem, mas a ordem em virtude do general. Todas as coisas estão de certo modo ordenadas em conjunto, mas nem todas do mesmo modo: peixes, aves, plantas; e o ordenamento não ocorre de modo que uma coisa não tenha relação com outra, mas de modo que haja algo de comum [entre elas]. De fato, todas as coisas são coordenadas a um único fim. Assim, numa casa, aos homens livres não cabe agir ao acaso; ao contrário, todas ou quase todas as suas ações são ordenadas [...]. Quero dizer que todas as coisas, necessariamente, tendem a distinguir-se; mas, por outros aspectos, todas tendem para o todo” (Metafísica, Λ 10, 1075 a 11-25).

(Que terror não haverá de causar essa passagem a um liberal! “Como assim”, perguntar-se-á ele, sentindo abrir-se-lhe sob os pés o chão, tão aparentemente sólido, do bem comum posto a serviço do indivíduo humano? Pois tal terror é o mesmo que sente o católico liberal ou humanista ao ler tudo quanto nas Sagradas Escrituras, no magistério da Igreja e na obra de Santo Tomás diz algo semelhante, mas de ainda maior razão formal, das relações entre Cristo Rei e os estados. E é por causa desse terror que ele entra a cortar e recortar tanto as Sagradas Escrituras quanto o magistério da Igreja e a obra do Aquinate, a fim de com os retalhos compor uma colcha com que cobrir-se para não fitar a luz deslumbrante da verdade. E é por isso que, de nossa parte, estamos neste artigo a citar longamente as Sagradas Escrituras, o magistério da Igreja e a obra do Angélico, até para ver se, com doses maciças desta luz, ao modo de vacina, algum católico liberal crie suficientes anticorpos e se cure de sua cegueira voluntária. Antes porém de prosseguir, diga-se: como é possível um liberal de qualquer matiz dizer-se aristotélico ou platônico? Cegar-se-á ele no momento de pôr os olhos sobre a passagem aristotélica acima transcrita ou sobre tantas passagens platônicas de mesmo teor na República como nas Leis? Pois, como se vê, não só as Sagradas Escrituras, o magistério da Igreja e Santo Tomás são objeto de corte e costura; também o é Aristóteles, e também o é Platão. Não por nada, aliás, foram Platão e Aristóteles os dois filósofos pagãos que, respectivamente, Santo Agostinho e Santo Tomás instrumentalizaram em ordem às suas respectivas Teologias: é que, certamente com o auxílio de graças atuais segundo o desenho histórico da Divina Providência, tinham aqueles dois gregos aprendido a pensar, e a tal ponto, que concluíram com certeza que o bem comum não é um butim por partilhar entre indivíduos ávidos de “liberdade” e empanzinados de amor-próprio.)

Insurge-se, porém, o católico liberal ou humanista, brandindo, como derradeiro e desesperado recurso, duas passagens dos Evangelhos que lhe parecem, enfim, dar-lhe toda a razão:

a) “Dai a César”, diz Nosso Senhor mesmo, “o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mat., XX, 21);

b) “Meu reino não é deste mundo”, diz o Redentor a Pilatos; “se meu reino fosse deste mundo, certamente os meus ministros se haviam de esforçar para que eu não fosse entregue aos judeus; mas meu reino”, insiste, “não é daqui” (Jo., XVIII, 36).

Ou seja, em meio a seu afã recortador, quer crer o nosso católico humanista que com essas duas passagens se firmam duas verdades de fulcro liberal:

a) Há dois poderes, um sobrenatural (ou espiritual, representado pela Igreja) e outro temporal (representado pelos poderes terrenos), e não há ordenação essencial deste àquele, havendo-a no máximo acidental ou indireta. Em outras palavras: Deus e César, cada qual em seu âmbito e cada qual com seu fim, como o afirma Dante em seu De Monarchia, e como o afirmarão tantos humanistas, tantos católicos mais ou menos contaminados de humanismo e liberalismo e até (por razões que se explicarão no devido momento, e sempre contraditoriamente com seus próprios princípios) destacados católicos antiliberais: no primeiro grupo, por exemplo, Marsílio de Pádua; no segundo, também por exemplo, Francisco de Vitória, Francisco Suárez, Jacques Maritain, Louis Lachance, Étienne Gilson; no terceiro, ainda por exemplo, o grande Cardeal Billot, o mesmo que renunciou ao cardinalato após a condenação de Maurras e da Action Française por Roma.

b) O reino de Cristo é, segundo as próprias palavras de Nosso Senhor, puramente sobrenatural — ou espiritual, exercendo-se sobretudo no íntimo da alma de cada fiel. Ao longo de muitos séculos de investida do catolicismo humanista-liberal, tem servido este fundamento para alicerçar a “verdade” anterior, porque, com efeito, se o fim último de cada homem é a beatitude da visão face a face de Deus, então bastaria, para tal efeito, que o reino de Cristo se exerça no domínio das almas individuais.

