quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Relações Igreja-Estado (IX): a política inimiga da verdade

Antígona e o funeral de Polinices


Sidney Silveira
Em Platão, Paideia e Politeia são indissociáveis. O grande filósofo grego parte da premissa de que não pode haver civilização, em sentido pleno, sem uma pedagogia realista que alcance todos os âmbitos da política — aqui entendida, antimodernamente, não como um simples jogo de poder entre homens corruptos[1]
, conforme acontece a partir de Maquiavel, mas como o conjunto das relações que propiciam à Cidade a preservação do bem comum. Sem este último, qualquer teoria política não passará de uma quimera a serviço da exacerbação dos conflitos entre indivíduos e grupos, da degradação dos costumes, da convulsão social e suas conseqüentes revoluções e contra-revoluções. Na prática, nesta Cidade em que o bem comum inexiste, a política será uma aberrante autocontradição: uma política... sem fins políticos! A menos que usemos o termo “política” com analogia de atribuição, aplicando-o elasticamente às vontades individuais. Estamos, pois, na antipólis por excelência, no enevoado e aporético submundo das idéias liberais e de seu grosseiro individualismo.


O devaneio maior de todos os tipos de liberalismo está em conceber a política, na melhor das hipóteses, como uma espécie de mediadora dos interesses conflitantes dos indivíduos, não mais que isso. Ocorre que, nesta situação, não havendo uma Verdade de ordem superior que dirima as questões fundamentais e imprima o seu caráter à sociedade, o crescimento em escala geométrica dos conflitos acabará por transformar a própria política na geradora da desordem — até o ponto de consagrar em lei os maiores absurdos, simplesmente por ser a presumível opinião da maioria. Num ambiente insalubre e pluralista como este, a política não terá nenhum vínculo, ainda que acidental, com o conceito de verdade. Ao contrário: será a política orientada pela opinião de uma maioria dispersa e confusa, manipulada por grupos organizados e economicamente poderosos, tendo por “bucha de canhão” intelectuais que se vendem por meia dúzia de patacas.


Por ser, em princípio, alheia ao conceito de verdade, essa política estimulará a partidarização e os sectarismos, até o ponto de desintegrar totalmente a ordem social. Assim, o que antes era apenas uma espécie de “neutralidade” em relação aos valores fundamentais distintivos da condição humana — e, por conseguinte, das precondições necessárias para a vida em sociedade —, acabará mostrando a sua verdadeira face: tal regime político se transformará, no transcurso de suas vicissitudes, no maior inimigo da verdade, favorecendo a ação dos demagogos que adulam a multidão (segundo Platão, obcecados pelo “amor do povo” [Demou Eros]), com o intuito de alcançar o poder e nele manter-se a qualquer custo. Quando se chega a este ponto, a aceleração centrípeta das mais contraditórias forças não terá mais como ser contida, a não ser por interveniência direta de Deus.


Quando, pois, o liberal católico defende a absoluta separação entre as ordens material-política e espiritual-religiosa, ou, em outras palavras, a separação entre o Estado e a Igreja, está defendendo a idéia de uma Cidade sem nenhuma Paideia que a conforme e preserve a sua unidade. E isto sem se dar conta de que tal proposta é absurda e irrealizável, pois não há política onde não há ordem, e não pode haver ordem onde a verdade está absolutamente ausente das discussões da comunidade à qual cabe governar e legislar — dado que emerge, apenas, como truque retórico em ocasiões de campanha, para ludibriar os mais crédulos, ou então quando a chamada opinião pública se manifesta. Mas ainda mais do que isto: o católico liberal “esquece” que essa a Verdade que ele quer ver fora de qualquer discussão pública é a fonte de todas as verdades. E é exatamente aquela que ele diz professar, a qual inclui a Cristo-Rei como senhor absoluto de todos os poderes, de acordo com a Sagrada Escritura e com o Magistério bimilenar da Igreja.


Não é como “prova” contra o católico liberal que aduzo aqui o Syllabus de Pio IX, o qual, entre outras coisas, condena a seguinte proposição (nº 55): “A Igreja deve estar separada do Estado, e o Estado da Igreja”. E nem comentarei os principais trechos de Encíclicas como a Quanto Conficiamur, do mesmo Pio IX, Una Sanctam, de Bonifácio VIII, Quas Primas, de Pio XI, ou ainda a longínqua Carta do Papa Gelásio I ao Imperador Atanásio, etc. Isto porque muitos hoje na Igreja propõem, à moda de Dante e Thomas Moore, esta separação como se fora “canônica”, contrariando milênios de Magistério. Portanto, não partimos das mesmas premissas e, por isto, estes documentos são aqui citados não como argumento de autoridade (a propósito legítima), mas apenas para lembrar-nos e remeter-nos a uma verdade: o poder espiritual pode e deve julgar o material, e, se este último se extravia — e as autoridades que poderiam contê-lo se omitem —, cabe a nós a obediência ao princípio superior, pois leis iníquas não são propriamente leis e, por isto, não estamos obrigados a obedecê-las ou lhes dar a nossa anuência. Cabe a nós uma santa desobediência, semelhante à de Antígona, que na famosa peça do mesmo nome é condenada à morte por violar uma ordem do rei Creonte, de Tebas, para não infringir um preceito intocável, divino, superior ao poder temporal.


Como afirma brilhantemente o meu querido amigo Carlos Nougué, na apresentação ao livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás (citado em nota de rodapé no presente texto), “trata-se, em verdade, da encruzilhada em que desde sempre se viu o homem: ou a permanente exposição a uma tirania brotada de suas próprias debilidades e limitações, ou a submissão a uma ordem maior, objetiva, fonte perene do bem e do justo. Como já o dizia Antígona”.


Em resumo: ou a política neste mundo se orienta pela fonte divina, inexaurível, do bem e da verdade, e caminha positivamente apesar de todas as imperfeições humanas (e, acrescentaríamos nós, cristãos, da nódoa do pecado original), ou se transformará num espectro de hediondez sem igual, fazendo da maldade a lei.

Tertium non datur.


Em tempo: Observe-se que não cito aqui o conceito de “liberdade”, pois uma sociedade saudável não pode ter a liberdade política como finalidade, mas apenas como instrumento, meio, veículo para atualização dos atos propriamente humanos.
Em tempo2: Nada mais absurdo, para um liberal, do que o seguinte relato do historiador Máximo Valério: os romanos preferiam ser pobres num império rico, a ser ricos num império pobre. E o preferiam justamente porque o bem comum da Cidade era para eles algo superior aos bens individuais. Quando lemos isto nos advém a certeza de que a política, em seu sentido verdadeiro, acabou. Morreu. Estiolou-se. Perdeu-se decisivamente quando o liberalismo ganhou o mundo e minou a idéia de bem comum, transformando-a numa espécie abstração irrealizável.

[1] No estupendo livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás, lembra-nos com muito acerto o filósofo Jorge Martínez Barrera que, depois de Maquiavel, abusou-se imensamente da categoria hermenêutica do “poder” para a análise das coisas políticas. Isto já se dá num horizonte em que a idéia de bem comum perdeu-se decisivamente. Com o liberalismo, tal perda estará totalmente sedimentada.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Breves apontamentos acerca dos carlistas

Carlistas marchando na guerra civil espanhola
sob a Cruz de Cristo.

Carlos Nougué
1) Ao seu modo tão próprio, dizia Chesterton ao perguntar-se sobre quem não levaria para uma ilha deserta: “Um pacifista.” Pois não são pacifistas os carlistas espanhóis, cujo movimento monarquista tem história multissecular, atravessa as fronteiras peninsulares e ibéricas, e conta com representantes intelectuais tão ilustres como os dois Gambras, pai e filho, já morto o primeiro, vivo o segundo. O primeiro, o grande filósofo Rafael Gambra, era um exemplo perfeito daquele tipo de homem tão tradicional na Espanha e tão decantado no D. Quixote de Cervantes: o homem das armas e das letras ― sempre a serviço, por suas armas e sua pena, da verdadeira religião e do verdadeiro estado católico. Com efeito, foi Rafael Gambra combatente carlista na guerra civil espanhola da década de 1930, na qual a luta (e vitória) dos católicos contra os comunistas e republicanos foi chamada “santa” pelo Papa Pio XII, e na qual, como nas principais lutas internas da Espanha nos últimos séculos, estiveram os carlistas na linha de frente dos que marchavam sob a Cruz de Cristo.

