terça-feira, 31 de março de 2009

“Tu és pó, e em pó te hás de tornar”

Carlos Nougué
Por terem Adão e Eva comido da Árvore da Ciência do Bem e do Mal, toda a sua descendência passou a nascer em dupla obscuridade: a do pecado e a da ignorância. E, embora com a queda adâmica nosso intelecto não se tenha corrompido em si, o fato é que nossa razão, em maior ou menor intensidade segundo diversos fatores, é não raro enceguecida pelas paixões ou outras causas. São as paixões, por exemplo, o que faz com que os homens não apreendam por si mesmos um ou mais itens da lei natural − sendo, porém, potencialmente capazes de fazê-lo pela propensão habitual chamada sindérese, de que todos somos dotados. Por isso, aliás, é que o Senhor decretou os Dez Mandamentos: para lembrar aos homens aquilo que eles poderiam apreender por si mesmos, mas não o conseguem fazer perfeitamente (quase sempre longe disso) por serem filhos do pecado.

Vítima também da queda do homem é certa operação de nossa razão especulativa: a operação de indução, ou seja, a que remonta às causas ou princípios a partir de seus efeitos. É o modo de operar próprio das chamadas “ciências de credibilidade”, como a História, cujos argumentos se dizem quia a posteriori em contraposição aos argumentos das chamadas “ciências de autoridade”, cujos argumentos se dizem quia a priori exatamente porque, ao contrário daqueles, descem aos efeitos a partir de suas causas ou princípios. Pois bem, qualquer de nós, não fosse o nascer naquela dupla obscuridade, também seria capaz de quaisquer raciocínios quia a posteriori; por isso dizia São Paulo que eram réus de pecado contra Deus os pagãos que não Lhe tinham reconhecido a existência e o fato de ser Criador, já que pelos seus efeitos, a saber, pelas criaturas saídas de sua Arte suprema, seria possível fazê-lo. Como se dera com os Dez Mandamentos, outra vez intervém a misericórdia do Altíssimo e sua vontade de salvação, e Ele ensina pela Revelação também o que poderia ser apreendido pela só razão especulativa do homem se não tivesse havido o pecado; ensina, portanto, não apenas mistérios interiores e operativos da Santíssima Trindade, insondáveis para o intelecto humano. Dizia Santo Tomás de Aquino que, se não nos tivesse Deus revelado a respeito de Si até o cognoscível pelo intelecto humano, só muito poucos, e após muito tempo, e ainda assim com mescla de mais ou menos erros, O poderiam conhecer, impossibilitando-se assim a salvação de grande parte dos eleitos. Não é justamente o que vemos na história da grande filosofia grega com relação a Deus? Primeiramente Xenófanes destrói a concepção antropomórfica dos deuses; depois Anaxágoras de Clazômenas atribui a formação do mundo a uma inteligência, a Inteligência divina, constituída porém de alguma matéria; depois Sócrates, o impressionante Sócrates, afirma a unicidade do Deus (sem todavia eliminar a multiplicidade de deuses, que passam a ser algo como manifestações d’Aquele) e que Ele é não só pura inteligência, e inteligência ordenadora e onisciente, mas inteligência providente, sendo Providência não só com relação ao cosmos, mas especialmente com relação ao homem − que imenso passo!; depois Platão lhe segue as descobertas, mas só parcialmente, e põe Deus (o Demiurgo informador do caos) um degrau abaixo da idéia do Sumo Bem (o que no máximo estava implícito no socratismo, em razão de suas aporias); Aristóteles, por fim, ao mesmo tempo que com seu Primeiro Motor Imóvel prepara quatro das cinco vias tomistas que provam o ser de Deus (a outra é antes platônica), retrocede gravemente com relação à descoberta socrática do Deus-Providência: a Divindade, para o Estagirita, nem sequer conhece os seus efeitos e, portanto, tampouco o homem, porque para o Filósofo, se o Theós, como nóesis noéseos (“pensamento de pensamento”, ou seja, pensamento de si mesmo), conhecesse os efeitos que causa, se rebaixaria e perderia dignidade; ao que responde o Angélico: se, com efeito, a inteligência que Deus tem de Si é perfeitíssima, tanto mais perfeitamente Ele entenderá seus próprios efeitos, pelo fato mesmo de estes estarem virtualmente contidos n’Ele enquanto Principio. (“... dado que do primeiro principio, que é Deus, dependem o céu e toda a natureza, é evidente que Deus, ao conhecer-se a Si mesmo, conhece tudo”, In Met., nn. 2614-2615; cf. também Cont. Gent. I, xlix-l; II, xi). Ademais, e isto é o central quanto ao que nos interessa aqui, durante centenas de anos grandes inteligências como as de Xenófanes, Anaxágoras, Sócrates, Platão e Aristóteles descobriram, como vimos, muitas verdades com respeito a Deus, mas foram incapazes de vê-Lo como criador de tudo; e, como diz o Aquinate numa de suas últimas obras, o opúsculo Contra murmurantes, se é verdade que não podemos saber pela razão natural que o mundo foi criado no tempo (porque poderia, razoavelmente, ter sido criado co-eternamente a Deus mesmo), por outro lado, contudo, é perfeitamente possível à razão natural constatar, pelas criaturas, ou seja, mediante um raciocínio indutivo ou quia a posteriori, que Deus é criador de tudo, e não apenas seu ordenador ou informador.

