[Um amigo que leu atentamente a obra teológica do Padre Calderón A Candeia Debaixo do Alqueire indaga-me se, ao falar dos erros do Magistério Conciliar, não seria equivocado dizer “Igreja”, em vez de “Hierarquia” — como eu fiz ao referir-me à mudança na doutrina multissecular da subordinação do Estado à Igreja, ao afirmar que houve uma reviravolta... “por culpa da Igreja”. Penso ser bastante útil trazer este tema para o blog, por suscitar questionamentos interessantes. Eis, com alguns acréscimos e adaptações, a minha resposta.]
Sidney Silveira
Caro,
Esta é uma questão teológica da mais alta relevância, e convém fazer alguns esclarecimentos prévios, antes de irmos ao Pe. Calderón, mencionado em seu texto.
Uma coisa é a nulidade dos atos errôneos perpetrados por autoridades da Hierarquia da Igreja, em qualquer tempo; outra é o poder de que elas estão revestidas por um caráter indelével participado por Cristo — poder que elas simplesmente não utilizam nestes casos, sem no entanto perder a sua pertença à Igreja, ou seja: sem perder o caráter eclesiástico. As exceções ficam por conta de casos, por exemplo, como o de heresia formal, ou, noutras palavras, de erro manifestamente intencional mantido com pertinácia contra uma verdade de fé.
Façamos, então, um raciocínio disjuntivo:
Ou a Hierarquia quando erra pertence à Igreja (e, neste caso, todos os erros materialmente perpetrados por ela são, por derivação, erros da Igreja militante, já que não existe separação entre matéria e forma, no caso de que se trata); ou a Hierarquia quando erra não pertence à Igreja (e, então, caímos nalguma espécie de sedevacantismo material, ainda que com o nobre propósito de preservar a santidade da Igreja).
Neste contexto, quando por exemplo eu afirmo que, em se tratando de mudança na doutrina das relações entre a Igreja e o Estado, “a culpa é da Igreja”, me refiro, sim, às autoridades, e portanto à Hierarquia, mas isto sem jamais esquecer o seguinte: simpliciter, o erro de uma autoridade eclesiástica não implica a perda do indelével caráter eclesial. Isto quer dizer o seguinte: a autoridade do ato é nula, sim, mas não o caráter eclesial da pessoa da Hierarquia que o perpetrou. Sendo assim, o simples fato de a Hierarquia perpetrar um erro não a retira (ipso facto) da Igreja — salvo em alguns casos específicos, como o de heresia formal acima citado. Assim, o termo “Hierarquia” continua sendo um predicável aplicado à instituição “Igreja”, e por isto podemos dizer, sem medo de errar, que nestes casos a culpa é da Igreja, sim — ainda que o façamos por analogia de proporcionalidade própria, tendo como ponto analogante a Hierarquia.
Noutra formulação, podemos afirmar: na pessoa de suas autoridades humanas, a Igreja pode errar, conquanto não o possa quando por intermédio delas atua in persona Christi deixando evidentes as quatro precondições de infalibilidade descritas no Concílio Vaticano I:
a) quem fala é o Papa, Vigário de Cristo;
b) ele se dirige à Igreja universal, e não a esta ou aquela diocese;
c) ele trata de fé e de costumes, e das coisas que lhes estão necessariamente conexas;
d) ele tem a manifesta intenção de obrigar os fiéis ao seguimento da doutrina (intenção expressa sem dar margem a dúvidas; daí a necessidade de às vezes os Papas e os Concílios recorrerem aos anátemas, por uma medida profilática com relação à sanidade o Corpo Mistico, pois assim são os anátemas: absolutamente indubitáveis!).
Nestes casos, o Magistério é infalível, pois, como ensina o Dogma proclamado no Concílio Vaticano I, Cristo quis prover a Igreja deste carisma para garantir que o precioso depósito da fé permanecesse até o fim dos tempos, como Arca da Salvação para os eleitos por presciência divina. Sem isto, jamais a Igreja conseguiria sobreviver aos séculos — e às mudanças que trazem — mantendo a sua unidade de doutrina (veja-se o caso dos cismáticos protestantes, que logo após a Reforma se dividiram em incontáveis facções).
