[O texto a seguir é uma resposta agradecida ao que o querido amigo Angueth publicou ontem em seu blog]
Sidney Silveira
Caro Angueth, assumir uma posição e dela não arredar, ainda quando a grande maioria vai contra, é um ônus que se carrega somente quando não se tem mais a sombra dos respeitos humanos a pairar sobre a cabeça. Não se chega a tal ponto sem sofrimento, ou por outra: só pelo sofrimento rompemos verdadeiramente os laços do mundo e temos a noção efetiva da inanição de todas as coisas em relação a Deus. Quem, portanto, nunca foi exposto a uma situação vexatória e por ela conheceu a desonra; quem nunca viu os seus projetos mais queridos ir por água abaixo; quem nunca foi traído por pessoas a quem amava; quem nunca teve uma grande perda na vida; quem nunca saiu do doce refestelo das comodidades materiais; quem nunca sentiu a aridez do espírito que traz consigo a dor de saber-se irremediavalmente só; em suma, quem não passou por nada disso não poderá amar a verdade a ponto de sacrificar por ela os seus interesses. E é a isto o que todos somos chamados por Deus, embora tantas vezes nos sintamos fracos para lográ-lo.
Quando digo “sacrificar” (sacrum facere), refiro-me antes e acima de tudo a dar testemunho. A propósito, como você bem sabe, é muito bonita a etimologia da palavra “testemunho”: vem do grego martyrion. Ou seja: martirizar-se é, na acepção da palavra, dar o testemunho da verdade. Decerto tal martírio nem sempre nos cobra a própria vida, mas no mínimo cobra-nos o que temos de bom na vida. E na imensa maioria das vezes é preciso perder o que temos de bom na vida para saber valorizá-la, encará-la em sua radical beleza — que é ser uma dádiva do Criador. E uma dádiva que nos torna semelhantes a Ele.
Ora, como dizia Santo Tomás, existem duas formas de semelhança: semelhança de vestígio e semelhança de imagem. A primeira delas é a que se dá entre uma causa e seu efeito, nos casos em que o efeito não possui a mesma forma da causa, mas é um signo dela: assim, a fumaça é um vestígio do fogo, e as pegadas na areia são o vestígio de que algum animal passou por ali. A semelhança de vestígio nos permite conhecer a existência da causa e certas propriedades que possui. Por sua vez, a semelhança de imagem se dá quando coisas distintas se assemelham a partir de três características: unidade de forma, comunidade de espécie ou, por fim, de algum acidente metafísico. Quanto a estas semelhanças só nos interessa, por ora, apontar que todas as criaturas corporais se assemelham a Deus como vestígios; enquanto o homem se assemelha a Ele também como imagem, dada a sua diferença específica em relação aos outros entes compostos de matéria e forma: entender e querer.
Para chegar à compreensão disto e extrair dela todos os corolários para a vida prática, é preciso sofrer a ponto de ver cristalinamente o que ensina num lindo sermão o Pe. Antônio Vieira, maior escritor da língua portuguesa: entre o pó que fomos e o pó que havemos de ser, há um pó muito mais difícil de perceber — o pó que somos.
Pois bem, neste caminho de pó a pó que é a nossa vida, a grande conquista é desvencilharmo-nos dos laços do mundo, com a ajuda de Deus, ainda que com marchas e contramarchas, quedas e soerguimentos. E sem dúvida um desses laços pode ser o das coisas políticas, quando a nossa opção acaba por se transformar na justificativa do injustificável.
Tendo isto em vista, a única coisa que se quis mostrar nos textos a que você se referiu foi a seguinte: não havendo entre os candidatos à Presidência (e as correntes políticas que representam) o mal menor do ponto de vista da fé, a opção dos eleitores católicos até pode ser por um em detrimento de outro, mas nunca, jamais, omitindo alguma parte essencial da verdade ou transfigurando-a, para defender o voto. Pois, à imitação de Cristo, somos chamados a dar o testemunho da verdade.
Pois não foi o Nosso Senhor quem disse (cfme. Jo. XVIII, 37) ter nascido e vindo ao mundo justamente para dar testemunho da verdade? Despeço-me com um fraternal abraço, Sidney.
Adendo importante: Não se pense que no primeiro parágrafo me refiro a mim mesmo. Não! Sofri muito menos do que mereço (dados os meus muitíssimos pecados). Apenas remeto-nos ao modelo que a Igreja sempre nos propôs para fugirmos aos laços do mundo, da carne e do demônio e amarmos a verdade como Deus quer que a amemos: sofrer, e sofrer em Cristo. Neste sentido, o milenarismo criticado nos textos sobre as coisas políticas é, sem dúvida, um grande risco para as almas. Por fim, ainda que estejamos todos incomensuravelmente distantes do modelo de perfeição cristã, isto não quer dizer que devamos jogá-lo no lixo...