2) O programa político-econômico dos carlistas é irretocável de todos os ângulos, especialmente o da Realeza Social de Cristo, e profundamente tomista; e pode ser visto em diversos sites e blogs, entre os quais o do Círculo Cultural Antonio Molle Lazo (
http://mollelazo.blogspot.com/). Lê-se de imediato neste blog: “Contra todos os partidos; Contra a plutocracia; Contra o despotismo democrático; Por uma Monarquia Popular; etc.” Vasculhem este e outros lugares seus na Internet, e terão a confirmação do que dizemos. Uma ilha de verdade e pureza num mundo que se putrefaz do liberalismo e suas seqüelas.

3) Serão os carlistas, nos dias de hoje, uns novos Quixotes? Talvez. E eu mesmo não compartilho uma afirmação deles, a saber, que, contra todas as aparências, é certa a vitória final. Não é certa, e ao dizerem-no compartem os carlistas o erro de crer que a virtude teologal da Esperança se ordena infalivelmente às melhores coisas da terra, como a reconstrução da Cristandade; como sempre dizemos, ela se ordena própria e ultimamente às coisas dos Céus, e não raro esta ordenação implica a derrota ou o martírio na terra. Por outro lado, porém, estão os carlistas na mais católica das verdades, ao repetir, alto e bom som, que todo e qualquer regime político ou estará a serviço de Cristo, ou estará a serviço do demônio; que o estado católico ou é parte ou membro da Igreja, que é a própria Cidade de Deus, ou é vassalo do príncipe deste mundo. E não repeti-lo, mesmo num mundo tão apóstata quanto o atual, é contribuir com este mesmo e corrupto mundo.

4) É imensa a minha admiração pelos carlistas, e em muitos aspectos. Outro exemplo? O da arte, e especialmente a pintura. Sim, porque é carlista o maior pintor da atualidade (e um dos maiores de todos os tempos): Augusto Ferrer-Dalmau. Realista, Ferrer-Dalmau sobressai especialmente nas pinturas em que retrata os carlistas em combate, às quais imprime a força épico-católica de um Cantar de mio Cid (e do filme El Cid), por exemplo. Visitem o site sobre sua obra, no endereço
http://www.arteclasic.com/. O que verão falará por si. Mas façam especialmente o seguinte, no mesmo site: após entrarem, cliquem em “Ecuestre-Militar”; depois, no alto à direita, em “Película”; e admirem uma arte verdadeira, católica, viril, e atual. Arte carlista.

5) Para concluir estes breves apontamentos, como não falar do que acaba de acontecer ao ex-presidente uruguaio Juan María Bordaberry, monarquista, carlista, católico tradicionalista? Ele, cujo governo não foi responsável pela morte de nem um opositor político sequer, acaba de ser condenado, com mais de 80 anos, a décadas de cadeia, numa vingança infame do infame governo do ex-guerrilheiro tupamaro José Mujica, eleito democraticamente para a presidência do Uruguai. As razões? O ter, na década de 1970, dissolvido as Câmaras parlamentares para tirar o país do caos liberal-comunista e o ter entregado o poder aos militares, cuja maioria, maçônica, depois o traiu. Bordaberry já estava preso, sob as mesmas acusações, mas em prisão domiciliar por problemas de saúde. Agora, o novo “julgamento” (cujas aspas decorrem de sua iniqüidade) agravou-lhe enormemente a pena. Não sintamos uma lástima sentimentalóide, ao modo moderno, pela sorte que lhe cabe, até porque, respondendo a uma senhora que lhe dizia: “Vou rezar para que não seja condenado”, disse ele: “Reze antes para que eu suporte como um verdadeiro católico a prisão”. Tem a fibra do mártir, tem a fibra do carlista. Mas não nos calemos: devemos a este grande homem e a Cristo o denunciar a ignomínia que se comete contra ele ― e contra Ele.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Platão e a tirania política da "doxa"

Sidney Silveira
Num texto publicado no blog em junho de 2008, intitulado Raízes anti-religiosas do liberalismo, citávamos o insuspeito José Guilherme Merquior, que dizia o seguinte: o liberalismo só se tornou historicamente possível, no terreno ético-político, em razão do colapso da noção cristã de Summum Bonum, o que gerou o individualismo moderno com todas as suas venenosas conseqüências, e entre elas a mais funesta — a perda da idéia de bem comum político. No mesmo texto, afirmávamos que a desconfiança em todas as instâncias do poder, que os liberais clássicos herdaram de Locke e Montesquieu, nasce de sua visão monolítica do poder público como um lugar de desmandos, violência e coerção das liberdades individuais.

Em resumo, o contratualismo liberal é filho de uma visão deturpada da natureza humana, pois parte da pressuposição de que os interesses individuais são a única coisa capaz de fazer com que uma pessoa concorde com as leis; e que os homens sempre cometeriam injustiças para tirar proveito das situações, se tivessem oportunidade para tanto. Ora, esta é justamente uma das opiniões (doxai) que Platão coloca como responsáveis pela corrupção da sociedade. Na República, quando os jovens Glauco e Adimanto, oprimidos pelos erros que a pólis desordenada tenta impingir-lhes por todos os lados, pedem a Sócrates que esclareça alguns pontos fundamentais, são enumeradas as três principais doxai que precisam ser refutadas, para o bem de todos. E uma delas é, justamente, a idéia de que, quando os homens praticam a justiça, o fazem com relutância e por necessidade, e não porque a justiça seja um bem.

Prosseguindo a minha leitura de Ordem e História, de Eric Voegelin, com muita satisfação deparo-me com a afirmação de que o contratualismo — sem dúvida, um câncer liberal — é uma das doxai modernas. No caso de Thomas Hobbes, segundo Voegelin, o acordo contratual (social) foi motivado por uma dessas paixões cegantes que estão sempre por trás de todas as opiniões equivocadas: o medo da morte. Diz Voegelin que, em Hobbes, essa paixão específica levou-o à criação de uma ordem artificial em que o summum bonum universal não mais era experimentado como uma realidade aglutinadora e ordenadora. Nas palavras do pensador alemão, “o desaparecimento do summum bonum (...), ou seja, a perda do realissimum universal, deixou os mundos de sonhos dos indivíduos como a única realidade (grifo nosso!)”.

Ora, quando a sociedade chega ao ponto de conceber a lei como a mera resultante de um contrato social que já parte de uma noção errônea de justiça — e não como a expressão da reta razão orientada ao bem comum, que, por sua vez, se ordena ao Bem absoluto —, o abismo está consumado. Pelo seguinte: num ambiente como este, a doxa foi entronizada como valor político supremo, a pretexto de defender a liberdade dos indivíduos, e a justiça já não é vista como o que é — um bem em si mesmo —, mas apenas como o contrapeso das vantagens e desvantagens pessoais dos indivíduos ou de grupos.

Voegelin repete várias vezes uma idéia que para nós é cara: a deturpação da obra platônica pelos modernos intérpretes joga por terra a maravilhosa análise de Platão sobre os fenômenos causadores da desintegração social. E diríamos mais: tal miopia, em grande parte instilada por pensadores liberais, impossibilitou para muitos intelectuais a visão das etapas progressivas de dissolução política em uma sociedade — dos primeiros passos até o ponto em que toda a realidade é absorvida pela doxa e a verdade passa a ser considerada, apenas, com relação ao que for socialmente aceito; é o momento crucial e dramático em que doxa ganha foros de verdade (aletheia). Aqui, a realidade se deslocou tanto do seu epicentro ôntico que a verdade tornou-se uma pura e simples impossibilidade, no âmbito político. Estamos, pois, no patamar em que, como disse Voegelin, somente os devaneios individuais terão o respeito social — sendo, por isso, a realidade válida em si, o valor dos valores, sempre a pretexto de defesa da liberdade. Estamos, pois, no mundo liberal por excelência.