Pois com respeito à alma humana, cujo conhecimento, como afirmou pela primeira vez ainda Sócrates, também resulta de um raciocínio indutivo ou quia a posteriori, igualmente andou a grande filosofia grega por caminhos profícuos, mas tortos. Para os físicos ou naturalistas pré-socráticos, a alma é composta de algum tipo de matéria, mais sutil, e não necessariamente tem caráter individual; para os órficos e, de maneira geral, os pitagóricos enquanto órficos, ela é um “demônio” ou emanação da Divindade que, por uma culpa original nunca explicada, cai prisioneira no cárcere de um corpo, e não se identifica, muito pelo contrário, com o eu racional e consciente − puro gnosticismo. Com Sócrates ela passa corretamente a identificar-se com o eu consciente e racional, perde qualquer mescla de matéria e ganha a legítima primazia sobre o corpo, mas nem por isso é afirmada claramente como espiritual e pois imortal (conquanto nosso grande filósofo pendesse para esta solução; cf. Platão, Apologia de Sócrates). Com Platão, embora a alma mantenha algumas conquistas socráticas e comece a ser entendida em suas diversas potências, ela contudo torna a cair prisioneira do gnosticismo órfico, e passa da primazia sobre o corpo para a necessidade de ver-se livre dele (enquanto para Sócrates, corretamente, o corpo era um instrumento da alma); e, se é verdade que na filosofia platônica a alma se torna, enfim, definitivamente espiritual, ela porém passa a ser dita, mais que imortal, eterna, ou melhor, incriada. Com Aristóteles, por fim, conquanto a alma adquira uma feição mais definitiva (mas veja-se que a voluntas só será reconhecida, ainda que confusamente, por Cícero, às portas já do nascimento do Filho do homem) e se mantenha firmemente espiritual (como dizia o Estagirita, a matéria não tem potência para a alma), ela, todavia, contraditoriamente, morre com o corpo; e, embora o Filósofo admita para ela uma origem divina, ainda contraditoriamente não lhe confere o caráter de coisa criada, precisamente porque, como vimos mais acima, para nenhum dos gregos de antes de Cristo Deus é criador de nada. O conhecimento de Deus como criador de tudo a partir do nada era privilégio, antes de Cristo, do povo judeu, por única revelação de Deus mesmo; e o mesmo se diga do conhecimento da alma enquanto espiritual e imortal, embora este só se dê cabalmente com o cristianismo (em especial com Santo Tomás de Aquino e, sobretudo, com o próprio magistério da Igreja).

Com o judeu-cristianismo, soube o homem por revelação de Deus que ele fora criado, no Jardim do Éden, num estado de justiça que incluía não só a imortalidade da alma (o que resulta de sua própria natureza espiritual), mas também a perenidade do corpo graças a uma série de dons preternaturais e, em particular, dos frutos da Árvore da Vida, que o manteriam imperecível até a hora eleita por Deus para a assunção gloriosa do homem inteiro à bem-aventurança. A morte do corpo é a mais grave das penas temporais impostas ao homem pelo pecado de Adão e Eva; tão grave, que a redenção do homem não se podia dar senão com a morte − a morte do próprio Redentor: “Assim como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens”, diz São Paulo (Rom., V, 12). E, se com o cristianismo sabemos que a alma dos bem-aventurados já pode ter, após a morte do corpo, a visão beatífica da essência de Deus, o que já é ter atingido seu Fim Último, nem por isso deixará essa alma de se encontrar, por outro ângulo, em estado de incompletude, uma vez que a completude do homem é a da união substancial de alma e corpo − união que não se refará senão com a ressurreição dos corpos no fim dos tempos. Nem por aquilo, ademais, a morte do corpo deixa de ser um castigo; se o deixasse de ser, perderia todo o sentido a morte redentora de Cristo. E qualquer castigo é um mal; mal de pena, e não mal de culpa, que é o pecado; e, como mal de pena, traz luto e lágrimas, lágrimas que, sim, podem secar-se e se secam com o lenço da Esperança cristã, mas que não deixam de ser lágrimas: Frei Reginaldo de Piperno só com a ajuda de Deus se pôde consolar da morte de seu Paizinho amado, Santo Tomás de Aquino; São Bernardo, após muito se conter, acabou por prantear a morte da irmã; e não terá chorado Nossa Senhora, com o coração transpassado de dores, a morte de seu Filho-Deus? e não chorou o mesmo Cristo a morte do amigo Lázaro?

