Sidney Silveira
No texto anterior se disse que, graças a José Serra, há exatos 12 anos mulheres presumivelmente estupradas podem abortar no SUS, ou seja, abortar com o patrocínio do Estado brasileiro. Lendo isto, alguém mandou-me um email: “Pô, presumivelmente estupradas?". É assim mesmo, meu caro. Basta à mulher com interesse em fazer o aborto chegar a uma unidade do SUS e dizer que foi estuprada, para então realizar o que os textos oficiais chamam, com intenções eufemísticas, de “interrupção da gravidez”.
Não é preciso, portanto, que a mulher apresente uma prova do estupro do qual diz ter sido vítima, antes de iniciar os procedimentos abortivos. Nem mesmo uma ocorrênciazinha policial... Isto porque alguns documentos são “recomendados” à postulante ao aborto no Sistema Único de Saúde, sim, mas não são em absoluto obrigatórios. Em resumo: no Brasil de hoje, só não aborta com o dinheiro do contribuinte quem não quer. E graças a uma “Norma Técnica” assinada pelo então ministro José Serra.
Sem dúvida, o chamado princípio da adesão ao mal menor político (defendido por São Pio X, embora num contexto histórico totalmente diferente do atual) continua válido. Até porque se trata de um princípio. Ocorre que mesmo um princípio precisa de mínimas precondições para aplicar-se, em dado momento. E o que tentamos mostrar é o seguinte: sequer do ponto de vista da lei natural há diferença entre os dois candidatos a presidente da República remanescentes do primeiro turno do pleito, assim como entre as correntes políticas que eles representam, todas caudatárias do ideário esquerdista. Daí recorrermos à comparação: para um cristão, eleger um deles é algo semelhante a escolher, entre dois deuses pagãos, o menos pior para acender-lhe um incenso.
Li de alguém — provavelmente um jovem imberbe — que quem anula o voto não tem, ou não deveria ter, direito a opinião política... Para dizer uma coisa dessas é preciso estar totalmente chafurdado na mentalidade liberal que, depois de alguns séculos de predomínio no Ocidente, incutiu entre nós o fetiche do voto e, principalmente, a idéia de que as coisas políticas só o são se se inserem em alguma instância do poder, na ocupação de cargos legislativos ou executivos por alguma das facções em luta intestina. Isto é de uma estreiteza sem tamanho! Para perpetrar tal opinião é preciso não ter lido nada do que disseram Aristóteles, Platão, Santo Agostinho e Santo Tomás sobre a política, só para ficarmos com estes quatro gigantes, incomensuravelmente superiores a todos os teóricos da política a partir de Maquiavel.
Esbocemos, pois, uma definição de “ação política”, para clarear um pouco as coisas:
Uma ação é propriamente política se defende, no seio da Pólis, os princípios e valores que devem reger as coisas humanas em vista do bem comum.
Em suma, este é o predicável “próprio” da política, a sua propriedade mais eminente: ser uma ação ordenada ao bem comum da comunidade humana. Por isso, sem o bem comum, não há política; pode até haver “políticos” profissionais, sobretudo nas demagógicas democracias atuais, mas não política, em sua real acepção. E a proposição contrária também é verdadeira: mesmo entre não-políticos profissionais, uma ação será integralmente política se for ordenada ao bem comum.
O que acham, ora pelotas, que são o Contra Impugnantes, a editora Sétimo Selo e o Instituto Angelicum? Exercício de diletantismo? Ou a tentativa de — com grande sacrifício de tempo e de dinheiro — remeter quantas pessoas pudermos à filosofia e à teologia deste gigante que foi Santo Tomás? Não duvidem: esta é uma ação fundamentalmente política, tanto intra como extra Ecclesiam. Aliás, superiormente política, se pensarmos que visa a nos levar ao conhecimento da teoria (referendada oficialmente pela Igreja) em vista da qual as práticas políticas devem orientar-se, como instrumentos adequados à consecução do fim último do homem: a perfeita bem-aventurança. Enfim, fomos feitos para a felicidade, e a política não deve ser um empecilho para esta finalidade querida por Deus para os homens.
Outra coisa: em qualquer sociedade e em qualquer tempo histórico, o “bem comum” político será sempre um bem objetivo de usufruto de todos os cidadãos. Assim, por princípio, uma lei que protege a vida não se destina a proteger a deste ou a daquele cidadão, mas a vida de todos; uma via pública não deve servir apenas à passagem de automóveis de meia dúzia de apaniguados do Estado, mas de automóveis de quaisquer pessoas. Como se vê, o bem comum é o ente de razão que atua como causa final das coisas políticas. Por isso, só as comunidades de entes com potências intelectivas (ou seja, as humanas, pois aqui não me refiro aos anjos) podem lograr o bem comum político, pois este é sempre um ente de razão. Neste contexto, uma leoa que defende os filhotes nem por isso instaura uma Pólis, pois a primeira característica eminente de uma República digna deste nome, como ensinara Platão, é a Justiça — e esta é uma aquisição da inteligência, e não dos instintos. O leãozinho mais forte vai sempre mamar mais, vai sempre comer mais, sem com isso suscitar quaisquer dilemas éticos na leoa sua mãe.
Como se pode observar, o bem comum é algo bastante claro, simples, e não uma quimera, uma metáfora inalcançável, como acreditam alguns teóricos atuais inspirados pelo liberalismo clássico, que, por sua vez, é caudatário do maquiavelismo e também da desconfiança nas “instâncias do poder” herdada de Locke e Montesquieu.
Reitero, por fim, que não fazemos eu e o Nougué apologia do voto nulo. Apenas não vamos dar o nosso voto a nenhum dos candidatos à Presidência que sobraram, Dilma e Serra. Isto para não estuprar (não presumível, mas efetivamente) a nossa consciência católica.
Quem pensa diferente sinta-se à vontade para apresentar as suas objeções, o sed contra. Só não venha dizer que a nossa postura não é válida para estes sombrios tempos; e a quem o fizer, peço que prove com razões suficientes.