Ocorre que o mesmo pluralismo que dá aos indivíduos a falsa sensação de liberdade é o veneno que agirá sobre o DNA de uma sociedade, corrompendo-a até o ponto em que nenhuma virtude humana se tornará possível. Ou melhor: a única virtude a ser defendida, com unhas e dentes, será a de opinar. “Opino, ‘ergo sum’”, poderia muito bem ser o lema do homo democraticus contemporâneo, forjado nas oficinas liberais dos séculos XVIII, XIX e XX.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Avatar dos infernos



Sidney Silveira
A simples visão de três minutos de um “trailler” do filme Avatar bastou-me para verificar que se tratava de algo intrinsecamente anticristão, repleto de mensagens subliminares, além do péssimo gosto da “criação” daqueles ETs azuis de fisionomia humana deformada — com orelhas alongadas, narizes achatados, caninos vampirescamente pronunciados, corpos íncubos e súcubos, esguios e seminus, e rabos compridos como os de um diabo de Gustave Doré. A leitura posterior de algumas sinopses me horripilou, pois fui verificando o quanto a película foi meticulosamente pensada, até os mais ínfimos detalhes, para incutir símbolos anticristãos na cabeça das pobres almas que entram no cinema em busca de “entretenimento”, e saem intoxicadas, na imensa maioria das vezes sem o saber. Não à toa, reportagens do mundo inteiro vêm relatando que inúmeras pessoas mostram intenções suicidas após assistir Avatar. Encantadas com a maravilhosa lua do planeta Polifemo chamada Pandora (nomes sugestivos, como a propósito o do próprio filme), não suportam voltar a este mundo de meu Deus; prefeririam dar cabo da própria vida a encarar o real World.

O filme de James Cameron não é como os que Luis Buñuel compusera nos anos 60, claramente anticatólicos (obras como A Via Láctea, Simão do Deserto, etc.), embora com uma riqueza de detalhes que hoje escapariam até ao católico medianamente culto, em geral desconhecedor do Magistério e da história da Igreja anteriores ao Vaticano II. Cameron é mais sutil do que Buñuel, talvez em razão do ocultismo de caráter gnóstico que se esconde nos detalhes de sua obra.

Para quem não sabe, Polifemo foi o Ciclope (gigante de um olho só, filho do deus Poseidon, ou Posídon) enganado pela astúcia humana de Odisseu e de seus companheiros, no famoso poema de Homero. Encarna a semidivindade traída pela maldade do homem. Pandora, por sua vez, de acordo com a mitologia grega, foi a primeira mulher, criada como punição aos homens em razão da ousadia de Prometeu em roubar o fogo divino. O irmão de Prometeu, chamado Epitemeu, extasiado com a sua beleza, presenteou-lhe com uma ânfora ou caixa que continha todos os males do mundo, e que lhe havia sido dada pelos deuses. Segundo algumas traduções, no fundo da caixa estaria a esperança (elpís). Seja como for, o fato é que Pandora não leva em conta as admoestações de Zeus e abre a caixa, liberando toda a sorte de males sobre os homens.

Como se vê, os nomes escolhidos para o planeta e a lua em que a história se passa já nos indicam que se trata de um universo em que o homem é absolutamente mal visto, dotado de uma natureza corrompida, ardilosa, malévola. E não, obviamente, como a obra-prima da criação, feito à imagem e semelhança de Deus, embora decaído pelo pecado. Mas deixemos por ora este detalhe inicial e vamos ao argumento do filme.

No ano de 2154, um ex-militar chamado Jake Sully, paraplégico, é enviado a Pandora, onde a humanidade pretende explorar o rico minério unobtanium, que provavelmente solucionará a crise energética na Terra. Dada a alta toxidade da atmosfera de Pandora, os humanos que vão para lá precisam ter a sua consciência ligada ao Programa Avatar, que lhes permite “encarnar” num corpo biológico controlado à distância (com DNA híbrido), imune ao ar letal de Pandora. Ocorre que os nativos da lua, chamados Na’vis, são o obstáculo para a extração do precioso minério do lugar, razão pela qual, em tese, seriam eles os inimigos a vencer. Mas Jake Sully, já em seu novo corpo, é salvo por uma nativa Na’vi chamada Neytiri, o que acaba levando-o a adotar a forma de vida dos Na’vis e lutar contra os “invasores do céu”.

Até aqui, tudo parece mais uma bobagem hollywoodiana de gosto duvidoso (embora retratada com grande requinte técnico e efeitos especiais impressionantes), mas, como veremos, as coisas não são tão simples quanto parecem.

Baseando-nos num instigante texto publicado no site Stat Veritas, lembramos que é próprio das heresias gnósticas sobrevalorizar a razão, no afã de conhecer os arcanos divinos sem nenhum auxílio da Graça, mas pelo próprio poder especulativo da inteligência humana. Em geral, esse tipo de heresia ofende a Deus Pai, ao propor uma ordem totalmente distinta da que foi por Ele prevista — e provista — desde a eternidade. No caso do filme Avatar, o “homem novo” inventado por Cameron recebe até um novo corpo, já não propriamente humano, muito melhor do que o atual. O referido texto do Stat Veritas nos aponta, com grande argúcia, para os seguintes aspectos das heresias do gnóstico Joaquim de Fiore, condenadas solenemente no IV Concílio de Latrão, que estão presentes no filme:

1- O Terceiro Império seria a última fase da história universal, superadora das anteriores, na qual enfim chegaríamos à perfeição;
2- Essa nova etapa seria capitaneada por um caudilho, que apareceria como o seu afortunado fundador;
3- Esse caudilho, por sua vez, teria um precursor, da mesma forma como Cristo teve a João Batista como anunciador;
4- Enfim, o símbolo máximo dessa Nova Era seria a realização de uma sociedade de indivíduos espiritualmente autônomos (alguma semelhança com as idéias liberais?), que não precisariam da intermediação de instituições humanas — no caso, a Igreja e seus sacramentos — para relacionar-se com Deus.

Em Avatar, vejamos cada uma dessas etapas gnósticas, assim codificadas:

1- Uma nova fase da história humana sepultará a atual e se dará em outro planeta.
2- O caudilho que fundará essa nova era é Jake Sully (ele próprio fala em “renascimento”, no filme). Sully torna-se líder logo após Pandora quase ser destruída pela maldade dos homens, que por sua vez já tinham arrasado a Terra. Ele não nasce Salvador por delegação divina, mas se faz salvador.
3- O precursor do caudilho é a cientista Grace Augustine. Anotem bem o nome: Grace Augustine! Ora, para quem não sabe, Santo Agostinho é cognominado “Doutor da Graça”. Só que, no caso cristão, a Graça é o auxílio divino sem o qual o homem não pode manter-se no bem, enquanto a Grace Augustine da película é justamente o contrário disto: encarna a intelectual, a cientista que detém o conhecimento a partir do qual o “salvador” Jake Sully poderá começar uma nova era. Como se vê, os pólos se inverteram: a Graça que Santo Agostinho tão bem retratou vem de cima para baixo, de Deus para o homem, e é gratis dada; a Grace Augustine, por sua vez, representa o poder do próprio homem para “salvar-se”, para chegar por suas próprias forças ao conhecimento que o libertará das amarras do mal. Nada mais gnóstico!
4- O quarto dos símbolos joaquinistas, o da espiritualidade autônoma, se verifica pelo fato de os Na’Vis não necessitarem de nenhuma instituição “eclesiástica”. Quando Jake está ao lado de Neyriti, diz a todos: “Unimo-nos ante a deusa “Eywa”, e, depois, toda a comunidade dá-se as mãos em frente à “árvore dos espíritos” para rezar, ou coisa que o valha. Como diz o já citado texto do Stat Veritas, se cumpre assim a fantasiosa idéia de uma comunidade que vive em harmonia, sem Estado, sem Igreja e sem polícia, na qual todos adoram a natureza e, por isso, vivem em paz. Uma pax mundi absolutamente naturalista.

A negação da obra de Deus faz com que Cameron invente um novo mundo, com um novo homem, novas plantas, novos animais e um novo idioma — um mundo (no filme) muitíssimo mais satisfatório do que este criado por Deus. E esta negação da maravilha da Criação não deixa nada de pé; alcança todos os âmbitos da realidade e pinta-os em cores brilhantemente surreais. Não me admira saber que muitas pessoas, provavelmente desprovidas de espiritualidade, pensem em se matar após ver o filme. Aquilo para elas deve parecer coisa melhor.

É evidente também que os Na’vis, ao fazer as suas pregações e orações sob uma árvore mágica, unindo-se assim à “divina” natureza, vivem na prática uma espécie de panteísmo — algo totalmente anticristão. Trata-se de uma “energia” que os une à “deusa” e elimina, pois, qualquer tipo de mistério (já que os arcanos divinos haviam sido codificados pela ciência humana). Não há, aqui, nenhum espaço para o mistério da fé que salva, e muito menos para um caminho rumo à transcendência. Estamos, pois, imersos no imanentismo panteísta tantas vezes condenado pela Igreja.