Sucede, todavia, que antes de tudo o negam as próprias Escrituras. Com efeito, se assim não fosse, por que teria dito Cristo que lhe “foi dado todo o poder no céu e na terra” e não “todo o poder no céu e nas almas humanas”? E por que o mesmo Cristo nos teria mandado rezar “venha a nós o vosso reino, assim na terra como no céu”, e não “venha a nós o vosso reino, assim nas almas como no céu”? Naturalmente, a terra inclui aqui as almas humanas. Mas, se só delas se tratasse, por que o uso de tal generalidade local?

Ademais, após Nosso Senhor dizer que seu reino “não é deste mundo”, retruca-Lhe Pilatos: “Ergo, rex es tu (Logo, tu és rei).” Ao que responde Jesus: “Tu o dizes, sou rei. Nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade; todo aquele que está pela verdade escuta a minha voz” (Jo., XVIII, 37). Ora, com esse “nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade” Jesus reclama “não tanto o direito de soberania divina da segunda pessoa da Santíssima Trindade” (Jean Ousset, Pour qu’Il regne, Paris, La Cité Catholique, 1959); trata-se, antes, do direito soberano descrito por Daniel em sua visão: “Porquanto um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado; a soberania repousa sobre seus ombros, e ele se chama: Conselheiro Admirável, Deus Forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz. Seu império se estenderá cada vez mais, e a paz não terá fim; sentar-se-á sobre o trono de Davi e sobre seu reino, para o firmar e fortalecer pelo direito e pela justiça, desde agora e para sempre; fará isto o zelo do Senhor dos exércitos” (Is., IX, 6-7).

O mesmo direito de soberania visto, ainda mais claramente, por Daniel: “Eu estava, pois, observando estas coisas durante uma visão noturna, e eis que vi alguém, que parecia o Filho do homem, vir sobre as nuvens do céu: ele avançou para o Ancião, diante de quem foi conduzido. E este lhe deu poder, glória e reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram. Seu domínio é um domínio eterno que não passará, e seu reino jamais será destruído” (Dan., VII, 13-14).

Com efeito, como escreve São Boaventura (Serm. I in dom. Palm. IX, 243a.), “é enquanto homem que o Salvador foi magnificado acima de todos os reis da terra por causa da assunção de sua Humanidade na unidade de uma pessoa divina”. “A alma de Cristo”, diz por seu lado Santo Tomás, “é alma de rei; ela rege todos os entes, porque a união hipostática a coloca acima de toda e qualquer criatura.”

Mais adiante, após a demonstração da doutrina do magistério a este respeito, veremos a íntegra doutrina tomista a respeito. Antes de tudo, porém, ainda havemos de mostrar a fragilidade da tese adversária mediante exaustiva demonstração escriturística (o que é absolutamente necessário, dado nos defrontarmos com uma ilícita operação de recorte de doutrina, assim como é absolutamente necessário mostrar a verdadeira doutrina católica sobre a relação entre poder espiritual e poder temporal para enfim poder arrostar a questão do governo mundial suscitada pela encíclica Caritas in veritate; questão esta que, obviamente, depende da resolução daquela).

Diga-se, no entanto, desde já:

a) É impreciso afirmar, sem mais, que o fim último do homem seja a beatitude ou visão face a face de Deus. Como diz o Padre Calderón, deve-se “esclarecer que o fim último em sentido próprio é Deus em si mismo, e que ‘a beatitude se diz fim último no sentido em que a obtenção do fim se chama fim’” (I-II, q. 3, a. 1, ad 3). Ora, esta imprecisão aparentemente pequena tem grande implicação na visão católica humanista que nos ocupa. É baseados nela que mesmo os católicos humanistas mais próximos da verdadeira doutrina da Igreja esquecem que toda a nossa vida deve servir antes de tudo à glória de Deus e não à nossa própria salvação, sendo esta salvação propriamente conseqüência daquele render glória a Cristo Rei de toda a nossa alma e coração.

b) O reino de Cristo, assim na terra como no céu, assim nas almas deste vale de lágrimas como nos corpos gloriosos da Jerusalém Celeste, é o reino da Verdade, como o diz o mesmo Nosso Senhor a Pilatos. Ora, embora a falsidade comporte graus, não assim a verdade; ou é integral, ou não o é. Logo, ou o reino da Verdade será total, ou não o será.

c) Logo, o reino de Cristo de fato não é deste mundo, mas se exerce sobre este mundo.

d) Mais ainda: o Reino de Cristo é a Igreja (“Regnum Christi, quod est Ecclesia”, Catecismo do Concílio de Trento, IV part., cap. II, § 73). Já o dissera Tobias em sua profecia sobre Jerusalém, que é figura da Igreja: “Tu brilharás com uma refulgente luz; e todas as extremidades da terra se prostrarão diante de ti. As nações virão a ti de longe, e, trazendo-te dádivas, adorarão em ti o Senhor, e terão a tua terra por santa. [...] Serão malditos os que te desprezarem, e serão condenados todos os que blasfemarem contra ti; e serão benditos os que te edificarem” (Tob., XIII, 13-16).

e) E mais ainda: porque, como veremos, a Cristandade e suas cidades são parte da Igreja, Jerusalém também é figura sua. E lembremo-nos de que foi sobre uma Jerusalém apóstata e votada à ruína que chorou seu mesmo Rei.