quarta-feira, 11 de março de 2009

Sob o Cristo Senhor, o verdadeiro rei

Carlos Nougué
Segundo o que me chegou aos ouvidos, determinada pessoa (que por várias razões merece todo o meu respeito) teria dito que eu, pelo que neste blog andei escrevendo sobre arte, mereceria a condenação formal da Igreja. Pois bem, aproveitando o ensejo, e antes ainda de voltar às séries já iniciadas, deixo bem claros aqui os princípios essenciais que me norteiam não só no tratamento da arte, mas no tratamento de todos os assuntos referentes às coisas humanas. Esclareço desde já, porém, que nada invento: apenas sigo o que me ensinaram e ensinam o Magistério infalível da Igreja, Santo Tomás de Aquino e outros discípulos e verdadeiros Auxiliares do Aquinate (como o é sobretudo o Padre Álvaro Calderón, mas também, por exemplo, um Jean Ousset), e que com a graça de Deus entendo e aceito, cerviz curvada como devido. Vamos pois por partes.

1) Não existe o homem enquanto ente puramente natural. Antes de tudo, criou-o Deus em ordem a Ele mesmo e, para tal, no estado de justiça original, estado em que, graças não só aos dons preternaturais e à Árvore da Vida, mas também à Graça, a alma de Adão e Eva e seus descendentes receberia permanentemente o influxo das idéias de Deus acerca de Seus próprios mistérios e sujeitaria perfeita e harmonicamente sua potência irascível, sua potência concupiscível e seu corpo (que seria impassível e imortal, e só deixaria a terra como corpo glorioso); mas isso, nunca é demais dizer, com a condição de que não comessem da Árvore da Ciência do Bem e do Mal. Ora, por um lado e como diz Santo Tomás de Aquino, o feitor de uma faca, ao fazê-la, a faz com uma forma e com uma matéria corruptível por natureza; mas, se pudesse, tal feitor a faria, enquanto composto de matéria e forma, inteiramente incorruptível. Mutatis mutandis, o homem também tem uma forma, a alma, esta por si e em si incorruptível, e uma matéria, o corpo, este, como a matéria da faca, corruptível por natureza. Mas o feitor do homem, Deus, supriu este defeito e, graças ao dito acima, o fez inteiramente incorruptível, com o corpo e as potências inferiores inteiramente submetidas às potências superiores da alma. Nesse suprir, teve papel central a Graça. Adão e Eva foram criados em estado de Graça, não em estado puramente natural, e inteiramente ordenados ao fim último do homem e do Universo, Deus mesmo – o Fim sobrenatural por excelência. Ademais, o estado de justiça original, inteira e diretamente ordenado ao Fim sobrenatural por excelência, foi dado não apenas aos indivíduos Adão e Eva, mas à natureza do homem, ou seja, à espécie humana: seria pois integralmente transmitido por geração.

2) Quer dizer então que o homem era e seria uma espécie de anjo, sem fim ou fins naturais? Mas não disse Deus aos nossos primeiros pais que eles deviam sujeitar a terra, e dominar “sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra” (Gênesis, XXVIII)? E, ainda que não tivessem pecado Adão e Eva, não teriam os homens de construir cidades e desenvolver as ciências e as artes? E esses fins não seriam todos fins naturais? Não; não seriam senão fins intermediários e ordenados ao fim último, porque, primeiro, como dizia o Aquinate, nenhum ente pode ter senão um fim último, e, depois, como dizia o mesmo Angélico, o que é fim intermediário não é senão meio com relação ao fim último. Ora, obviamente, o que é meio está subordinado ao fim para o qual precisamente é meio, e, também obviamente, o que é subordinado é determinado e conformado pelo que lhe é subordinante. O homem não tem, propriamente falando, fins naturais, mas meios naturais também eles ordenados ao Fim sobrenatural. Mas a cidade (ou pólis ou Estado...), cuja ciência, a Política, é dita arquitetônica por Aristóteles, não seria um fim natural ordenado apenas extrinsecamente ao fim último do homem (como, aliás, o disseram Dante, Vitoria, Suárez, Maritain e até Lachance, entre muitos e muitos outros)? Não, porque, como dizia o Angélico, “dado que o homem ao viver segundo a virtude se ordena a um fim ulterior, que consiste na fruição divina [...], é necessário que o fim da multidão humana, que é o mesmo do indivíduo, não seja viver segundo a virtude, mas antes, por meio de uma vida virtuosa, chegar à fruição divina” (De regno, 466: 74-80). Logo, pelo que fica dito, no estado de justiça original a ordenação da cidade a Deus não seria extrínseca, mas perfeitamente intrínseca, e não seria um fim natural do homem, mas um meio natural do homem em ordem a seu fim último, à perfeita beatitude, à sua sobrenatural deificação.