Assim somos os católicos: sabedores da imortalidade da alma e do destino eterno do homem, não deixamos de ver na morte do corpo o castigo que é, sem porém desesperar, porque nos guiamos nesta terra de exílio pela virtude da Esperança e pela firme confiança em Deus, que é o fruto mais eminente daquela Esperança. Assim somos... ou deveríamos ser. Sim, porque infelizmente boa parte dos católicos de hoje, incluindo muitos dos que tão bravamente lutam contra os ataques do mundo moderno à lei natural, acabam por extrapolar da justíssima luta, por exemplo, contra o aborto e pelo direito à vida para a luta incorreta contra algo erroneamente chamado “eutanásia” (a palavra grega euthanasía quer dizer “morte sem sofrimento”) e contra a pena de morte. Da pena de morte falarei no segundo artigo depois deste; aqui, agora, falarei daquilo que erroneamente vem sendo chamado “eutanásia”. Mas diga-se desde já: o ser contra aquela e o ser contra este radicam na mesma coisa, a saber, o fato de boa parte dos católicos atuais, ainda que não raro sem muita consciência disto, assumir uma visão própria de um mundo ateu, para o qual a vida humana é apenas a que termina com a morte do corpo; o assumir uma visão naturalista (ou antes falso-naturalista), que atribui ao homem o destino último de ser pasto de vermes, e que por isso mesmo considera gravemente pecaminosa qualquer forma de tirar a vida a outro ou a si mesmo. Mas no Decálogo, depois de proibir, no Quinto Mandamento, a morte injusta do próximo, não diz Deus que “aquele que pecar com uma besta seja punido de morte” e que não se deve deixar “viver os que consultam os espíritos”, etc. (Êx., XXII, 18-19)? Terá Deus mudado de opinião? Ter-se-á equivocado? E não disse Pio XII que não é a autoridade que tira a vida do condenado, mas o condenado que pelo seu ato gravemente culpável já perdeu o direito à vida? E não escreveu Santo Agostinho que o verdugo “tem lugar necessário nas leis e é incorporado à ordem com que se deve reger uma sociedade bem governada” (De ordine, Lib. II, c. IV, 12)? Mas deixemos para o prometido artigo a questão da pena de morte, e tratemos agora daquilo que vem sendo erroneamente chamado “eutanásia”.

Vita est motus ab intrinseco”, diz Santo Tomás seguindo a Aristóteles. “A vida é um movimento intrínseco [que vem de dentro]”, o que vale para o conjunto dos entes animados − vegetais, animais ou humanos − e os distingue dos entes inanimados. “Quando uma pedra se move”, diz Arbogastus em “La mort encéphalique” (Courrier de Roma, junho de 2008, in Sim Sim Não Não, n. 163, novembro-dezembro de 2008), “quando uma pedra se move, é porque ela foi movida por alguém ou alguma coisa (força de atração). Ao contrário, o ser vivo tem em si mesmo a fonte de seu movimento (mudança de lugar, nutrição, crescimento, reprodução).” Ora, como dizia ainda Pio XII, “a vida humana [a vida do corpo humano, precisemos] continua na medida em que as ações vitais − diferentemente da simples vida dos órgãos − se manifestem espontaneamente ou com a ajuda de processos artificiais” (“Discurso sobre os problemas de reanimação”). Com efeito, um paciente de disfunções renais graves que só sobreviva graças a sessões de hemodiálise ou um paciente com grave doença cardíaca que permaneça vivo graças unicamente a um marca-passo não deixarão, obviamente, de estar vivos. Mas não podemos tratar a questão da vida sem a abordar pelo ângulo das relações entre corpo e alma.

