segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Messianismo político, civilização terminal

Barrabás (Gustave Doré)

Sidney Silveira
Ao amigo Carlos Nougué

Universi, qui te exspectant, non confundentur, Domine.
Salmo XXIV

Quando Pôncio Pilatos volta-se à furiosa turba de judeus e pergunta quem ela quer que seja solto, Cristo ou Barrabás, está falando a homens de todos os tempos. Por trás da indagação do præfectus romano da Judéia se oculta um profundo dilema: cimentar a base social em ardilosos estratagemas humanos ou erigi-la sobre a pedra angular das leis divinas, fonte inalienável dos poderes terrenos, conforme assinala o próprio Cristo quando diz ao vacilante algoz à Sua frente que não teria nenhum poder de libertá-Lo ou de condená-Lo, se não lhe tivesse sido dado do alto. A escolha ali simbolizada é entre construir a Pólis depositando total confiança em homens facciosos — hoje o eufemismo social vigente os considera “democratas” integrantes de partidos políticos — ou na sabedoria eterna. Entre tomar como modelo das ações humanas, e portanto da política, o verdadeiro Messias ou os falsos.

Ora, toda sociedade decadente descamba para o messianismo político. Não há exceções históricas. Por esta razão, no caso de Cristo — situado entre uma Roma imperial corrompida, já afastada dos elevados princípios republicanos que a erigiram, e o elitizado e pretensioso judaísmo farisaico —, a escolha não poderia recair senão sobre Barrabás, o revolucionário zelote.[1] Cristo já o sabia por presciência divina, como também tinha a pleníssima noção de que, com o Seu sacrifício, traria ao mundo a possibilidade de reestruturar-se noutros paradigmas: a caridade, e não a cupidez, passaria a servir de fermento para o corpo social, dos estratos mais humildes e desvalidos aos governantes. O caminho foi longo até a Cristandade gerar as autoridades públicas mais sábias e prudentes de que se tem notícia. Mas ela, de acordo com os desígnios da Providência, também estava marcada para decair, e a queda foi lentamente agônica.

Nenhuma sociedade se desfaz sem perder substância espiritual — e o primeiro grande degrau nesta direção é o farisaísmo religioso, a um só tempo formalista e confiante no seu próprio saber. Tal atitude em geral consagra a letra e mata o espírito do qual ela é apenas símbolo; assim, a religião corrompe-se paulatinamente e os estudiosos das coisas divinas começam a sofisticar o discurso a ponto de se sentirem hermeneutas privilegiados das Sagradas Escrituras, embora sem haver recebido nenhum carisma para tanto. Incapazes de humildemente conservar a tradição recebida, reformam-na fazendo uso de palavras e conceitos de sua própria lavra, e após a sofisticação vem sempre a degradação. Em síntese, toda e qualquer civilização começa a ser destruída por maus teólogos, ou seja, por estudiosos novidadeiros das coisas divinas, e com a cristã não poderia ser diferente. A propósito, ponha-se na conta de dois frades franciscanos o lançamento das longínquas sementes do caos espiritual que se espraiou para o terreno da política e, séculos depois, acabou por gerar a modernidade: Duns Scot e Guilherme de Ockham.

Para se ter idéia, na opinião do Doutor Sutil o homicídio, a traição e a mentira não são coisas intrinsecamente más; elas são más tão-somente porque Deus as proibiu — e o fez por Sua libérrima vontade. Para Scot, no horizonte da moral a vontade divina é a única e exclusivíssima fonte do bem e do mal,[2] e, por esta razão, segundo o seu tresloucado parecer, apenas os dois primeiros mandamentos das Tábuas da Lei entregues a Moiséis no Sinai — referentes a Deus — são indispensáveis e universais. Todos os demais são bons apenas porque Deus quis que fossem, mas poderiam ser maus se Ele assim decidisse. Em Scot não existe nenhuma lei necessária na natureza, nem mesmo uma lei eterna da qual provenha, mas só a vontade divina a pairar como que tiranicamente acima de tudo; Ockham repetirá estes princípios voluntaristas e os aprimorará em várias passagens de sua obra. Na perspectiva deste famoso autor insubmisso ao Papado, nada pode ser propriamente inteligível na criação, já que as coisas não se predicam umas das outras, mas apenas predicam-se convencionalmente os conceitos.[3]

Entre os entes de razão e a realidade das coisas criara-se um pântano impossível de atravessar. Ora, não demoraria muito para a política ser inoculada por esta disteleologia irracionalista que foi tomando as universidades e fazendo as cabeças, geradora de um novo tipo de farisaísmo teológico insubordinado à tradição apostólica e ao Magistério da Igreja. A partir deste período, com o hiato estabelecido entre as coisas temporais e as espirituais, primeiramente sobrevirão as revoluções luterana e calvinista, com as suas inumeráveis guerras sangrentas; mais tarde virão as revoluções francesa (liberal-maçônica) e russa (comunista). O mundo escolhera definitivamente a Barrabás, malgrado as reações magisteriais da Igreja; estas porém se foram tornando impotentes perante o novo vetor materialista, libertário e humanista da história.

Os messianismos políticos multiplicam-se na exata medida em que inexistem autoridades espirituais que, de forma solene, custodiem as verdades eternas. A sagração da consciência individual dos homens como instância intocável é concomitante à dessacralização de todas as coisas, e, neste contexto, a débâcle do Magistério da Igreja a partir do Concílio Vaticano II é o acontecimento culminante do século XX, mais que as duas Grandes Guerras, pois representa o odiento fechar de olhos para as coisas políticas tomadas de assalto pelo que há de pior no gênero humano. Falseado e deturpado, o conceito de “dignidade da pessoa humana” se transforma em motor da política pós-moderna ocidental, e de todos os lados é mencionado para justificar os pleitos mais absurdos.

Hoje alguns querem fazer-nos imaginar que estamos perante uma escolha de Sofia: ou o projeto eurasiano russo, em parceria com cismáticos ortodoxos, ou os neocomunismos imperantes sobretudo na América Latina, ou o avanço europeu do Islã, religião a respeito da qual o abade Pedro, o Venerável, escrevera no distante século XII o estupendo Liber contra sectam sive haeresim sarracenorum. Como pano de fundo de todas essas possibilidades, encontram-se as premissas liberais dos que odeiam a Igreja e a querem ver afastada da instância política a todo custo, pois do contrário o reinado material do Anticristo nunca seria possível.

Em tal configuração, convém ter em vista o seguinte: todos os que põem a confiança no Senhor não serão confundidos, como afirma o Salmo que serve de epigrafe a este breve texto. Portanto, é melhor a derrota política com a cruz espiritual às costas do que a vitória política infamante.

Tal confiança verdadeiramente heróica pressupõe que os católicos não abandonem a Igreja, mesmo com a sua Hierarquia fazendo de tudo para os melhores apostatarem, e também não adiram a nenhum desses messianismos políticos, pois se trata de tentáculos do mesmo demônio.

Seja à esquerda ou à direita da depravação.
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1- Para exemplificar isto, vale frisar que Cristo — diante de Pilatos e dos judeus que O acusavam de blasfêmia — está literalmente entre a omissão culpável do poder político corrupto e a maldade espiritual da mais pérfida das elites, sendo esta última sumamente deletéria, pois se volta contra o bem maior. “Quem Me entregou a ti tem maior pecado” (Jo. XIX, 11).
2- Cfme. Duns Scot, Ordin., I, 46, I, 6.
3- “É tão impossível que uma coisa seja universal fora da alma quanto é impossível que o homem seja um asno”. Ockham, Sent. 2, 78.