sexta-feira, 13 de maio de 2011

Sobre demônios e endemoniados (III)

Sidney Silveira


De acordo com alguns dos maiores teólogos da história da Igreja, entre os motivos pelos quais Deus permite a possessão diabólica estão:


a) o aumento da glória de Deus[1], devido ao fato de que, por meio dos possessos, se manifestam de forma patente as perfeições e a autoridade divina; b) a manifestação da verdade da Religião Católica (a verdadeira religião), pois somente ela é dotada de poder sobre as forças infernais, por delegação direta de Cristo; c) o castigo dos pecadores, em especial dos mais obstinados que pecam contra o Espírito Santo; d) o proveito espiritual dos bons, ou seja, dos justos; e) os ensinamentos que se extraem de cada caso de possessão, tanto acerca do mundo espiritual como a respeito da condição humana.[2]


Da parte do Lúcifer e de todos os seus seguidores, a causa da possessão é simplesmente o imenso ódio que os demônios têm dos homens e o prazer que sentem ao perdê-los, ao retirá-los do caminho conducente ao céu. Vale dizer que os demônios, se não fossem limitados por Deus, perderiam a humanidade inteira, em razão de sua absoluta superioridade ontológica em relação a nós, nesta gradação de ser que vai da matéria prima ao Ato Puro da essência divina.


Como ficou anteriormente assentado, a possessão é uma das quatro formas de ação diabólica sobre o homem, e, em boa parte dos casos, dão-se algumas predisposições humanas para que se chegue a tal ponto. A principal é a seguinte: o indivíduo que leva uma vida de pecado em matéria grave acaba transformando-se em merecedor desta triste condição de endemoniado, embora não se deva pressupor que a possessão represente sempre um castigo dos pecados do possesso; não foi tão rara na história da Igreja a possessão de homens justos e bons, para se cumprirem alguns dos motivos acima arrolados da permissão divina para esse tipo de mal. A propósito, é sobre as almas boas que o demônio preferiria agir sempre, pois o pecador em estado de pecado mortal habitual já está, de alguma forma, sob o domínio satânico, razão pela qual é justamente contra os que buscam a santidade que o Maligno mais gosta de agir.


Com relação ao modo da possessão diabólica, diga-se que ele está circunscrito ao que a sua forma entitativa é capaz de atualizar, na ordem do ser. Assim, por exemplo, tendo as criaturas espirituais domínio sobre a matéria – que, em sentido metafísico, é absolutamente inerte, pois não pode passar por si mesma da potência ao ato –, elas conseguem realizar quaisquer movimentos locais sem a menor dificuldade. Assim, os demônios podem mover objetos de um lugar a outro, para sugestionar uma alma que esteja sob o influxo da infestação local. Observe-se que este domínio sobre a matéria é extrínseco, ou seja, não é dado aos entes espirituais criar a matéria nem mudar a substância de forma direta e imediata. Como salientam alguns teólogos e exorcistas, os demônios podem mudar internamente a matéria tão-somente de forma indireta e mediata, ou seja, alterando a qualidade das substâncias pela mescla de elementos.


No caso do homem, também a ação satânica é direta e imediata apenas sobre o corpo e suas potências, sendo indireta e mediata sobre a alma. Em síntese, o demônio influencia a alma só a partir daquilo em que ela é dependente do corpo para atuar. Assim, ele é capaz de trabalhar sobre a imaginação (sentido corporal interno) sugerindo formas que possam causar medo, desejo, ira, etc., e desta forma predispor a vontade a escolher mal, obliterada por paixões. Mas não pode o demônio agir diretamente sobre a vontade, razão pela qual não está em seu poder obrigá-la a querer pecar, mas apenas induzi-la a fazê-lo atuando sobre o corpo predispositivamente. Por exemplo: o demônio pode acelerar os batimentos cardíacos de uma pessoa e dar a ela a sensação de morte iminente, para induzi-la a cometer algum pecado específico sobre o influxo do medo – que, como se diz neste conto, em geral não é outra coisa senão um desgoverno na imaginação.


Dadas estas premissas, reiteremos: os demônios só podem exercer alguma influência sobre as atividades intelectivas e volitivas humanas de forma indireta e limitada.


No próximo texto, veremos de que forma estas criaturas espirituais maléficas podem atuar sobre a inteligência e a vontade do homo viator, deste peregrino pelo vale de lágrimas que é o mundo.


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[1] Diga-se que, sendo Deus absolutamente glorioso, em si mesma a Sua glória não pode aumentar. O que aumenta é o que os teólogos chamam de glória extrínseca, ou seja, a glória que os homens tributam a Deus, embora Ele não necessite dela.
[2] Estes são apenas os principais motivos da permissão divina para a possessão. Alguns teólogos enumeram outros motivos, como: 1- para que as pessoas próximas ao possesso se arrependam e se convertam; 2- para manifestar a omnipotência e a misericórdia divinas; 3- para provar os eleitos em sua santidade; 4- para humilhar o demônio; 5- para mostrar aos homens que os demônios existem e que é necessário se precatar contra eles; 6- para evitar o aumento da culpa do endemoniados; 7- etc.