Sidney Silveira
O fim da tentação diabólica, de acordo com Santo Tomás, pode ser vislumbrado numa dupla perspectiva: o fim último, que é simplesmente induzir os homens ao pecado e afastá-los de Deus; e o fim próximo instrumental, que é saber a que vício está mais inclinado um homem, para poder arrastá-lo ao pecado pela sedução (In. II. Sent. d.21.). Numa série de questões do Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, o Aquinate demonstra que, na tentação proveniente do demônio ou do mundo, não há absolutamente nenhum pecado da parte de quem é tentado, mas a tentação da carne sempre traz consigo algum pecado — venial —, pois “não é só a carne que deseja, mas o conjunto [psicofísico humano], razão pela qual a tentação da carne [já] é pecado no que é tentado” (non enim sola caro concupiscit, sed conjunctum: et ideo talis tentatio est peccatum in eo qui tentatur). Tal doutrina do Aquinate certamente parecerá dura para a susceptibilidade do catolicismo contemporâneo*.
Não tenhamos porém excesso de escrúpulos, pois o próprio Doutor Comum nos lembra, na mesma questão, que nesta vida o homem não pode livrar-se das tentações da carne ao ponto de não ter nenhuma (homo non possit vitare tentationem carnis ita quod nullam habeat), até porque a tentação da carne implica a apreensão do bem deleitável pelos sentidos externos ou internos, e às vezes deparar com bens desta ordem é inevitável — sobretudo no mundo atual, orbitante em torno de fetiches e taras mil, às escâncaras, o que induz a imaginação a devanear. Convém, pois, neste ponto salientar que uma coisa é a tentação da carne, em sentido próprio (simpliciter), outra muito distinta são os deleites involuntários que ocorrem quando certos bens sensuais** aparecem aos olhos do cristão sem que ele os procure. Neste último caso não há sequer pecado venial, desde que logo ele desvie o olhar para fugir à tentação e não se meter em ocasião de pecado.
Assim, embora a tentação da carne (não confundida com o deleite involuntário) já traga consigo um pecado venial interior, pois implica voluntariedade em algum grau — o que aumenta a desordem da potência sensitiva interna da imaginação e predispõe ao ato exterior pecaminoso —, as tentações que visam às potências superiores da alma são muitíssimo mais deletérias e perigosas, pois se peca muito mais gravemente por soberba do que por paixão, e as tentações a que nos referiremos agora colocam-nos sob o risco de pecar por soberba — aparentando-nos, assim, ao inimigo da nossa salvação. Ora, o pecado de soberba é mais incompatível com a ação da graça do que o pecado da carne, dada a sua imensa gravidade, razão pela qual o soberbo tende a pecar habitualmente contra o Espírito Santo, e, neste caso, a remissibilidade dos seus atos é um verdadeiro milagre, de acordo com alguns dos maiores teólogos que a Igreja já produziu.
Uma dessas tentações mais sérias se dá propriamente com relação ao conhecimento, e, por conseguinte, à potência intelectiva. Chamemo-la de tentação filosófica, à qual tantos estudiosos sucumbiram. Se verificarmos bem a história da filosofia dos últimos 450 anos (mirando algumas teses dos mais famosos pensadores), observaremos até com certa facilidade como inúmeros homens doutos caíram em tentação filosófica, perpetrando verdadeiros absurdos contra a verdade e o senso comum, em geral para ser vistos como ‘originais’ aos olhos do mundo — como fica patente ao frisarem que as suas doutrinas eram novíssimas e punham abaixo o que fora feito até então: Descartes, Locke, Berkeley, Hume, Kant, Hegel, Schopenhauer, Bergson, Nieztsche, Husserl, Heidegger, Sartre, o ex-sacerdote Xavier Zubiri, etc. Algumas teses destes famosos perscrutadores das coisas filosóficas são tão abstrusas, mas tão claramente abstrusas, que não se pode chegar a elas sem algum grau de malícia ou ignorância culpável.
O Monsenhor Octavio Derisi, importante tomista argentino, demoliu muitas dessas teses em dois livros — Filosofía moderna y filosofía tomista e Tratado de existencialismo y tomismo —, mas não é o nosso propósito enumerar as suas refutações aqui, pois já o fizemos em outros textos do Contra Impugnantes. Por ora, importa-nos apenas fazer referência à tentação filosófica na mais grave das matérias em que se pode dar: nas coisas teológicas. Ora, se a matéria em que se dá o pecado é um dos fatores que especificam a sua gravidade, será tão mais grave cair em tentação filosófica quanto mais essa tentação aproxime o homem da possibilidade de dizer mentiras ou erros a respeito das coisas de Deus. É possível, neste caso, chegar até a mentira que Santo Agostinho classificara, no livro De Mendacio, como a mais nefanda de todas: a mentira religiosa — a que gera, ao fim e ao cabo, os heresiarcas inventores de falsas religiões, os cismáticos e os heréticos.
Infelizmente, com o fim do Index e com a revolução proveniente do Vaticano II, a Igreja deixou de se manter vigilante com relação a erros filosóficos — tanto assim que hoje os anátemas praticamente inexistem nesta matéria (e em qualquer outra, aliás). Quando muito, vemos uma recomendação discreta contra alguma leitura daquelas mais claramente loucas, mas a regra é ensinar nos seminários doutrinas gravemente atentatórias à fé, como se a sua assimilação acrítica já não constituísse, em si, um terrível dano para a inteligência dos futuros padres.
