Sidney Silveira
O ateísmo in abstracto foi bastante atacado nos discursos do Papa Bento XVI em sua recente visita à Inglaterra. Não custa, neste contexto, lembrar que, dadas as múltiplas máscaras de que se reveste o ateísmo (condenado, entre outras coisas, pela própria lei natural, em virtude da demonstrabilidade da existência de Deus pela razão humana), além de atacá-lo em abstrato é preciso rechaçar os sistemas filosóficos que implicam a negação da possibilidade de conhecermos a Deus. Ou seja: as teorias céticas, materialistas, imanentistas, criticistas, fenomenistas, idealistas, ontologistas, agnosticistas, pragmatistas, intuicionistas, irracionalistas, etc.
A propósito, isto sempre foi feito pelo Magistério da Igreja, que, ao longo dos séculos, anatematizou todas as filosofias perigosas tanto para a fé como, também, para a razão que lhe serve de preâmbulo, pois a fé precisa do invólucro da razão, dado ser o anuir da inteligência à Palavra revelada. Por isso, no Concílio Vaticano I a Constituição Dogmática Fide Catholica, de 24 de abril de 1870, dedicara todo o primeiro capítulo ao conceito de Deus, em cinco cânones nos quais se condenavam alguns dos erros mais flagrantes, então em voga:
1º. Anátema aos que negavam a existência de um Deus único, Criador e Senhor de todas as coisas visíveis e invisíveis;
2º. Oposição ao materialismo absoluto;
3º. Condenação do panteísmo em geral;
4º. Condenação de algumas formas especiais de panteísmo;
5º. Condenação de alguns teólogos ou filósofos que não admitiam o conceito genuíno de Criação, particularmente Günther e Hermes.
No capítulo II da referida Constituição Dogmática (De Revelatione), são atacadas as teorias que negam a cognoscibilidade de Deus pela razão humana a partir dos efeitos observados nas criaturas. E as Atas Conciliares não dão lugar a dúvidas: em suas mais díspares manifestações, a filosofia moderna, que engrossou a negação da fé ao longo de três séculos de corrosão do senso comum e dos primeiros princípios da razão, pretende sem reticências apartar o homem da religião. É o que nos lembra o tomista Cornelio Fabro num interessante livro sobre o drama da busca de Deus pelo homem: L’Uomo e il rischio di Dio.
Se vasculharmos o Magistério ordinário também encontraremos várias condenações a filosofias que, sendo errôneas em seus princípios, eram também atentatórias para a fé. Isto porque, desde sempre, a Igreja soube que a luta no plano doutrinal-filosófico era importantíssima para a guarda do precioso depósito; por esta razão, não lhe coube apenas condenar o ateísmo in abstracto, mas todos os sistemas a que ele historicamente recorreu, na tentativa de justificar-se. Neste contexto, convém ressaltar que o ateísmo teórico pode muito bem ser considerado fundamentalmente herético, quer dizer, uma idéia contrária a um dado da Revelação.
Hoje os seminários católicos em todos os lugares do orbe estão contaminados pelo ensino de várias dessas filosofias derrogatórias da fé, muitas das quais desembocam no ateísmo. Aqui no Rio de Janeiro, a título de exemplo tópico, ensina-se em institutos católicos Hegel, Kant, Heidegger, Gadamer, Husserl, e outros, com uma sem-cerimônia impressionante. Parece que todos estão cegos ao fato de que se trata de gnosiologias aporéticas, as quais, em sua base, representam um fator essencialmente problematizador das relações entre o homem e Deus — e, portanto, um grande perigo para a fé.
Acatar o ateísmo in abstracto, como fez o Papa, é importante, sem dúvida. Mas tal combate perde totalmente a força e o sentido se na própria Igreja continua-se a ensinar inúmeras filosofias que são um verdadeiro atentado à fé, sob o aplauso de padres, bispos, etc.
Tal idiossincrasia provém, entre vários outros fatores, do fato de que a Hierarquia hoje se constrange enormemente com o exercício da autoridade. Rezemos, pois, para que a Igreja volte a ensinar o tomismo, o grande antídoto para o drama doutrinal em que hoje estamos. Não basta, pois, atacar o ateísmo do ponto de vista moral, somente; é preciso desmascarar os seus sofismas publicamente, para que ele mostre a sua real hediondez, como aliás sempre se fez, até os ventos do Vaticano II soprarem para longe esta postura tradicional. Aqui, ocorre-me um detalhe: isto não se pode fazer sem imposição de disciplina, no sentido de que não mais se estudem acriticamente tais filosofias dentro dos próprios muros eclesiásticos. Está nas mãos do Papa mudar as coisas, ou seja, fazer com que o discurso oficial para o mundo não seja uma contradição em relação ao que se ensina ab intra. Para levar tal idéia em frente, contudo, é preciso o Papa lutar abertamente contra os inimigos internos. Tal reviravolta seria um grande milagre, sem dúvida; para deduzir isto, basta olhar o triste cenário da Igreja atual com um mínimo de senso de realismo... Mas, como desconhecemos os desígnios de Deus, não custa rezar nesta intenção.