Os signos do ecologismo neopagão, do feminismo antiespiritualista e do indigenismo do tipo ‘Nova Era’ pupulam em Avatar. Assim como o fato de que, nele, “a natureza vence a Graça”, diferentemente do que propõe o dogma cristão. Ora, a Doutora Graça (Grace Augustine) é alguém que, embora detenha uma série de conhecimentos, não consegue conduzir o homem a Deus. É uma simples ponte para Jake chegar ao outro mundo — mundo físico, é claro —, e não em busca de Deus, mas sim do saber científico “salvífico”. O homem, aqui, se converte num Super-Homem que não precisa da Graça. E por que se diz que a natureza vence a Graça? Vejamos o que afirma o excelente articulista Flavio Mateos:

“Porque la Gracia, herida de muerte por los hombres, es levada al reino de la natureza deificada, para ver si la ‘diosa’ le puede salvar la vida. Y por supuesto la Gracia se muere. Allí no tiene nada que hacer. Eso sí, antes de morir hace su profesión de fe diciendo, con cara iluminada: ‘Me uní a ella. Es real’; es decir, vio la diosa [natura] cara a cara”.

Uma espécie de messianismo carnal, sensual, é outra das características de Avatar. Mas não entrarei em detalhes sobre isto para não me estender por demais, pois nesta matéria é inconveniente fornecer pormenores, para não excitar a imaginação de ninguém. É pelas imagens que labora o inimigo do gênero humano e não serei eu a dar-lhe uma mãozinha para fazer alguma alma cair. Já me bastam os meus próprios pecados e a consciência de com eles ter ofendido tanto a Deus.

É burlesco que em Avatar a criatura superadora do homem (ética, física e “espiritualmente”) se assemelhe a personagens que a iconografia consagrou como demônios íncubos ou súcubos, com dente de vampiro, orelhas que mais parecem chifres, corpos perfeitos e atléticos (ou alguém viu por aí um Na’vi obeso ou com defeitos físicos?) e rabos compridos. Perdida a Graça, da qual os sacramentos ministrados pela Igreja são veículo, não resta ao homem senão desumanizar-se, e nisto foi muito preciso Cameron: escolheu uma imagem adequada, deformada, com a luciferina diferença de que a pintou como algo superior a nós. E vale também dizer que a morte da "Graça" nos remete à idéia de um mundo que se fechou por completo ao influxo da ação divina, mundo no qual as criaturas racionais, para ser plenas, simplesmente não precisam de Deus.

Indico efusivamente a leitura do instigante artigo do Stat Veritas — um site que presta um inestimável serviço a todos os católicos que ainda se preocupam com a situação aterradora da Igreja, que além do “aggiornamento” doutrinal pós-Vaticano II permite a seus órgãos oficiosos protagonizar novidades cada vez mais surpreendentes. A mais recente é esta, veiculada em todo o mundo durante o carnaval:

O L’Osservatore Romano acaba de eleger os 10 melhores álbuns de música pop de todos os tempos, entre os quais está Thriller de Michael Jackson, The dark side of the moon, do Pink Floyd, e Supernatural, do guitarrista Carlos Santana. São, de acordo com o jornal do Vaticano, discos dignos de ser levados para uma ilha deserta!

Certamente não para a Ilha dos Bem-Aventurados da República de Platão. Quem sabe sejam dignos de ser levados à Pandora do filme Avatar... Ou ao Tártaro.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Lições de Sócrates

Sócrates

Carlos Nougué
Ainda este mês de fevereiro, estarão disponíveis no site do Curso de História da Filosofia “Do Impulso Grego ao Abismo Moderno” duas das aulas que ministrarei sobre Sócrates e o socratismo.[1] Importante passo em nosso Curso: Sócrates é o albor da grande filosofia, aquela que avançará grandemente com Platão e sua “segunda navegação”, cujo porto é o supra-sensível, e se consolidará profundamente com Aristóteles e sua ciência do ente enquanto ente, a metafísica, cujo firme e essencial fundamento é a tese do ato e da potência.

Gostaria de já antecipar aqui, porém, algumas das mais importantes lições que nos legou Sócrates, não só com sua doutrina, mas com sua vida – doutrina e vida que, afinal, como se verá, se entrelaçam tão intimamente, que chega a ser difícil dissociá-las. Servir-nos-ão tais lições em diversos âmbitos, do filosófico ao da prhónēsis ou prudentia, mesmo do ângulo católico. Vejamo-las, pois, ainda que brevemente, ao modo de apontamentos.

1) Em tudo e de tudo, como dirá Aristóteles e como veremos detidamente nas referidas aulas, buscava Sócrates a definição, e esta é uma das vertentes metódicas que desembocarão, na Idade Média, na disputatio escolástica, cujo aperfeiçoamento final se dará com Santo Tomás de Aquino. Com efeito, como já se vê nos primeiros e “aporéticos” diálogos platônicos (Êutifron, Íon, Lísis, Cármides e os dois Hípias),[2] não dava trégua Sócrates ao intelecto em sua busca – já propriamente científica – de resolver todos os argumentos ou objeções possíveis contra o correto entendimento e definição de algo.[3] (A outra vertente, como já vimos em nosso Curso, é a fundada por Zenão de Eléia com sua reductio ad absurdum, forma de raciocínio que, como veremos detidamente no mesmo Curso, tanto servirá à metafísica aristotélico-tomista para defender os primeiros princípios da razão especulativa, os quais, por evidentes, não se podem provar.) E, de fato, a confutação e a maiêutica socráticas são a profícua semente que, após germinar no método científico de Aristóteles, florescerá abundante e vigorosamente nas muitas quaestiones disputatae do Aquinate (De veritate, De potentia, De anima, De malo, De virtutibus, De spiritualibus creaturis, De unione Verbi), em suas quaestiones de quolibet e, especialmente, em sua Suma Teológica.

2)
Antecipando o que se dirá na República de Platão acerca da democracia ou governo da maioria, fustiga diversas vezes Sócrates o fundamento daquele regime, com o qual, como vimos em nosso Curso, a sofística formava algo uno.[4] (E não se dará algo semelhante nos dias de hoje? O que é a ciência hoje, em especial as ciências humanas, senão o reino do relativismo – o reino da sofística – a serviço da democracia liberal, que, porém, sob o manto de governo da maioria, não passa de uma partidocracia a serviço de uma onipoderosa plutocracia?) Veja-se, a título de exemplo, o seguinte trecho do diálogo platônico Laques, na parte respeitante à educação dos filhos de Lisímaco e Melésias: “Sócrates – Por quê, Lisímaco? Vais aceitar o que a maioria de nós aprovar? Lisímaco – Mas o que se poderia fazer, Sócrates? Sócrates – Por acaso tu, Melésias, agirias de igual modo? E, se houvesse uma reunião para decidir acerca da preparação ginástica de teu filho, em que deve exercitar-se, levarias em conta a maioria de nós ou aquele que fosse precisamente formado e preparado por um bom professor de ginástica? Melésias – A este, logicamente, Sócrates. Sócrates – Levá-lo-ias mais em conta que a nós quatro? Melésias – Provavelmente. Sócrates – Suponho, então, que o que se há de julgar bem deve julgar-se segundo a ciência, e não segundo a maioria.”