3) Mas com o pecado e a perda do estado de justiça original não terá o homem ficado em estado puramente natural? Aí está, a meu ver, a raiz do equívoco: não, não ficou nesse suposto estado puramente natural, senão que deixou de estar ordenado à beatitude celeste para ficar condenado ao tormento infernal, ao fogo eterno e sobrenatural da geena. Assim como o estado de justiça original seria transmitido por geração a todos os indivíduos humanos se Adão e Eva não tivessem pecado, assim também, porque eles pecaram, o estado de natureza caída e ferida se transmite a todos os indivíduos humanos por geração. Nascemos nós, os filhos do pecado, condenados ao inferno, e estar condenado ao inferno por geração e nascimento é ter, obviamente, um destino nada natural, mas sobrenatural; tristíssimo, mas sobrenatural. Foi este o grande engano impingido pela serpente a Eva e Adão: como comendo da Árvore da Ciência do Bem e do Mal sereis como deuses, então tereis a vós mesmos por fim último. Inaugurava-se, assim, o humanismo, e uma história cujas cidades, como a de Caim, também nasciam sobrenaturalmente entregues ao diabo.

4) Grande, porém, é não só a justiça mas a misericórdia de Deus, e o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e sofreu morte e morte na Cruz, e ressuscitou ao terceiro dia, e deu-nos outra vez a Graça mediante os sacramentos, e fundou aqui o Reino de Deus, a Igreja de que Ele é Cabeça e que um dia entrará triunfalmente na Jerusalém Celeste. E com isso se esclarece, antes de tudo, a história: a história, com efeito, tem por eixo e fim a Cristo mesmo, com o qual se deu a consumação dos tempos, e, se o antes e o depois de Cristo se ordenam a Ele mesmo, é porque a história não tem por fim senão a completação do número dos eleitos que O verão à direita de Deus Pai, e porque é Ele mesmo, “o Cristo Senhor”, como diz São Bento no Prólogo de sua Regra, “o verdadeiro rei”. Mas, para Seu Reino e Reinado, Deus dispôs tudo por sua Providência, que não é senão o meio por que Ele governa o mundo segundo Sua mesma Lei Eterna: assim como deu a Lei Nova ou do Espírito aos renascidos pelo batismo, assim também dera ao povo eleito a Lei Antiga como preâmbulo necessário à Nova; e, assim como fez da carne de Maria uma carne apta para gerar o Filho de Deus, assim também, como diz o Padre Álvaro Calderón, preparara a carne da filosofia grega e do direito romano como apta para batizar-se e permitir assim o Reino de Deus sobre a terra; e o fizera talvez mediante graças atuais, o que em nada contrariaria a adquirida capacidade própria dos filósofos gregos e jurisconsultos romanos, ambos os quais, como diz ainda o mesmo Padre, aprenderam a pensar e, digo eu, a legislar. (Estamos aqui no delicado e misterioso terreno onde a predestinação move infalivelmente ao fim sem porém eliminar a necessidade das obras humanas, e onde a Graça não elimina o livre-arbítrio conquanto o configure ao modo como o subordinante configura o subordinado.) Não era apta para tal a carne podre da cultura asteca, ou da cultura indiana, ou da chinesa, etc. Pois bem, Cristo habitou entre nós também para ensinar-nos, por meio de sua Paixão, das Escrituras, da Tradição e do Magistério da Igreja, que é Ele mesmo o unicamente verdadeiro Rei de tudo: da criação, dos tempos, da história, das cidades, das famílias, das ciências, artes e ofícios, e dos corações; e que fugir a Seu Reinado ou negá-lo em quaisquer desses âmbitos é propriamente pecar e condenar-se. E o Reino deste verdadeiro Rei é a Igreja, e compreende não só sua Hierarquia e fiéis, mas também as cidades da Cristandade, seja a Roma começada com Constantino, sejam os reinos medievais, seja o Império Espanhol dos Reis Católicos, de Carlos V, de Filipe II. Não é outra coisa o que, em essência, e apesar da detratação de pseudotomistas, diz Santo Agostinho em A Cidade de Deus. Sim, é verdade que Cristo disse: “Dai a César o que é de César”, e a Pilatos que ele não teria poder para matá-Lo se não lhe tivesse sido outorgado por Deus Pai, deixando claro com isso que na terra o poder se divide em duas jurisdições, uma das quais, porém, a jurisdição temporal, deve subordinar-se à jurisdição espiritual assim como o corpo deve subordinar-se à alma. Ora, um corpo sem sua alma é um cadáver; e, com efeito, as cidades modernas, as que desde a própria Idade Média vêm progressivamente rejeitando sua alma, que é a Igreja, já não passam de cadáveres, como também o eram a cidade de Caim, as cidades astecas, as cidades indianas, as cidades chinesas, etc. A Cristandade é formada por dois gládios ou espadas, uma espiritual, e uma temporal, que são as cidades ordenadas e subordinadas a Cristo. As cidades que O negam, por seu lado, não são senão carniça para os abutres que andam pelo mundo para perder as almas.