Outra coisa, nobre amigo: é muito importante atentar para o fato de que, numa “disputatio”, como é o caso do livro do Pe. Calderón, muitas vezes a objeção diz apenas uma parte da verdade (e nisto reside o seu caráter insidioso!), e, na resposta magistral, essa parte é redimensionada pelo filósofo — sendo as premissas colocadas em seu devido lugar. Pois bem: no texto de A Candeia Debaixo do Alqueire por você citado, o Padre Calderón aproveita em sua resposta uma premissa da Sétima Objeção do Artigo Quarto (Se o Magistério conciliar não compromete a Autoridade de modo indireto), que frisava o seguinte: “Não se pode negar a bondade dos frutos do Concílio Vaticano II sem que isso implique necessariamente a negação da legitimidade do mesmo Concílio, quer dizer, de sua existência como ação da Igreja”. Mas na resposta a esta objeção, logo após afirmar, como você bem aponta, que “uma ação materialmente dada pela Hierarquia eclesiástica, cuja obra imediata e todas as suas derivações são más em sua substância, não pode pertencer formalmente à Santa Igreja, isto é, não pode ser considerada legítima”, referindo-se em verdade à objeção à tese refutada, ele diz o seguinte, na continuação do texto:
“Uma coisa é o vício do ato, outra o do próprio poder”.
Veja bem: estamos nesta discussão no exato limite que nos mantém fora de todos os tipos de sedevacantismo material, que são aqueles em que, entre outras coisas, se afirma que a Hierarquia atual não pertence formalmente à Santa Igreja, e portanto os seus erros não são erros da Igreja, mas apenas da Hierarquia — neste caso, a Hierarquia seria na verdade uma espécie de casca oca, ou seja: uma matéria sem o seu princípio formal de operação. Ocorre o seguinte: quem defende tal tese precisaria, entre outras coisas, dar uma prova metafísica de que é possível haver, nos entes compostos de matéria e forma, uma essencial separação entre ambas. Observe-se que me refiro aqui aos tipos de sedevacantismo material, para os quais o Papa pode até ser considerado Papa materialiter, tão-somente, mas não formaliter, e portanto a Sé estaria vacante. É a tese de Cassiacum e de seus seguidores.
Em resumo, para dizer que os erros do Magistério conciliar não são de fato da Igreja, mas apenas dos seus representantes, teríamos de aceitar os corolários desta premissa, e, levando-a às últimas conseqüências, chegar à tese de que o Supremo Pontífice (de onde teriam partido tais erros, na medida em que foram propostos num Concílio e um Concílio é a reunião dos bispos do mundo inteiro sob a autoridade do Papa) carece totalmente do caráter eclesial, e, assim, a Sé estaria vacante. Mas isto não podemos aceitar, por razões que não cabe enumerar aqui porque o assunto é se, havendo erros, estes seriam apenas da Hierarquia ou também poderiam ser ditos da Igreja, na qual a Hierarquia se insere.
Retomando, pois, a sua questão, reitero, antes de encerrar: por analogia de proporcionalidade própria — tendo como ponto analogante a Hierarquia —, podemos dizer, sim, que a Igreja pode errar, seja em matéria opinável não vinculada diretamente à fé e aos costumes, seja quando o Magistério não cumpre as precondições de infalibilidade, citadas acima. Mas isto sem jamais deixar de ser Santa e santificadora.
Sem ter a pretensão de esgotar a discussão nem de dar a última palavra, despeço-me com um cordial abraço.
Sidney
P.S. Outra distinção parece-me importante fazer. Em sentido estito (simpliciter), santidade não é o mesmo que inerrância, ou seja: uma não implica a outra com necessidade absoluta. Sem dúvida, a santidade pressupõe uma graça habitual eficaz na alma do Santo, que o leva a realizar atos meritórios sobrenaturais — como se afirmou aqui. Mas a santidade não dota o Santo de inerrância em todos os seus atos. Um exemplo: Santo Anselmo e Santo Agostinho não perderam ipso facto a santidade no exato momento em que perpetraram alguns erros ou imprecisões filosóficas; mas eles a perderiam, sem dúvida, se tais erros fossem contrários a uma verdade da fé, o que seria pecado mortal. Da mesma forma, a Igreja é Santa e santificadora em Cristo, mas não perde o seu caráter santo se porventura o Papa erra numa conta matemática de adição ou, então, numa equação de segundo grau. Mas podemos dizer mais: mesmo em se tratando de matéria de fé, ainda que o Papa caísse em heresia notória e com isto perdesse o Papado e a sua pertença à Igreja (possibilidade discutida por Doutores da Igreja, como São Roberto Belarmino, e por vários teólogos de escol), nem assim a Igreja perderia a santidade e o seu poder santificador em Cristo. Mas esta é uma longa discussão.