3) O socrático “só sei que nada sei” pode traduzir-se, como o diz reiteradamente o mesmo Sócrates, no aparente paradoxo de que só é verdadeiramente sábio aquele que se sabe não-sábio. Como, porém, resolver de modo preciso este aparente paradoxo? Duplamente. Em primeiro: o não-saber socrático é verdadeiro saber diante do falso saber sofístico, porque destrói o monólogo de efeito dos sofistas e abre campo para a disputa propriamente científica.[5] Em segundo: só é sábio aquele que se sabe não-sábio diante do deus e que, por isso mesmo, segue os desígnios dele sem vacilar, mesmo em face da morte. Esta segunda resolução – em que não posso deixar de ver uma espécie remota de “figura” de Cristo e de seus mártires – não a alcança a grande maioria dos comentadores de Sócrates, como, por exemplo, Giovanni Reale. Que todavia é assim, o veremos extensamente em nosso Curso. Fiquemos aqui apenas com sua demonstração mais cabal. Com efeito, como negá-lo após ler os últimos parágrafos daquele mesmo e comovente diálogo Críton, nos quais Sócrates, tentando convencer a este seu amigo de que não deve fugir para escapar à morte injusta decretada pelo tribunal de Atenas, imagina que as leis lhe dirigem as seguintes palavras: “‘Antes, Sócrates, dá crédito a nós [as leis], que te formamos, e não tenhas em mais conta teus filhos nem tua vida nem nenhuma outra coisa do que ao justo, para que, quando chegares ao Hades [o mundo dos mortos], exponhas em teu favor todas estas razões diante dos que governam ali. Com efeito, nem aqui te parece a ti, nem a nenhum dos teus, que o fazer isto seja melhor nem mais justo nem mais pio, nem melhor quando chegares ali. Pois bem, se te vais agora [ou seja, se escapas agora da prisão], vais condenado injustamente não por nós, as leis, mas pelos homens. Mas, se te evadires tão ineptamente, devolvendo injustiça por injustiça e mal por mal, violando os acordos e os pactos feitos conosco [as leis] e fazendo mal aos que menos convém, a ti mesmo, a teus amigos, à pátria e a nós [as leis], irritar-nos-emos contigo enquanto viveres, e ali, no Hades, as leis nossas irmãs não te receberão com boa disposição, sabendo que na medida de tuas forças tentaste destruir-nos. Procura que Críton não te persuada mais que nós a fazer o que diz [ou seja, a fugir].’” Prossegue Sócrates: “Fica bem ciente, meu querido amigo Críton, de que é isto o que eu creio ouvir [da parte de Deus], [...] e o eco mesmo destas palavras retumba em mim e faz com que eu não possa ouvir outras. Fica ciente de que é isto o que eu penso agora e de que, se falares contrariamente a isto, falarás em vão. No entanto, se crês que podes conseguir algo [ou seja, para convencer-me a fugir], fala.” Responde Críton: “Não tenho nada que dizer, Sócrates.” E conclui Sócrates, encerrando o diálogo: “Eia, pois, Críton, ajamos neste sentido, dado que por aí nos guia o deus [ou seja, caminhe eu para a morte segundo o desígnio do deus e responda, assim, com um ato de justiça a uma condenação injusta].”[6] Não por nada é Sócrates quem dá, um pouco como reflexo distante do Noûs de Anaxágoras, a primeira prova mais consistente da existência de Deus, a mesma prova, em essência, que dará Santo Tomás definitivamente com sua quinta via na Suma Teológica.

4) Pois todo o comportamento de Sócrates diante do que conduz à sua mesma morte traz a última das lições que quis brevemente antecipar aqui. Com efeito, não bastaria, para o efeito querido pelo deus e pois por Sócrates, que este simplesmente morresse num ato de justiça como resposta a um ato injusto. Era preciso deixá-lo patente para o máximo de pessoas possível: e por isso não deixa o filósofo de dizer, alto e bom som, como se lê em toda a platônica Apologia de Sócrates, exatamente que responderia a algo injusto com um ato de justiça. E o diz claramente, enfaticamente, virilmente, apontando sem rebuço tanto os fautores remotos como os feitores diretos daquele ato injusto. Movidos por especialíssima graça do Espírito Santo, mostrarão algo semelhante os mártires quando, por exemplo, marcharem com o sorriso claro, enfático, viril – mas doce como a caridade – para a boca das feras. Por certo, mostrarão eles, de modo claro, enfático, viril e doce, que o fautor principal deste ato injusto, como de todos os atos injustos, não é senão o mal do pecado, e seu feitor a carne, o mundo e o demônio; e que não pode haver maior ato de justiça que o render a devida glória a Deus com o sacrifício pessoal.[7] Evidentemente, ainda não o podia exprimir assim Sócrates. Mas pôde fazê-lo, sim, em “figura” remota, e nada obsta a que para tal tivesse recebido do Espírito Santo uma especial graça atual.

Voltaremos talvez ao assunto.[8]

____________

[1] Para os alunos de nosso Curso: com estas duas aulas sobre Sócrates e o socratismo, teremos no mês de fevereiro, em vez das duas aulas de praxe, quatro ao todo.

[2] Ou seja, entre primeiros os diálogos platônicos, não são aporéticos o Críton e, a meu ver, o Protágoras. (Quanto à Apologia de Sócrates, só impropriamente se pode classificar entre os diálogos.) Ademais, por aporéticos que sejam, não o são em um sentido preciso: o mostrar que a sofística não é um verdadeiro saber nem conduz à sōphrosýnē (“sensatez” ou, segundo Demócrito, o Platão do Crátilo e Aristóteles, “temperança”, aquilo que se opõe a akolasía ou desenfreio, descomedimento).

[3] Com efeito, diz Sócrates a Laques, no diálogo homônimo, “o bom caçador deve prosseguir a perseguição e não deixá-la”, referindo-se precisamente à busca da definição, da verdade. Usará Platão metáfora semelhante em diversos outros lugares, como, por exemplo, Lísis, 218 c, e República, IV, 432 b.

[4] Um aluno me perguntou como podia a sofística ser algo uno com a democracia ateniense se, de fato, grande parte dos sofistas não era daquela pólis. Ora, antes de tudo, foi Protágoras – propriamente o fundador da sofística – um dos principais ideólogos da democracia “ilustrada” de Péricles. Ademais, mesmo quando estrangeiros, só em Atenas podiam os sofistas exercer plenamente sua atividade. Veja-se, para tal, a passagem do diálogo Hípias Maior (283 a-284 c) em que este sofista da Élide reconhece que os homens de Lacedemônia (Esparta) não lhe entregam os filhos para que os eduque nem, pois, lhe dão dinheiro. Diga-se algo semelhante de Górgias, que era de Leontinos, e dos demais sofistas não atenienses.

[5] Como veremos com precisão em nosso Curso, o diálogo socrático (e pois o platônico) nada que ver com o diálogo relativista ou ecumenista moderno, justamente porque aquele, como ciência, visava à verdade, enquanto este já parte da negação mesma da verdade. Como já se disse, o diálogo socrático é método de grande mestre.

[6] A distinção aristotélica entre ato de justiça e ato justo, e pois entre ato de injustiça e ato injusto, é, como se pode antever aqui e como se verá perfeitamente em nosso Curso, de fulcro socrático.

[7] Servem perfeitamente de ilustração a isto as últimas palavras de São Thomas Morus antes de ser decapitado. Pergunta-lhe, pouco mais ou menos, um sacerdote: “Não está com medo?” “Estou certo de que irei para o céu”, responde o mártir da unidade da Igreja. “Mas ter tal certeza não é tentar a Deus?”, insiste o sacerdote. Ao que responde o Santo: “Como poderia Deus não receber alguém que vai com tanta alegria para Ele?”

[8] Sirva este breve artigo de antecipação também de outro tema, que tratarei neste mesmo blog a pedido de alguns jovens leitores: a atitude que o católico deve ter diante de um mundo patentemente ou aparentemente perdido. Ou seja: deve o católico, ainda segundo as palavras daqueles jovens, ser pessimista e tornar-se quietista, sem atuar contra poderes aparentemente imbatíveis, ou deve armar-se de otimismo e engajar-se em lutas concretas para defender bastiões da Cristandade? Afinal, prosseguem, a postura pessimista não seria uma negação da virtude da esperança? Tal como formulada pelos referidos moços, a questão não tem resposta satisfatória. Reformulada, porém, pode tê-la; e o veremos num próximo artigo. Digam-se aqui apenas quatro coisas: primeira, a justeza de uma guerra ou combate requer adequação de meios; segunda, a palma da vitória de que fala São Paulo se conquista combatendo o bom combate, não necessariamente “vencendo” o bom combate; terceira, combate sempre terá, aqui, sentido analógico, como se verá; e, quarta, a virtude da esperança – virtude teologal infusa – não se ordena própria nem primariamente a coisas da terra, ainda as melhores, mas própria e ultimamente às coisas do Céu.
Adendo do Sidney: Não resisto a pôr aqui um trecho do famoso filme de Rossellini (Sócrates), em que este gigante discute com Hípias sobre o que é a beleza, e um outro trecho da mesma película no qual Rossellini faz menção à Apologia de Sócrates.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Nova aula do curso de História da Filosofia


Sidney Silveira
Avisamos aos inscritos no curso História da Filosofia - Do impulso Grego ao Abismo Moderno, ministrado pelo Nougué, que a oitava aula já está no ar: "Os Sofistas: A Fundação do Relativismo e a Primeira Grande Queda na História da Filosofia". Aproveito para lembrar que novas inscrições podem ser feitas pelo email marcel@santotomas.com.br a qualquer momento, passando os alunos a ter acesso a todo o conteúdo anterior do curso. Veja-se aqui um pequeno trecho dessa aula.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O “Górgias” e o papel do intelectual na Cidade

Platão


Sidney Silveira
Numa sociedade decadente, a vilania dos intelectuais acaba por tornar-se o sofisticado modelo para os atos insanos da multidão. Ela invade os costumes, corrompe os valores e, com o passar do tempo, chega a entranhar-se nas leis de forma tal, que a regeneração da Cidade torna-se impraticável, e não nos resta senão assistir ao pungente espetáculo do declínio civilizacional. Ciente disso, Platão exprime no Górgias — um diálogo simplesmente sublime — a questão capital para toda filosofia política que se queira realista: os jovens (entre os quais se encontram os futuros líderes) serão educados pelos truques retóricos do sofista ou pela sabedoria do filósofo que tenta incutir em suas almas o amor ao Bem? Que Paideia dará forma à coletividade humana?