A vida do corpo de um animal ou de um homem só o é graças à alma, que é a sua forma e seu primeiro ato (“A alma é o primeiro ato de um corpo em potência para ter vida”, diz Santo Tomás). Não obstante, para que a alma não só seja esse primeiro ato mas informe o mesmo corpo, constituindo com ele uma unidade substancial, é preciso que a matéria esteja suficientemente disposta para ser e para continuar informada pela alma. Tentemos entendê-lo: a forma de uma faca, ao contrário de sua matéria, que é oxidável, é em si mesma incorruptível; sucede, no entanto, que como sua existência depende indissociavelmente dessa matéria oxidável, a forma da faca desaparece à medida mesma que se vai oxidando a matéria metálica da faca. Mutatis mutandis, passa-se o mesmo nos animais: a morte é o exato instante em que o corpo se desorganiza de tal modo, que a alma (ou forma do corpo) já não o pode seguir informando, com o que perde o corpo, absolutamente, o seu princípio de animação. No homem, sem embargo, embora no momento da morte também ocorra aquela desorganização corpórea, dá-se algo radicalmente diferente. Enquanto nos animais, com a referida desorganização do corpo, a alma não só deixa de informá-lo, mas morre junto com ele porque também está indissociavelmente vinculada a ele, nos homens não: a alma, por espiritual e pois imortal, não morre com o corpo no momento daquela desorganização, mas se separa dele e sobrevive a ele para sempre. Neste preciso sentido, a alma dos animais está mais para a forma da faca, enquanto a alma dos homens está mais para as substâncias separadas que são os anjos. Essa diferença propriamente incomensurável traz conseqüências morais que, se não podem ser entendidas por um mundo ateu, não podem, todavia, ser esquivadas pelos católicos.

Sim, porque de tal diferença resulta plenamente válida “a distinção clássica entre meios ordinários e meios extraordinários para a conservação da vida e da saúde” (Arbogastus, ibid.) e um corolário certo: “ninguém é obrigado a utilizar meios extraordinários para conservar uma ou outra. Se, numa situação dada, a vida do paciente só puder ser mantida por meios extraordinários, é lícito suspender seu uso” (idem), suspensão portanto que só erroneamente poderá ser chamada “eutanásia”, sobretudo se se entende “eutanásia” como homicídio. Em poucas palavras: não há pecado em tal ato considerado em si; ao praticá-lo, “o paciente, sua família ou os médicos não cometem nenhuma falta moral. Eles apenas deixam a natureza, tendo chegado ao termo de sua carreira mortal, cumprir sua obra” (idem). Naturalmente, pode haver pecado, por exemplo, de ateísmo em quem por causa dele pratica aquele ato de retirar ou recusar meios extraordinários de manutenção da vida; assim como um juiz, conquanto condenando com justiça um criminoso à morte, o faz porém em sua alma com ódio e espírito de vingança pessoal, e pois sem caridade (veremos o que é esta caridade no artigo sobre a pena de morte). Em ambos os casos, o ato em si segue lícito ainda que seus agentes imediatos se movam por razões ilícitas. Mas para um católico, hão de ser lícitos tanto o ato como seu móvel.

Já dizia Santo Afonso de Ligório que não se deve prolongar a vida além de certo ponto. Como aplicá-lo ao caso que estamos tratando? Entendendo que “o uso dos meios ordinários e o abandono dos meios extraordinários situam o homem de bem e o verdadeiro cristão sobre um cume virtuoso entre dois abismos: o homicídio ou suicídio por omissão (quando os meios ordinários não são utilizados) e a obsessão terapêutica (quando os meios extraordinários são postos em ação sem esperança razoável de restabelecimento para o paciente). [...] Que os pacientes para os quais não existe tratamento moralmente lícito [será ilícito, por exemplo, o transplante de órgão retirado de alguém com morte cerebral, ou seja, ainda vivo] se preparem para a eternidade, seguros de ter feito o humanamente possível para conservar o corpo que o Criador lhes deu em usufruto” (Arbogastus, ibid.).

Que o façamos seguros, sim, de termos feito o possível para conservar o corpo que Deus nos confiou; mas certos, também, de que como filhos do pecado somos pó e em pó havemos de nos tornar; e sobretudo com a Esperança de que, pela graça eficaz de Deus e limpos do pecado mortal, Lhe iremos ver, amorosa e beatificamente, a face por todo o sempre. Amém.

Em tempo 1: Grande parte do que se disse neste artigo está sendo tratado tanto nas aulas ministradas em nosso Curso de Filosofia, cujos vídeos logo estarão disponíveis, quanto nas aulas ministradas no Mosteiro da Santa Cruz.
Em tempo 2: O próximo artigo será sobre Léon Bloy.