Não à-toa muitos sacerdotes hoje se tornam kantianos, hegelianos, bergsonianos, gadamerianos, espinosistas e até mesmo heideggerianos, tentando sintetizar em suas teses acadêmicas doutrinas contraditórias entre si, para tentar salvar algo da fé; mas os que levam as suas idéias às últimas conseqüências acabam abandonando a batina e/ou os votos de suas respectivas ordens. Ou, então, simplesmente passam a querer moldar a fé ao seu modo de vida. Ademais, como escritores ou filósofos são eles realmente incríveis: outro dia reli o texto de um ex-padre sobre Emmanuel Lévinas, e realmente ali não se dizia lé com cré. Ora, que ex-sacerdotes metidos em estudos filosóficos se tornem formalmente heréticos não é novidade, mas algo conseqüente com a sua apostasia***.
Outra coisa: este afastar-se da fé induzido por estudos equivocados ou feitos sem ordem não acontece apenas com futuros padres, mas também com os simples fiéis que estudam filosofia. Muitas vezes eles se alimentam de idéias que mais confundem a mente do que infundem nela algo de bom, e não admira mesmo tornarem-se uma espécie de sincretismo teológico ambulante — fazendo verdadeiros volteios e malabarismos lógicos para dar razões ao non sense.
Aos católicos que estudam filosofia, acima de tudo, o conselho prudencial é de que se enfronhem na obra de Santo Tomás antes de se ‘especializar’ neste ou naquele autor. Isto será um grande antídoto contra teorias engambelantes. Outra norma: se filósofos não-católicos se metem a escrever ou falar sobre as coisas da Igreja, o primeiro movimento com relação a eles deve ser de total desconfiança, é claro. A regra nestes casos é moldarem as coisas santas a seu ecletismo filosófico, e depois de certo ponto o dano será de ordem tal, que consertá-lo será quase um milagre. A filosofia de homens assim jamais poderá ser ancilla theologiae, até porque estão fora da fé — quando muito são "católicos de batismo" —, mas sim ancilla malorum, como se diz no título deste breve texto. Sobre algumas teses por eles perpetradas falaremos noutra oportunidade.
Que Deus nos livre de cair em tal tipo de tentação, cujas conseqüências são dramáticas para a alma.
Amém!
* Cito aqui Santo Tomás ipsis verbis, para não parecer que tirei tal idéia da minha cabeça. De toda forma, vale frisar que concordo inteiramente com ele neste ponto.
** A licitude ou ilicitude do gozo de um bem sensível depende, para Santo Tomás, de três coisas: da regra da reta razão, da lei natural e da lei eterna. Se o deleite proveniente da sensualitas agredir a uma destas três coisas, o gozo será ilícito.
*** O citado Xavier Zubiri, por exemplo, nos deixou textos sofiscadíssismos sobre a Eucaristia. A sua tese é a da “transubstantivação”, que segundo ele ocorre em lugar da transubstanciação definida solenemente pelo Concílio de Trento como Dogma. A propósito, num conhecido texto, lembra-nos Zubiri que São Boaventura e Santo Tomás divergiram neste ponto, e afirma que, para São Boaventura, não há presença de Cristo senão enquanto o pão é ‘alimento’, e não simplesmente no pão real — ou seja, na coisa em sua nua e crua realidade. Então discorre o pensador basco: “São Boaventura acreditava que, se um rato comesse o pão consagrado, não estaria comendo o Corpo de Cristo, pois aquele pão não teria para o roedor a ratio alimenti. Santo Tomás, por sua vez, pensou [pensou?] que a presença de Cristo é uma presença no pão enquanto realidade em e por si mesma. Modestamente, acho que São Boaventura tinha razão”. Ora, pelo amor de Deus, Zubiri!!! Santo Tomás não pensou serem as coisas assim, a menos que pensemos nós que os Dogmas são invencionices dos filósofos e podem mudar com o tempo; o fato é que a posterior definição dogmática do Concílio de Trento não deixa margem a quaisquer dúvidas, em seu Cânon 2:
“Se alguém disser que no sacrossanto sacramento da Eucaristia fica a substância do pão e do vinho juntamente com o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou negar aquela admirável e singular conversão de toda a substância de pão no corpo, e de toda a substância do vinho no sangue, ficando apenas as espécies de pão e de vinho, que a Igreja com suma propriedade (aptissime) chama de 'transubstanciação' — seja excomungado”.
Ou seja, dizer que Cristo não está de fato sob as espécies do pão eucarístico real, mas apenas enquanto esse pão possui a ratio alimenti para o espírito, é, para dizer o mínimo, uma heresia formal que excomungaria eo ipso quem a defendesse. Na verdade, o fato é que Zubiri — em razão da influência fenomenologista da qual não conseguiu jamais escapar, ao longo de sua trajetória — rechaça como equívoco o conceito aristotélico de “substância” e acaba metendo os pés pelas mãos. São Boaventura ao menos tinha a favor de sua imprecisão teológica o fato de que, em sua época, o Dogma ainda não estava solenemente definido no tocante ao modus dessa Presença Real de Cristo na Eucaristia, mas esta desculpa não serve para o filósofo basco. No fundo, a tese zubirirana com fumos de originalidade (em matéria grave) parece distantemente inspirada na “consubstanciação” defendida por Scot e também condenada pelo Concílio de Trento. A propósito, para o Doutor Sutil não haveria razões teológicas forçosas para aceitar a transubstanciação ensinada pela Igreja, como nos recorda aqui um scotista. Pelo menos Duns Scot dizia exteriormente ‘amém’ à transubstanciação, pois naquele tempo não se ousava contrariar frontalmente o Magistério.
Em tempo: Aproveito para desejar a todos os leitores deste nosso espaço um Santo Natal, repleto do espírito do Menino Jesus.