Ora, quando a reforma dos costumes depravados é submetida ao escárnio pelos próprios intelectuais que deveriam estimulá-la, é sinal de que o acanalhamento ultrapassou a todos os limites e a crença geral é a de que qualquer homem, quando for a ocasião propícia, cederá aos atos mais vis. A propósito, é justamente esta a argumentação de um dos interlocutores de Sócrates no Górgias, o jovem Polo, que chega a enumerar as “exemplares” façanhas de Arquelau, tirano que governou a Macedônia depois de assassinar o tio Alcetas e o primo Alexandre, herdeiro do trono. O discípulo de Górgias, tomando Sócrates por hipócrita, constrange o mestre (que até então se eximia de responsabilidade sobre o mau uso dos seus ensinamentos, por parte dos alunos) ao elogiar a felicidade de Arquelau em conseguir entrar na posse de tudo o que queria, mesmo sendo protagonista dos atos mais cruéis.

Vale a pena aludir à famosa resposta de Sócrates a Polo:

— “(...) Consideravas Arquelau feliz por haver perpetrado os maiores crimes sem sofrer penalidade alguma, enquanto eu, de minha parte, era de parecer que não só Arquelau, mas qualquer indivíduo que não for punido por seus crimes deve ser considerado como o mais infeliz dos homens, e que, em qualquer circunstância, quem comete alguma injustiça é mais infeliz do que a vítima dessa injustiça (...).

A tese central deste ponto do diálogo platônico é a de que o homem mau, por mais que seja cumulado de prazeres, é intrinsecamente infeliz, enquanto o homem bom, ainda que viva sob o peso das maiores injustiças, é feliz. E mais: para quem comete um crime, a falta de punição é o pior dos males que pode suceder, pois não livrará a sua alma da injustiça — para a qual o castigo é a verdadeira medicina que, com o tempo, trará a cura pela dor. Neste contexto, a conclusão de Sócrates é impecável: o poderoso Arquelau é mais infeliz do que as suas vítimas, e o é ainda mais por escapar a todas as penalidades nesta vida.

A discussão sobre o papel da retórica na Pólis, que era a princípio o mote para o Górgias, desdobra-se num conjunto de questões fundamentais que fazem deste diálogo um dos mais importantes escritos pelo grande gênio da Academia: o que é a arte, o que é a beleza, qual o papel do mestre (diríamos nós, do intelectual), etc. Particularmente no tocante a este último ponto, vale dizer que, quando a derrota impingida pelos argumentos do adversário não acende na alma do intelectual a menor fagulha de decência, mas, ao contrário, leva-o a ataques irascíveis contra os que apontaram os seus erros, nada mais se pode fazer por este coração endurecido. O erro invadiu o seu núcleo espiritual e a única coisa que vale, para ele, é a vitória a qualquer custo. Nestes casos, a cura será muitíssimo mais difícil, e, como cristãos, poderíamos muito bem dizer que, após tantos pecados contra o Espírito Santo, só um milagre livrará tal homem da perdição.

Sendo, pois, o Estado nada mais nada menos do que o reflexo, em ponto grande, da alma da maioria dos seus habitantes, se por desgraça o intelectual torpe tiver nele voz ativa — liberdade de expressão, diríamos nós —, a decadência será certa e acachapante, dada a sua influência sobre tantos incautos. Daí a importância de refutá-lo publicamente, para que os seus erros não adquiram direitos políticos. Na prática, esse prevaricador travestido de mestre acaba por servir aos representantes (públicos ou privados) da ordem corrupta. E não se pense que hoje esse tipo intelectual de miolo mole se encontra apenas entre os socialistas, pois os há em profusão muito maior entre os liberais, sejam estes declarados ou enrustidos. Os declarados em geral centram os esforços de sua sofística nos temas econômicos ou políticos; os enrustidos parasitam a Igreja e corrompem a sacra doutrina inoculando conceitos filosóficos diametralmente contrários à fé. São organizados, diligentes, profissionais.

Numa sociedade decadente insuflada por parlapatões com pretensões filosóficas, o que está em risco é a possibilidade de verdade (ou seja: a própria inteligibilidade dos entes, captável pela potência superior da alma humana) — e a algumas poucas pessoas será dado testemunhar isto. Nesse reino da opinião impositiva que não admite objeções, não há lugar para nenhuma moral. Mas é justamente em tal situação que rebrilha a importância do filósofo, aqui entendido em seu sentido mais elevado: como alguém que levará às últimas conseqüências o sagrado dever de defender a verdade até o fim e em quaisquer circunstâncias, ainda que isto lhe custe a vida.

Após a época de Sócrates e Platão, a Igreja levará esta bela visão ao ápice, com a defesa do precioso depósito da fé. E com o sangue dos mártires que, submetendo-se às maiores crueldades, ofereceram as suas almas àquele que é a própria Verdade encarnada.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Relações Igreja-Estado (VIII): os valores orientadores da "Pólis"

A Cidade Católica rodeada por demônios


Sidney Silveira
A Pólis perfeita é absolutamente irrealizável, em qualquer século. Sempre haverá algum grau de desordem circundante ao qual os indivíduos não poderão escapar. Seja na Roma Antiga, erguida sobre a noção de “virtude”, ou na Roma decadente e prostituída de Calígula e de Nero; seja na Grécia do período protofilosófico de Tales ou na do tempo de Péricles; seja na Idade Média cristã ou no Renascimento antropocentrista; ou, por fim, nas sociedades ultraliberais contemporâneas, nas quais a noção de bem comum esfumou-se, tornando a virtù política algo formalmente irrealizável. A propósito, a perda da idéia de bem comum político, decorrente do avanço do liberalismo mundo afora, é uma das tragédias das sociedades contemporâneas — e, para a percepção desta triste verdade, indico veementemente a leitura do livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás, do filósofo Jorge Martínez Barrera.

Em todas as sociedades e em todos os tempos, haverá sempre uma tensão entre a verdade e o erro, a ordem e a desordem, o bem e o mal. É certo que, em alguns períodos históricos, em contextos culturais específicos, serão melhores as precondições para a vida contemplativa, a bios theoretikos por cujo exercício segundo Aristóteles o homem seria feliz no seio da Pólis, como contemplador da verdade. Mas, mesmo nas ocasiões episódicas em que tal horizonte favorável se realiza, para muitas pessoas um injusto infortúnio político é o destino inescapável. Os exemplos são incontáveis, ao longo dos séculos. Não há Cidade perfeita neste vale de lágrimas.

Existe uma íntima imbricação entre o caráter de uma sociedade e o da maioria dos indivíduos que a compõem. Este insight de Platão n’A República é uma conquista definitiva para a história da filosofia política, embora infelizmente tenha sido tão mal-interpretado por intelectuais que leram a obra do grande pensador grego de esguelha — à luz das suas próprias premissas, como por exemplo o liberal Karl Popper, no péssimo A Sociedade Aberta e seus Inimigos, que tanta gente influenciou durante décadas.

Em resumo, a notável visão política platônica (malgrado os seus erros específicos, que não cabe enumerar neste breve texto) parte da premissa de que a autoridade espiritual — noética — não pode estar desvinculada do poder político. Sim, pois para uma sociedade ser bem ordenada, e lograr todos os seus fins, é conveniente que o exercício do poder esteja nas mãos dos mais sábios, e não dos ignorantes; dos mais dignos, e não dos mais corrompidos. Aqui, não há lugar para o político profissional, tão característico da democracia liberal considerada hoje pela média dos homens como uma espécie de valor “supremo”, no qual não se pode tocar.

Parece-me um grande equívoco a idéia de que esta concepção política, na opinião do próprio Platão, seria algo impossível de alcançar. Como bem afirma Eric Voegelin no volume II de seu Ordem e História, dedicado a Platão e Aristóteles, nada mais errôneo do que considerar Platão um utópico, pois a sua Politeia não é propriamente um “Estado Ideal” (como alguns comentadores modernos nos fizeram crer), mas sobretudo o apelo de ordenação política dirigido aos atenienses com a autoridade espiritual do filósofo, nas palavras do escritor alemão. A irrealizabilidade fática deste projeto, por motivos que escaparam totalmente a Platão, é outro assunto. Um desses motivos foi muito bem identificado por Santo Tomás de Aquino, numa passagem do seu Comentário à Política de Aristóteles, em que cita Platão: o frontal ataque à família, com a tese de que os filhos devem ser retirados das mães e entregues ao Estado, para ser convenientemente formados.

