sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Felicidade, uma vitória sobre o império dos sentidos

Sidney Silveira


“A essência da felicidade consiste num ato da inteligência” (essentia beatitudinis in actu intellectus consistit). Esta premissa de Santo Tomás de Aquino aponta para o fato de que o estado de felicidade pressupõe que os olhos do espírito estejam bem abertos. Só assim a posse do bem, pelo homem, torna-se capaz de propiciar verdadeira fruição às potências superiores da alma — evitando transformar-se numa espécie de apaixonante quimera. Em resumo, quando os deleites não vêm acompanhados da clara visão noética dos bens possuídos, isto significa que o homem está arrojado num plano sensitivo no qual a alegria é superficial e fugaz, além de trazer consigo medos, tristezas e, não raras vezes, dores psíquicas veementes.


Ora, o homem é um composto de corpo e alma, sendo a alma o coprincípio superior que dá ao corpo a sua forma substancial, pois sem alma um corpo só pode ser dito “humano” por analogia de atribuição. Forma dat esse rei, ou seja: a forma dá o ser substancial à coisa, razão pela qual o cadáver, em sentido metafísico, é matéria impotente para atualizar os atos distintivos do ente humano na ordem do ser. Considerados, pois, estes dois coprincípios hierarquicamente ordenados um ao outro, e todas as potências a eles pertencentes, afirmemos que a felicidade humana, para ser real, efetiva, deve abarcar as duas instâncias — corpo e alma —, mas com prevalência absoluta da superior, onde reside.


Portanto, uma felicidade puramente corpórea seria nada menos que simples impossibilidade ontológica, dada a constituição da natureza humana; mas também uma felicidade sem o corpo seria para nós igualmente impossível, pois somatizamos não apenas as dores, mas também as alegrias. Em síntese, a felicidade é essencialmente a posse efetiva do bem pela inteligência, e, como o nosso intelecto faz uso do corpo como causa instrumental necessária para lograr os seus atos próprios (pois todo conhecimento e volição humanos passam pelas potências sensitivas internas e externas), isto implica que o corpo é derivativamente afetado pelos estados da alma, e daí podemos dizer que a felicidade o abarca. E o mesmo ocorre com a infelicidade, cujos reflexos no corpo são patentes.


Em palavras simples, o bem-estar corporal está para o estado de alegria habitual a que chamamos felicidade assim como o efeito está para a causa necessária (per se) de que decorre: desassociá-la dele seria cindir a alma humana ao meio. Contudo, é evidente haver bens corporais não implicados na felicidade, como quando nos exercitamos e produzimos endorfina, mas não é deste tipo de bem-estar acidental que ora tratamos. Este exemplo, porém, é útil para apontar-nos que toda felicidade traz consigo, como reflexo, um bem-estar psicofísico, mas nem todo bem-estar psicofísico é decorrente da felicidade. Que o digam os estupradores de criancinhas, cujo prazer no exercício do ato nefasto da pedofilia “co-incide” com a mais pungente agonia espiritual... Ademais, medir a felicidade humana pela produção de hormônios seria cair em aporias sem fim, e o problema da felicidade exige que façamos a passagem do plano sensível ao inteligível, para não tropeçar nos escolhos do materialismo mais tosco.


Um fato, neste contexto, é inegável: a ação humana se dá no momento em que as coisas singulares se apresentam à vontade e à inteligência (actio est in singularibus, dizia o Aquinate). Ora, apreendemos os singulares a partir das potências sensitivas, e nessa apreensão muitas vezes somos levados a considerar como convenientes, em sentido absoluto, as coisas apetecidas pelos sentidos aqui e agora — e as buscamos sem a consideração racional da ordem devida. Assim, quando hic et nunc o objeto singular apraz, agrada, deleita, se a vontade não estiver muito bem informada pela inteligência é provável que o homem busque satisfazer o apetite sem considerar a bondade ou maldade circunstancial de sua escolha.


Quando o apetite inferior move o superior à má-escolha, isto representa um malogro de nossa natureza intelectivo-volitiva, uma disteleologia, dado que nos atos propriamente humanos a ordem natural implica a moção das potências inferiores pelas superiores — o que significa o seguinte: os impulsos inferiores devem estar sob o império da razão. Assim, por exemplo, um sujeito com artérias coronárias entupidas deve evitar comer a carne salgada e gordurosa que o seu paladar aprecia, para não morrer de infarto. Deve, pois, vencer o querer momentâneo tendo em vista o bem superior apreendido pelo intelecto.


Não tratamos aqui da imensa dificuldade desta vitória da inteligência sobre a vontade quando esta é movida de forma veemente pelo aprazível para os sentidos, mas, com o intuito apenas de retratá-la, deixemos consignado outro especioso pensamento de Santo Tomás de Aquino: no homem observa-se que o mal é mais freqüente que o bem, pois são em muitíssimo maior número as pessoas que seguem os sentidos. O grande Cardeal Caetano, comentando esta passagem da obra do mestre, afirma que o homem (no atual estado) vive a triste condição de mais saborear as experiências do mal do que gozar a tranqüilidade do bem — pois, embora seja superior às coisas que vê e pressinta a incomensurável grandeza dos bens do espírito, goza muito pouco dos seus privilégios. Assim, enquanto nos entes superiores e inferiores predomina o bem, e o mal é exceção, a natureza humana encontra-se tristemente arrojada nesta perspectiva facilmente perceptível pelo senso comum: temos a freqüente experiência do mal, seja em nós mesmos ou à nossa volta.


A felicidade verdadeira é, neste contexto, uma vitória sobre o império dos sentidos. E, entre outras coisas em razão de nossa condição no atual estágio de natureza decaída[1], ela passa pela dificultosa educação da sensibilidade para a fruição dos bens superiores que estamos aparelhados para assimilar, apreender, possuir.


Educando os sentidos podemos vencer, com esforço e ao longo do tempo, os óbices acarretados por paixões desordenadas e encontrar a beatitude — imperfeita nesta vida, é verdade, mas reflexo da felicidade perfeita que há no céu, onde inexistem gozos desordenados e (ao contrário do que Santo Tomás observava nos homens deste vale de lágrimas) os males não são experiência corrente.
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[1] Como o público leitor do Contra Impugnantes é, predominantemente, composto por católicos, eximo-me de explicar detidamente aqui o que são as feridas do pecado original.