5) Assim como porém até o demônio está sob o poder de Deus e a serpente é calcada pelos pés da Mulher, assim também o reinado de nosso Senhor compreende todos os homens. Com efeito, Sua autoridade “não se estende apenas aos povos que professam a fé católica [...] toda a humanidade está realmente sob o poder de Jesus Cristo”, diz Leão XIII em Annum sacrum. Mas a Igreja, sempre mãe além de mestra, não se limita a constatá-lo; quer a salvação dos homens e, para tanto, a reordenação de suas cidades a Cristo. Por isso falava São Pio X da urgência de “restaurar tudo em Cristo”; e tudo, obviamente, não é aí uma figura de retórica, mas quer dizer tudo mesmo: das cidades aos corações, incluindo as ciências e as artes. “Neste ponto”, diz Pio XI em Quas primas, “não há diferença alguma entre os indivíduos e as sociedades domésticas e civis”, e “é evidente que também em sentido próprio e estrito a Cristo como homem pertence o título e o poder de Rei”. Essa realeza se funda, como lembra o Padre Calderón ao tratar desta encíclica, “na União Hipostática como num direito de natureza, e na Redenção como num direito adquirido”. “A força e a natureza deste principado”, lê-se ainda na Quas primas, “é contida num triplo poder”, ou seja, legislativo, judiciário e executivo; e, se este reino é principalmente espiritual e pertence ao espiritual, tristemente porém “erraria quem negasse a Cristo homem o império sobre quaisquer coisas civis”. Prossegue o Pastor: “Se o reino de Cristo incluísse de fato todos os homens, como de direito os inclui [ut iure complectitur], por que não haveríamos de esperar aquela paz que o Rei pacífico trouxe à terra?” E manda e assevera o Pastor em nome de Cristo: “Se agora ordenamos a todos os católicos do mundo o culto universal de Cristo Rei, remediaremos as necessidades da época atual e ofereceremos uma medicina eficaz para a doença que em nossa época afeta a humanidade. Qualificamos de doença de nossa época o laicismo, seus erros e seus propósitos criminosos.”

6) Diz o Padre Calderón em El Reino de Dios: “A relação da Igreja com a cultura – que, entendida em sentido amplo, envolve não só a ciência e a arte, mas também a maneira de levar a vida familiar, econômico-social e política – é o ponto onde eclode a diferença entre a concepção tradicional e a ‘humanista’.” Com efeito, tudo (ciência, arte, educação, economia, política, etc.) deve conformar-se mais ou menos diretamente à luz da Revelação, como sucedia nas Universidades medievais. Ora, tal como nelas, prossegue o Padre Calderón, “a faculdade de teologia deve ser o centro e alma das demais, projetando a visão cristã em todos [destaque nosso] os campos do saber, em maior grau quanto mais humanos. Ao assumir esta função, a Igreja tomou tudo o que de verdadeiro os homens tinham pensado, purificando-o de seus erros, e criou a Cultura Cristã [...], universal como a própria Igreja. Falar de Cultura Cristã e de Cristandade é falar da mesma coisa, pois aquela é o princípio formal desta, e é o mesmo que falar da Igreja. Evangelizar e cultivar, ou seja, educar os povos na Cultura Cristã, sempre foi para a Igreja sua própria missão: Ide e ensinai”. (Pode-se compreender agora, perfeitamente, por que só pode haver catolicismo liberal ao modo degenerativo de um câncer.)

7) Como diz ainda o mesmo Padre, trata-se, enfim, de que todos adorem a Cristo no Santíssimo Sacramento, e é com este exato espírito que todos e tudo (ciência, arte, educação, economia, política, etc.) devem cantar como na festa de Cristo Rei:

“Te nationum praesides
Honore tollant publico.
Colant magistri, judices,
Leges et artes exprimant.”

Em tempo 1: Espero, sinceramente, que este artigo faça mudar de opinião à respeitável pessoa que me julga merecedor da condenação formal da Igreja por ter escrito o que repito aqui: Shakespeare e Beethoven estão nos antípodas da Arte Cristã e por isso devem, em muitos casos, ser evitados pelos católicos. Se porém não o fizer, peço-lhe: escreva algo contrário ao que digo e torne-o público. Assim o debate poderá entrar no domínio da busca da verdade sob a caridade cristã.

Em tempo 2: Encerro este já longo escrito com este hino da Prima de Domingo do Diurnal Monástico beneditino, hino pelo qual devemos guiar-nos ao longo do dia:

“Nascido o sol, confiantes,
Peçamos ao Senhor
Que nas ações do dia
Nos guarde o seu amor!

Refreie a nossa língua,
O ardor do que discute;
O olhar não veja o mal,
O ouvido não escute.

Não turbem as vãs contendas
A paz dos corações;
Apague a mesa sóbria
O fogo das paixões.

Quando, passado o dia,
Vier a noite escura,
Cante o louvor de Deus
A consciência pura.

Louvor e glória ao Pai,
Ao Filho seu também,
Ao Espírito Paráclito
Agora e Sempre. Amém.”