Apenas com o advento do Cristianismo, sob a autoridade do Magistério da Igreja, a Politeia platônica encontrará ocasião para realizar-se na prática — embora sempre de forma imperfeita e balizada por outros princípios, muito mais sólidos. Mas esta deficiência não será problema algum para os cristãos, na medida em que a perfeição absoluta, de acordo com a doutrina católica tão lindamente expressa por Santo Agostinho no esplêndido De Civitate Dei, só se alcançará na Pátria Celeste onde tudo se ordena perfeitamente ao fim último, e não existe a mancha do pecado original a impregnar a alma humana com a fomes peccati.

Com Bonifácio VIII, a consagração, pelo Magistério da Igreja, da subordinação do poder material ao espiritual é a colocação em prática daquela premissa platônica — que no Cristianismo é referendada pela Revelação e, portanto, se dá sob o peso da autoridade divina. Sendo assim, o que diz Eric Voegelin, no livro citado, a respeito de Platão e Aristóteles (a saber: que a situação dos indivíduos na Cidade deve ser a resposta a uma teofania ou “evento teofânico”), serve muito mais para a Igreja: ou as sociedades são regidas pela lei eterna, que impede o movimento inercial das almas ao abismo — lei divina da qual a Igreja é a fiel depositária —, ou se destruirão na barafunda de interesses conflitantes entre si e, também, com o bem comum político. A diferença em relação ao mundo grego é que a teofania cristã não se baseia em mitos, mas na própria Encarnação do Verbo unido hipostaticamente à humanidade de Cristo.

É neste sentido que o grande Leão XIII, numa de suas mais importantes Encíclicas (Immortale Dei, cujo texto causa urticária nos católicos liberais), afirma: “Houve um tempo em que a filosofia do Evangelho governava as Nações” (...). Sabia Leão XIII que a sombra benemerente da lei evangélica, de fardo fácil de carregar para quem se abre ao influxo da Graça, é a única capaz de minimizar os desgovernos, no plano político, decorrentes da nossa natureza caída. Sabia Leão XIII que, com relação à idéia de que o caráter das sociedades é o espelho dos valores nelas predominantes, Platão estava certíssimo. Daí a necessidade de que os valores da Verdade revelada sejam não apenas os orientadores da Pólis, mas sejam preservados de quaisquer erros, para o bem de todos.

Embora a Cité Catholique defendida por São Pio X na Carta sobre o Sillon não seja perfeita, dada a nossa condição de homo viator, de pecadores, é na prática a única que pode servir de caminho para a Jerusalém Celeste preparada por Deus para os eleitos, ainda que esteja ela rodeada por demônios, como na imagem que ilustra o presente artigo.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

"TV" Contra Impugnantes: o argumento ontológico de Santo Anselmo

Anselmo de Cantuária

Sidney Silveira
Veja-se um trecho de aula em que se fala — apenas de passagem, sem maiores aprofundamentos — do chamado "argumento ontológico" de Santo Anselmo de Cantuária. Como se tratava de público não familiarizado com o tema, tentamos apenas apontar as primícias do argumento sem desenvolvê-lo em toda a sua amplitude, e sem mencionar todas as objeções que lhe foram feitas (como, por exemplo, a de que a "existência" não pode ser algo predicado a um sujeito). Fazemos também ali uma breve menção à crítica de Santo Tomás ao famoso argumento... Noutra oportunidade, escreveremos um texto sobre ele no Contra Impugnantes, em particular sobre o seu caráter "apriorístico". Mas também vale ver esta exposição de um rapaz (não sei se aluno ou professor de filosofia) que descobri no Youtube exatamente agora, quando postava o link.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O apriorismo de Kant e suas conseqüências (IV)




Sidney Silveira
As aporias suscitadas pelo criticismo kantiano se espraiam pelos três âmbitos cardeais da especulação filosófica: metafísica (ser), gnosiologia (conhecer) e moral (agir). Despojado de toda a sofisticação que embute, e contemplado à luz dos seus “princípios”, o problema crítico nada mais é do que uma espécie tosca de inatismo das idéias (no caso, as formas “a priori” do tempo e do espaço). Totalmente distinto do inatismo platônico, é verdade, mas muito mais insalubre do que o do grande pensador grego — dado o seu caráter quimérico e a desvairada ambição de demarcar o alcance da inteligência partindo de uma prévia deformação do ato do conhecimento.


Ora, uma gnosiologia que não extraia os seus princípios das vísceras do ser sempre acabará apelando a muletas com as quais não conseguirá subir à região da inteligibilidade dos entes. E este é justamente o drama do kantismo: a laboriosa análise “transcendental” feita na Crítica da Razão Pura está condenada ao malogro justamente por se dar num horizonte contra naturam intellectus — na medida em que as verdadeiras condições transcendentais da subjetividade humana não poderiam vir senão do ser (que Kant parece desconhecer absolutamente), e não de ilusórias categorias “a priori”. O ser é a raiz possibilitante sem a qual nem sujeito nem objeto do conhecimento poderiam sequer existir. Falaremos um pouco mais sobre isto quando trouxermos à luz os princípios da metafísica do ser de Santo Tomás de Aquino, pelo viés de sua redescoberta pelo italiano Cornelio Fabro, no século XX.


A “revolução copernicana” de Kant se consuma na idéia de que o objeto extramental (os entes, portanto) não orienta a inteligência e não a conduz, portanto, à posse formal da verdade. Ao fim e ao cabo, nesse peculiar sistema é a inteligência que “cria” o objeto em sua própria imanência subjetiva. Como se vê, Kant é o ápice de uma longa caminhada filosófica — a chamada ontologia em primeira pessoa — que se iniciara historicamente no Cogito de Descartes, embora já estivesse esboçada em Duns Scot. Em suma, desarticulado do ser, como afirma Derisi, o conhecimento perderá totalmente a sua unidade objetiva e, com isto, se esvanecerá a unidade hierárquica entre todas as potências do “ato de ser” do homem (corpórea, vegetativa, sensitiva e espiritual).


Escapou a Kant e a todos os idealistas modernos, fundadores ou adeptos das filosofias mais abstrusas, que, para ser factível, o Cogito precisa de um cogitatum, ou seja: só podemos conhecer algo que é, ou, noutras palavras, que esteja posto diante de nossa inteligência como absolutamente distinto dela. Por esta razão, a identidade intencional entre o sujeito e o objeto do conhecimento é analógica, e não unívoca, pois quando nos apossamos da forma de outro ente nós o fazemos imaterialmente e sem deixar de ser o que somos, como aliás já ensinara Aristóteles, muito pouco estudado pelo filósofo de Königsberg.


O idealismo crítico de Kant tem como efeito próximo imediato o autonomismo moral. Sim, pois se a inteligência e o ser estão radicalmente desvinculados, ou parecem pertencer a universos paralelos que jamais se encontram, a nossa relação com as coisas não poderá ser orientada pela inteligibilidade dos entes e, portanto, a nossa vontade acabará por ser absolutizada: ao fim e ao cabo, eu quero e elejo isto ou aquilo não por uma alegada ratio (fundada no ser), mas simplesmente porque quero. Em síntese, não havendo uma regra objetiva das nossas ações que provenha do próprio ser, ao qual só podemos formalmente ter acesso pela inteligência, toda e qualquer moral será autônoma, no sentido de que nada terá a ver com a natureza das coisas.


A moralidade ou imoralidade dos atos humanos, num universo como este, será absolutamente arbitrária e irracional e provirá de imperativos categóricos cuja força normativa não é outra senão a da vontade individual. Partindo de tais princípios, aconselha Kant: “Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, por tua vontade, lei universal da natureza” (imperativo universal); e “age de tal modo que possas fazer uso de toda a humanidade (...) sempre como fim e nunca como meio” (imperativo prático).


Nos Fundamentos para uma metafísica dos costumes diz Kant que a representação de um princípio objetivo que constrange a vontade chama-se “ordem da razão”, e a fórmula de mando denomina-se “imperativo”, e entre elas não há um vínculo essencial, mas tão somente acidental. Como se vê, a sua moral não se apóia — e nem poderia apoiar-se — em nenhuma racionalidade, mas numa espécie de vontade cega desvinculada da inteligência, estando esta, por sua vez, sem quaisquer liames tonificantes com o ser.


