segunda-feira, 9 de março de 2009

Os tentáculos do laicismo

Sidney Silveira
Do mesmo modo como a perda da orientação da metafísica à teologia, a partir de Duns Scot — cuja obra representa o ponto arquimédico do declínio teológico e filosófico no Ocidente —, não trouxe outro caminho senão o do crescente desmoronamento da própria metafísica, analogamente, no plano político, a perda da ordenação dos bens políticos aos bens espirituais (dos quais a Igreja é depositária) não trouxe outro caminho senão o do crescente laicismo, atitude radicalmente liberal-maçônica.

E isto na seguinte ordem:

1- NO PASSADO RECENTE, com a separação entre Estado e Igreja (condenada solenemente pelo Magistério), cujos efeitos para o Ocidente foram: a) pluralismo cultural (efeito próximo); b) relativismo moral, ou a chamada moral de circunstância (efeito intermediário); c) indiferentismo religioso (efeito distante). Vale dizer que esses três efeitos, hoje, ocorrem simultaneamente — por razões que podemos abordar noutro texto;
2- NO PRESENTE MOMENTO, com a intromissão do Estado, de indivíduos ou de grupos nos negócios da Igreja — com o ataque frontal, feroz e irracional, de ateus, agnósticos e católicos liberais aos frágeis resquícios de conservadorismo da doutrina no seio da hierarquia eclesiástica;
3- NO FUTURO PRÓXIMO, com a criminalização das leis de Deus — ou de quem quer que as defenda. Este será um passo, por assim dizer, quase “natural”, e dentro de muito pouco tempo, nobres amigos, ser contra o aborto, contra o homossexualismo, contra o ecumenismo e, sobretudo, contra a democracia (liberal), etc., será crime punível severamente em vários países do Ocidente.

Em síntese, nos últimos 200 anos de predomínio crescente do liberalismo, passamos do Estado confessional-religioso ao laico, do Estado laico ao laicista e do Estado laicista ao diabólico — numa escadinha ontológica que termina no momento em que, socialmente, a virtude se tornará uma pura e simples impossibilidade. Nesta paulatina passagem de um Estado a outro, a ordem dos valores, no seio das sociedades, foi-se invertendo: da primazia do espiritual sobre o material* passamos a um tipo de “igualitarismo” entre ambos; do igualitarismo entre ambos à pura e simples coerção ao espiritual.

Entenda-se o que digo: numa sociedade onde há o horizonte aperfeiçoador do Summum Bonum, os bens ordenam-se da seguinte forma:

a) os bens materiais aos culturais;
b) os bens culturais aos morais;
c) os bens morais à Justiça (virtude social por excelência);
d) e, finalmente, a Justiça ordena-se à Religião — pois o primeiro dever de Justiça dos homens é prestar a Deus o culto que Lhe é devido.

Essa ordem, no plano político, nada tem de arbitrária, mas obedece à própria hierarquia ontológica dos entes: quanto mais intensivo for o ato de ser de um ente, mais digno este será e, portanto, melhor protegido de tudo o que lhe reduz ou confrange a dignidade deve ser. Ademais, como destaca o Padre Álvaro Calderón, no instigante escrito El Reino de Dios — seguindo de perto o Magistério de Leão XIII e de São Pio X —, a Igreja não pode alcançar, convenientemente, os seus fins espirituais sem a cooperação dos poderes civis (que são causa instrumental secundária); e também os poderes civis não podem alcançar nem sequer os seus fins naturais se não estiverem subordinados à lei de Deus (bem espiritual superior cuja depositária é a Igreja, por mandato divino).

Pois muito bem: um recente exemplo do avanço inexorável do laicismo aconteceu nesta semana, após a excomunhão dos médicos que fizeram o aborto em uma criança de nove anos, que engravidou de gêmeos depois de ser ignobilmente estuprada pelo padastro (um monstro!) em Recife. Todo o país — a começar pelo presidente da República — caiu sobre o Arcebispo de Olinda e Recife, José Cardoso Sobrinho, com críticas as mais variadas, maldosas e estapafúrdias. Jornais e canais de TV estão “indignados” com a excomunhão dos médicos, e também com a não-excomunhão do estuprador. E a mídia, tanto televisiva como impressa, joga lenha na fogueira, sem que nenhum jornalista se tenha dado o trabalho de apurar o que é propriamente uma excomunhão, quais os casos em que se dá e quem a aplica.

Pois bem: no caso de que se trata, a excomunhão não depende da autoridade eclesiástica, ou seja: não foi o arcebispo José Cardoso Sobrinho quem excomungou os médicos, mas estes já estavam excomungados, ipso facto, no exato momento em que fizeram o aborto na menina. É a chamada excomunhão latae sententiae — na qual o fiel incorre no momento em que comete a falta. A propósito, o aborto é um dos nove casos previstos pelo Código de Direito Canônico para a pena de excomunhão. E, em síntese, eles não ficaram excomungados porque o bispo disse, mas estavam excomungados.

Há mais: a excomunhão é uma pena canônico-eclesiástica que, atualmente, não tem quaisquer efeitos jurídicos no plano civil. Ou seja, trata-se de algo que não diz respeito ao Estado (mormente um Estado laicista, como o nosso), e por isto é um grandíssimo absurdo o presidente da República — e pior: dizendo-se católico — manifestar-se sobre o tema para criticar a Igreja. Aqui se nota o tamanho do absurdo: se o país consagra, em sua Constituição Federal, a liberdade religiosa** como direito fundamental, isto implica que ninguém pode ser constrangido em seu múnus religioso — muito menos por pessoas ligadas ao poder público. E foi justamente o que fez o nosso Chefe de Estado, numa declaração totalmente anticonstitucional.

Para os católicos tradicionais que queiram hipotecar o seu apoio ao corajoso José Cardoso Sobrinho, o endereço eletrônico da Arquidiocese de Olinda e Recife é o seguinte:
http://www.arquidioceseolindarecife.org.br/falpasc.htm. Vamos lá, pessoal! Apoiemos um homem que ousou pôr-se fora do alcance dos tentáculos do laicismo, dizendo a verdade sem peias.

* Primazia no terreno axiológico, ou seja, no plano dos valores socialmente aceitos.
** Sobre a liberdade religiosa, trataremos noutra oportunidade.