sábado, 3 de maio de 2014

Eu, o Lobão e o padre marombeiro, numa noite fria em Sampa




Sidney Silveira

HÁ MAIS DE TRÊS ANOS fui convidado a participar do programa do Lobão na MTV. O assunto era "castidade" e "celibato", e a coisa havia sido claramente montada para dar uma paulada na Igreja, pois o mote daquela sinfonia de desacertos era nada menos que o seguinte: a castidade e o celibato são responsáveis pelos escândalos de pedofilia na Igreja? 

Ao ser contactado pela produção do programa, a princípio respondi que não iria. Em verdade, seria necessário fazer tantas ponderações prévias para estabelecer os tópicos da questão, que o formato da coisa (com seis pessoas a falar quase ao mesmo tempo, tendo o Lobão como mediador) não funcionaria, se porventura a intenção fosse mesmo realizar algo com um mínimo de seriedade. Na ocasião, como eu dissesse que, antes de tudo, seria importante distinguir entre "castidade" e "celibato", a começar pelo fato de que nem toda castidade é celibatária e nem todo celibato é casto, o jornalista pediu-me então que lhe enviasse um e-mail explicando estas precisões teológicas.

Como não sei fazer diferente, escrevi um longo texto no qual elencava os princípios do problema. O rapaz adorou e a insistência da produção redobrou, acabando por fazer-me ceder. Pelo que logo entendi, haveria três pessoas de um lado, contrárias ao celibato sacerdotal, e três de outro, favoráveis a ele. Até aquele momento, não havia um corajoso católico para falar bem da doutrina da Igreja, segundo o relato do jornalista da produção. Depois, conseguiram chamar o padre Reginaldo Manzotti e uma bióloga cuja presença ali é um inexpugnável mistério para mim, ainda hoje.

Ao encontrar-me com o padre antes do programa, numa espécie de ato reflexo — quem sabe instinto de defesa? — ele deixou escapar um esgar de susto ou de nojo ao ouvir da minha boca que eu estudava Santo Tomás de Aquino e estaria ao seu lado, diante das câmeras. Na van, o caminho até o estúdio foi tenso — com o sacerdote trêfego a consultar uma papelada e a ruminar entredentes estatísticas mil, a uma de suas duas assistentes paroquiais. Eu apenas observava em silêncio aquele singular espetáculo. Ainda na van, recebi do perfumadíssimo clérigo um livro de auto-ajuda de sua lavra, com grande modéstia intitulado "10 respostas que vão mudar sua vida", e lhe dei alguns livros da Sétimo Selo, entre os quais o "Tractatus de Substantiis Separatis" (Sobre os Anjos), de Santo Tomás, metafísica de dar em cabeça de doido. Ele guardou-o numa pasta sem nem olhar a capa ou dizer "obrigado", pois parecia nervosamente entretido em decorar uma fala, como fazem alguns atores de teatro antes de entrar em cena.

A primeira pergunta do Lobão — entremeada duma chulice propedêutica que desconcertou o padre — culminava na seguinte indagação: "A Igreja sempre disse que o homossexualismo é antinatural. Ora, o celibato também não é?". O padre respondeu que "não" e logo mudou de assunto, pois começou a citar os números que memorizara a caminho do estúdio. De imediato, abaixei a cabeça e vi que estava ao lado do mais tétrico "fogo amigo", pois a formação do sacerdote em teologia era análoga à minha em entomologia. Pensei: "Ele devia dizer que o celibato é, sim, contrário à natureza, mas que há a graça, que supre as deficiências da natureza, sobretudo quando se trata de 'graças de estado', etc." Acontece que, para um modernista de quatro costados, Deus é na melhor das hipóteses um detalhe conceptual, e colocá-lo na jogada, sobretudo num programa de televisão com boa audiência, torna-se deveras incômodo e perigoso.

Aquele inaudito espetáculo tinha quatro módulos. Do outro lado do mediador Lobão, havia uma ex-puta que no passado saíra com padres para furunfar remuneradamente, uma sexóloga e o jornalista Reynaldo Azevedo. O engraçado é que, após deixarmos o estúdio, a ex-prostituta disse-me: "Pôxa, fiz programa com sacerdotes muito bons", ao que lhe respondi que eles podiam ser muito bons, quiçá ótimos, magníficos ou então doutorados na elevada ciência dos movimentos pélvicos ritmados, mas não o eram enquanto sacerdotes — piririm-pororom, etc. e tal. A moça, mal-disfarçada aspirante a Bruna Surfistinha, dizia-se escritora porém sem se vexar de errar quase todas as concordâncias verbais, e também nominais, o que fazia do seu discurso um emaranhado de vagidos desconexos. Diante das câmeras, o problema mais aflitivo da jovem era unir com resquícios de lógica o sujeito ao predicado. Se, como disse Cristo com todas as letras, as prostitutas precederão os fariseus no reino dos céus, aquela ex-profissional do sereno tem a seu favor o dado benfazejamente corroborante da ignorância invencível. Gente fina, com certeza.

Fiz observações pontuais ao longo do programa e me mantive calado em várias ocasiões, para não voar no pescoço do sacerdote-cantor-escritor-marombeiro, que a certa altura, entre outras coisas, falou mal da missa de sempre e elogiou os seminários atuais naquilo que eles têm de mais problemático. Como, bem ou mal, estávamos ali para defender o mesmo ponto, eu não quis discutir com ele. A minha única provocação foi quando — olhando-o de soslaio — afirmei que os sacerdotes contam com o auxílio divino para se manterem castos, ao que o homem fez um muxoxo como quem se persigna diante do capeta, mas eu tive tempo de completar a linha de raciocínio, apesar disso. A propósito, o tal auxílio a que eu tentava referir-me é a graça. Graça? Que bobagem, Sidney...

O curioso é que, num canal voltado ao público jovem, e num programa montado para tripudiar da imagem da Igreja, a pergunta "você é a favor ou contra o celibato?" teve como resultado uma vitória expressiva para quem estava a favor, o que parece ter desconcertado um pouco os que bolaram a coisa. Eu saí satisfeito, embora não tivesse tido falta de educação suficiente (já que todos falavam ao mesmo tempo) nem oportunidade de explicar ao Reynaldo Azevedo, que estava do outro lado, algo simples: o fato de uma medida de governança da Igreja não ser dogma, caso do celibato, não significa que não se trate de doutrina com base escriturística. Afinal, se as medidas pastorais multisseculares da Igreja não tivessem fonte doutrinária, o governo eclesiástico seria tirânico, pois a tirania não é outra coisa senão a imposição de práticas sem qualquer referência a teorias verdadeiras ou pelo menos plausíveis. O tirano manda sem dar razões, e quem tem juízo obedeça.

Lamentei sinceramente não estar desacompanhado, pois o resultado seria bem melhor se eu não me visse compelido ao silêncio por conta das coisas que dizia o padre — muito elogiado por todos, menos por quem sabe o que é a Igreja Católica. Realmente, naquele formato não havia jeito de fazer melhor.

A primeira parte do programa eu postei no Youtube. O restante estava no site da MTV, mas parece que retiraram. Uma pena.

Por fim, digo que este breve relato teve o intuito de esclarecer a vários amigos católicos que recentemente me escreveram os bastidores daquele pitoresco momento televisivo. Achei que poderia compartilhar com mais pessoas.

Apesar de tudo, o resultado foi bom.

Quem se interessar, pode ver essa primeira parte do programa aqui:


Abraço a todos!