Por estas e por outras razões se pode dizer que Kant é o cume do voluntarismo antropocentrista que faz com que a lei e a moral saiam das entranhas imanentes da vontade humana. Com tal filosofia idealista, estamos como que esquizofrenicamente apartados dos entes e, também, de Deus, pois o centro das atividades humanas deixa de ser o ser extramental (os entes) e, a fortiori, o Ser Divino (o Ipsum Esse). Em Kant, o nosso acesso a Deus está formalmente vedado pelo solipsismo gnosiológico e pelo autonomismo moral que são a expressão máxima da sua filosofia.


Uma filosofia que encarna com particular ênfase a tragédia do homem moderno.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O apriorismo de Kant e suas conseqüências (III)




Sidney Silveira
[Um email enviado por meu irmão, e que enumera algumas objeções feitas por um leitor do blog, presumivelmente jovem, motivou-me à seguinte consideração.]

A presente crítica ao apriorismo kantiano — cujas graves conseqüências para a história da filosofia exporemos no decorrer dos textos desta série —, nada tem a ver com “ceticismo” em relação aos juízos sintéticos “a priori” inventados pelo filósofo de Königsberg. Como adeptos da escola tomista, não podemos subscrever nenhum tipo de ceticismo gnosiológico que use a inteligência para desqualificá-la por meio de sofismas. Portanto, aqui se trata do esclarecimento com relação aos erros gnosiológicos fundamentais que servem de motor de arranque para o idealismo transcendental kantiano. É importante fazer esta advertência aos nossos eventuais leitores partidários de filosofias céticas — sejam antigas ou modernas. Do ceticismo trataremos noutra oportunidade.

Outra coisa: a presente exposição não se propõe ser uma novidade, pois, como já foi apontado em textos anteriores, pensadores de diferentes correntes, partindo de premissas as mais díspares (não raro contraditórias entre si), mostraram a absurdidade da procura kantiana por conceitos apriorísticos totalmente independentes da experiência, sobretudo pelos erros metodológicos implicados na própria formulação do problema crítico por Kant. Escolhemos a Octavio Derisi porque nos parece ir este filósofo ao cerne da questão, mas poderíamos aludir a outros, como por exemplo Joseph Maréchal, estudioso do tomismo que, não obstante faça algumas concessões ao idealismo transcendental, no livro Le point de départ de la métaphysique aponta de forma convincente por que a filosofia kantiana oscila entre o dogmatismo de que o alemão queria fugir (após despertar do “sonho dogmático”, com a leitura de David Hume) e o ceticismo que ele nunca conseguiu abraçar em todas as suas conseqüências, malgré lui même.

O mais difícil na refutação do criticismo kantiano é o seguinte: uma vez admitida a existência de um conhecimento totalmente desarticulado da realidade dos entes, a busca por funções ou categorias “a priori” da inteligência, assim como por todas as condições de possibilidade do conhecimento (ambas no seio da imanência), não é apenas lógica, mas sim a única possível, como aponta Derisi. Daí a importância de uma resposta que não se perca em meio às tediosas e prolixas análises transcendentais de Kant, mas vá direto à pedra angular de todo o seu sistema.

E um dos cacos dessa pedra angular é a pressuposição (implícita in nuce nas principais proposições do criticismo kantiano) de que a nossa inteligência não se refere a nenhum tipo de realidade extra mentis. Ou seja: o conhecimento não provém — como de uma fonte — das coisas que estão fora e além da nossa mente, mas sim do sujeito que as pensa. Assim, o conhecimento é despojado de um de seus pólos essenciais: o objeto, a coisa distinta do sujeito cognoscente. Kant está, pois, totalmente imerso na falsa dicotomia sujeito/objeto do conhecimento, tão característica do pensamento moderno, cujas raízes distantes apontamos em outro breve texto: Duns Scot, o ancestral da modernidade.

Uma vez mais, ouçamos a Derisi:

“[Kant] conserva el objeto como experimentado en nuestra sensibilidad, pero de cuya realidad trascendente y en sí nada sabemos todavía, con lo cual se realiza la escisión entre el objeto sensiblemente experimentado –que conserva– y el objeto o cosa en sí –del que prescinde. Desde entonces el objeto del conocimiento, cuyo análisis trascendental Kant instaura, es objeto inmanente, experimentado en nosotros con prescindencia de toda [la real] trascendencia. Los datos, empírica o pasivamente experimentados en nuestra sensibilidad, gracias a las formas ‘a priori’ de ésta, espacio y tiempo, llegan a constituirse en fenómenos, [única] materia sobre que versa nuestra inteligencia”.

Na prática, Kant diz que a nossa inteligência só alcança os fenômenos, e não o noumenon, o “em si” da coisa, e contradiz-se no ato, porque com esta proposição ele acaba de propor-nos o noumenon da própria inteligência, ou seja, uma de suas notas distintivas, que a caracterizam essencialmente... Ora, se a nossa inteligência só alcançasse os fenômenos, não poderíamos sequer dizer dela que não alcança o noumenon, como faz Kant. É a autocontradição da incognoscibilidade da coisa em si.

Mas o problema é bem mais complicado, justamente porque esta premissa vale, em alguns casos, para as ciências que... tratam dos fenômenos!!!! Mas não para a gnosiologia, e muito menos para a metafísica.

Há um quê de loucura no labor de Kant em estabelecer as condições transcendentais da subjetividade, porque de antemão ele aprisionara, de forma categórica, o objeto-fenômeno na imanência do sujeito. Sendo assim, todo o intento de evasão dessa subjetividade imanente está fechado na própria “subjetividade” do objeto. E nesta perspectiva, obviamente, nenhuma metafísica poderá ter valor. Meu Deus: que confusão dos infernos!

Para ultrapassar a imanência do conhecimento por parte do sujeito, seria preciso, antes de tudo, devolver ao objeto o seu caráter próprio de coisa em si extra mentis, ou seja, além da minha mente — e que não depende desta para ser o que é. Mas Kant despojara do objeto-fenômeno esta sua nota essencial e, com isto, não conseguiu sair do emaranhado em que se meteu.

Eis, pois, o erro dos erros do criticismo: os entes, em sua realidade nua e crua, possuem notas objetivas percebidas por nós a partir sensibilidade, mas que não provém de formas “transcendentais” subjetivas (como pensava Kant sem aduzir nenhum elemento plausível para tal suposição), pois constituem a essência mesma das coisas. A res (um dos transcendentais do ser) é algo com que a nossa inteligência se relaciona, e não uma projeção de categorias “a priori” que tenhamos na mente...

Uma das primeiras conseqüências de tais premissas será a seguinte: toda e qualquer busca da verdade objetiva tornar-se-á algo em si absurdo.

Vale ainda dizer que as idéias “descobertas” por Kant em sua análise transcendental (cosmológica, psicológica e teológica, ou seja: o mundo, o eu e Deus) são destituídas de todo e qualquer valor real, pois têm uma mera função de unificadoras das categorias “a priori” do conhecimento. Por aqui entendemos muito bem por que a refutação do argumento de Santo Anselmo (chamado por Kant impropriamente de “ontológico”) é insuficiente em Kant. Ao passo que, em Santo Tomás, basta uma linha (uma linha!) da Suma Teológica, onde o Angélico põe por terra o argumento anselmiano, embora acolha dele uma de suas premissas.

Mas esta é outra história.
(continua)

Nova aula do curso de História da Filosofia

Sidney Silveira
Aviso aos inscritos no curso História da Filosofia - do Impulso Grego ao Abismo Moderno, ministrado pelo Nougué, que a sexta aula ja está no ar — e se subdivide em dois tópicos: I- Anaxágoras de Clazômenas (A Inteligência Separada como Ordenadora do Cosmos); II- O materialismo atomista (Átomos, Movimento Mecânico, Necessidade). Aproveito para lembrar que novas inscrições podem ser feitas pelo email marcel@santotomas.com.br a qualquer momento, passando os alunos a ter acesso a todo o conteúdo anterior do curso. Veja-se aqui um pequeno trecho dessa aula.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Nova editora católica e lançamento de um clássico

Sidney Silveira
A Pinus é uma editora católica que está iniciando a sua trajetória. E promete, para breve, a edição de um clássico do século XIX: o Cours d'histoire ecclésiastique, do Pe. Rivaux, que receberá o nome de Tratado de História Eclesiástica. Alvíssaras!!! Sugiro aos nossos católicos liberais que comprem (e estudem) esta obra...